Eles não são mendigos
Os bem-sucedidos tratam os beneficiários das políticas sociais como pedintes, não sujeitos de direito
Eleições suscitam polarização de opiniões e exageros de pontos de vista. A campanha eleitoral já em curso, como outras, emite sinais de pródigas manifestações de maniqueísmo. O expediente de satanizar o adversário revela, esta é minha opinião, indigência mental e despreparo para a convivência democrática. Intelectuais, incluídos os jornalistas, não escapam desses desígnios: as sagradas funções da crítica e da dúvida sistemática são atropeladas pela paixão política.
Leio sistematicamente as colunas dos jornais brasileiros. Leio sempre com o espírito disposto a considerar os argumentos, mesmo aqueles que não batem com meus juízos e julgamentos.
Pois, embrenhado no cipoal de opiniões, deparei-me com um luminar da sabedoria nativa que, do alto de sua coluna, alertava a nação para os perigos da exploração do “coitadismo”. Imagino que vislumbrasse nas políticas de redução da pobreza uma afronta aos méritos dos cidadãos úteis e eficientes.
Lembrei-me de uma palestra memorável do escritor americano David Foster Wallace. Diante dos estudantes do Kenyon College, Foster Wallace começou sua fala com um apólogo:
“Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário.
Ele os cumprimenta e diz:
– Bom dia, meninos. Como está a água?
Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:
– Água? Que diabo é isso?”
Wallace prossegue: “O ponto central da história dos peixes é que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida. ... Os pensamentos e sentimentos dos outros precisam achar um caminho para serem captados, enquanto o que vocês sentem e pensam é imediato, urgente, real. Não pensem que estou me preparando para fazer um sermão sobre compaixão, desprendimento ou outras ‘virtudes’. Essa não é uma questão de virtude – trata-se de optar por tentar alterar minha configuração-padrão original, impressa nos meus circuitos. Significa optar por me libertar desse egocentrismo profundo e literal que me faz ver e interpretar absolutamente tudo pelas lentes do meu ser”.
O povo brasileiro tem manifestado seu desacordo com os bacanas que, como os peixinhos, mergulhados em seu egocentrismo, não conseguem reconhecer o ambiente social em que vivem. Por isso, os bem-sucedidos tratam os beneficiários das políticas sociais como pedintes, não enquanto sujeitos de direito.
Nas últimas décadas, certos liberais brasileiros julgam defender o mercado, desfechando invectivas contra as políticas públicas que, em sua visão, contradizem os critérios “meritocráticos”.
Em 1942, na Inglaterra ainda maltratada pela guerra, o liberal Sir William Beveridge, em seu lendário Relatório, defendeu o mercado ao fincar as estacas que iriam sustentar as políticas do Estado do Bem-Estar.
Associado à ruptura causada nas concepções da economia convencional pela Teoria Geral do Juro, do Emprego e da Moeda – obra magna do também liberal, porém iconoclasta, John Maynard Keynes –, o Relatório Beveridge cuidou dos princípios e políticas que deveriam orientar a ação do Estado britânico do pós-Guerra.
O liberal Beveridge apontou os “Demônios Gigantes da vida moderna” que os governos estavam obrigados a enfrentar: Carência, Doença, Ignorância, Miséria e Inatividade. Sob sua inspiração, os trabalhistas Atlee e Bevan implantaram a duras penas o National Health Service. Os direitos criados pelo Serviço Nacional de Saúde resistiram bravamente às investidas dos governos conservadores, desde Thatcher até os tempos do mauricinho Cameron.
Na Inglaterra dos anos 20 e 30 do século passado, as diferenças educacionais entre as classes sociais estavam legitimadas por suposições pseudocientíficas, mas, na verdade, preconceituosas a respeito da “inteligência”. A eugenia não foi prerrogativa da Alemanha nazista, mas se espalhava por toda a Europa nas asas do pensamento conservador, que entre outras monstruosidades produziu o criminoso nato de Lombroso. Para os “anticoitadistas” de então, a capacidade intelectual estava predeterminada por hereditariedade e, portanto, nem todos poderiam se beneficiar da educação.
Em seu Relatório, Beveridge proclamou que a ignorância é uma erva daninha que os ditadores cultivam entre seus seguidores, mas que a democracia não pode tolerar entre seus cidadãos. Temo que algumas democracias tenham se descuidado das ignorâncias.
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