Especial - 50 anos do golpe
Truculência premeditada
e desproporcional
Jango não resistiu ao golpe, o Aplicação não resistiu ao golpe. Não havia o que fazer. Aquele 1º de abril era apenas o ensaio geral de tempos horríveis
Nirlando Beirão (*)
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Nascer no turbilhão de uma família udenista – pior, lacerdista – era estar condenado a emoções ideológicas extremadas e avaliações políticas invariavelmemnte equivocadas. Eleições pareciam se suceder apenas para contrariar os prognósticos sempre otimistas do meu pai e de meus tios. O Brigadeiro, o Juarez, o Milton Campos, o Pedro Aleixo, toda a constelação de figuras impolutas que vinham ilustrar, com pose de heróis da Pátria, nossos saraus domingueiros sucumbiam miseravelmente ante a vontade das urnas. Eleger o ex-ditador via voto livre, por exemplo, arrancava da família irritada a certeza sobre a indigência mental do populacho. Lembro de lágrimas femininas, piedosas, inconformadas.
A memória, feita de impressões vagas, fica mais nítida com a entrada em cena da figura singular de Jânio Quadros. Jânio era um histrião que soube alimentar o apetite populista e quase sempre antidemocrático do eleitorado de São Paulo. Cansada de perder eleições, a UDN facção Carlos Lacerda decidiu pedir emprestado, como cabeça de chapa para a eleição presidencial de 1960, o pândego da Paulicéia. Aquelas consciências enfatiotadas de liberais da Academia regurgitaram com tal aproximação mas acabaram por engolir o sapo.
A vitória de Jânio foi amplamente festejada. A renúncia, oito meses depois, execrada. João Goulart se prestava à caricatura que a direitona já fazia dele: um perigoso agente do comunismo internacional. O pior de tudo foi que o curativo do Parlamentarismo fez emergir aquilo que, por tradicão local, mais incomodava meu irritadiço conglomerado familiar: o PSD, adversário sistemático da UDN em Minas Gerais. Surgia na figura providencial de Tancredo Neves, articulador da transição para o Parlamentarismo. Se nem Juscelino Kubitschek a turma ali aceitava, imagina o Tancredo, símbolo, diziam os meus, do conchavo oportunista, da conciliação farisaica, da conversinha ao pé do ouvido.
Passei os anos pré-golpe num colégio de padres alemães. Curiosamente, a radicalização que se acelerava dentro da minha família não encontrava eco na escola católica. Os padres ensinavam-nos, sim, a ser carolas, tementes a Deus e ao Padre Prefeito, aqui e ali ecoava o medo do bolchevismo ateu, mas aquelas batinas tinham um histórico de horror ao nazifascismo, o que compreensivamente as faziam temer também a escalada golpista da direita.
Em 1964, mudei-me para o Colégio de Aplicação – e minha vida mudou. O Aplicação era um apêndice pedagógico da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Fafich, que ficava ali ao lado no bairro de Santo Antônio. Só tinha os três anos do atual Ensino Médio, o Colegial, dividido entre Clássico (com o olhar mais focado nas Humanidades) e Científico (voltado para os que iriam cursar Medicina e Engenharia). Na minha sala do Clássico, éramos cinco mancebos e 24 meninas. Um ambiente desses desanuviava até mesmo os intricados enigmas do Latim arcaico.
Se nós procedíamos de famílias conservadoras (e, no meu caso, de um ginásio católico), a Fafich era, excluindo-se talvez os seminaristas que enxameavam o curso de Filosofia (muita Teologia, muito São Tomás de Aquino), predominantemente de esquerda.
Não digo que foi uma conversão instantânea. De todo modo, já dava para entender que o mundo não era assim tão pão, pão, queijo, queijo como pregavam meus vorazes tios lacerdistas em nossos tórridos almoços de domingo. Não conseguia enxergar naqueles professores esquálidos de óculos de aro as bestas-feras vermelhas e sanguinárias profetizado pelo apocalipse da Guerra Frias.
Comecei a ler a Última Hora e o Stanislau Ponte Preta, em seu impiedoso deboche das “cororocas” das marchas pela família. Não era tão assíduo assim (é uma confissão inconfessável) das ácidas crónicas de A Vida como Ela É..., de Nelson Rodrigues, que depois se revelaria um reacionário promocional. Mas gostava dos comentários esportivos de João Saldanha, botafoguense e comunista. A Última Hora viria a ser, anos depois, já sangrando pela violência do regime, meu primeiro emprego no jornalismo.
O dia 1º de abril amanheceu, mesmo em Belo Horizonte, QG do golpe, com aparências de normalidade. Tempos depois, iria saber, na narrativa do americano John Reed, que no dia da tomada do Palácio de Inverno pelos bolcheviques ele e a namorada dele, Louise Bryant, compraram salsichas num armazém, tomaram um táxi e foram tranquilamente para casa. A Revolução Russa mudou o mundo; o 1º de abril foi só uma triste chanchada.
Ao chegar ao Aplicação, naquela manhã, o zunzunzum já começara. Os professores pareciam inquietos. O rádio, o grande veículo da época, já transmitia, em pool forçado, a voz dos insurgentes. Os mais afortunados conseguiam sintonizar a Rede da Legalidade, favorável a Jango. De repente, um jipe do Exército estacionou diante do Aplicação. Desceu um único oficial. Entregou uma folha de papel à diretora e fomos dispensados.
Marcelo, que era o único entre nós que já tinha lido o 18 Brumário, propôs resistir. Por que não? A Faculdade de Filosofia, prédio de peculiar traçado, dispunha de uma espécie de promontório que dava para a rua. A esta altura, supunha o Marcelo, os universitários estariam se preparando para responder ao golpe. Nós nos juntaríamos a eles, subiríamos na laje e de lá atiçaríamos o brio revolucionário das massas.
Mas a Filosofia estava vazia e nós terminamos a manhã, rotineiramente, tomando sundae de morango no Xodó. Cheguei em casa a tempo de ouvir o berreiro do Carlos Lacerda, supostamente cercado no Palácio da Guanabara por tropas fiéis a Goulart. Percebi entre meus familiares silenciosas preces em favor do governador.
Jango não resistiu ao golpe, o Aplicação não resistiu ao golpe. Olhando para trás, digo isso com enorme respeito e simpatia. Não havia o que fazer. Aquele 1º. de abril era apenas o ensaio geral da truculência premeditada, desproporcional, covarde que iria impregnar o pais por mais de duas décadas. Foram tempos horríveis. Não existe nenhuma razão em golpear a democracia a pretexto de defendê-la.
(um historiador tucano que se tornou porta-voz da “ditabranda” afirma, em livro recente, que regime de exceção mesmo foi só do AI-5 à anistia de 1979; mentira: a tortura e a arbitrariedade vêm de 1964).
O exercício do jornalismo não é confortável sob ditaduras, embora se saiba que veículos de comunicação influentes apoiaram o arbítrio e até se enriqueceram com ele. Com o AI-5, a autocensura virou censura aberta, explícita. Há um episódio que me traz uma afetuosa recordação. Eu trabalhava no Jornal da Tarde, em São Paulo, naquele nefando 13 de dezembro de 1968. A redação ouviu, consternada, a leitura do AI-5 pelo rádio – os aparelhos de rádio eram curiosamente incrustados nas pilastras da redação. Fomos avisados que um censor passaria a ler o jornal antes de sair às bancas. Teria um lugar para ele nas cercanias de nossas mesas. Naquela noite, quando o censor chegou, a redação em peso saiu. Fomos para a calçada (os mais famintos aproveitaram para se saciar com aquele magnífico sanduiche de pernil do Bar Estadão). Depois, voltamos ao trabalho.
Foi um gesto simbólico. Os ditadores e seus empregados costumam desprezar gestos simbólicos. Mas para nós, as vítimas, fez todo sentido. Pena que a gente não soubesse disso em 1964, lá no Aplicação.
(*) Nirlando Beirão é editor especial da seção QI da revista CartaCapital. Seu relato é parte de uma série de artigos para o especialEcos da Ditadura, sobre os 50 anos do golpe militar
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