Maria Antônia
José Miguel Wisnik CULTURA
Em 64 a repressão desarticulou o sistema político, perseguiu a esquerda, investiu contra os sindicatos, mas deixou funcionando uma vida universitária e artística que era majoritariamente oposta ao regime.
É sabido, embora muitas vezes esquecido e confundido, que depois do golpe militar de 1964, e até o AI-5, no final de 1968, viveu-se no Brasil um período de exuberante cultura pública. Em 64 a repressão desarticulou o sistema político, perseguiu a esquerda, investiu contra os sindicatos, as organizações operárias, mas deixou funcionando uma vida universitária e artística que, de modo contraditório, era majoritariamente oposta ao regime.
Entrei no curso de Letras da USP, que funcionava na Rua Maria Antonia, em 1967. Calculo que grande parte dos acontecimentos marcantes a que me referi, os festivais, os teatros, além dos cinemas exibindo Glauber Rocha, aconteceu num raio não maior do que o de dois quilômetros em torno da faculdade. O público estudantil era o combustível daquela efervescência, e se sentia no umbigo do mundo em que o vietcongue derrotava o império. As aulas se comunicavam com o que acontecia nas ruas, nas casas de espetáculo e na televisão. A universidade em que tantos se formaram, como é o meu caso, foi a de dentro das salas de aula e a desse entorno.
No movimento estudantil da faculdade, o Partido Comunista Brasileiro era a ponta mais à direita do mundo politicamente admitido. O Partidão, no qual militava clandestinamente meu tio Elson Costa, em meios operários, recusava a via armada e apostava numa ampla aliança de classes como saída da ditadura, que iria dos trabalhadores das fábricas e do campo à classe média progressista e à burguesia nacional, opostos idealmente ao inimigo externo (o imperialismo) e ao inimigo interno (o latifúndio). Essa concepção clássica da esquerda brasileira, nacional-populista e aliancista, que ressoava na fé festiva, expressada nos festivais da canção, de que a ditadura cairia muito em breve graças à força popular (tantos hinos de protesto disseram isso), se contrapõe à dos grupos que desacreditaram dessa visão e partiram para a vanguarda da guerrilha urbana e rural.
O alarme da radicalização estética, que ecoava polemicamente a radicalização política, foi dado pelas canções tropicalistas (como “Divino maravilhoso” e “É proibido proibir” em ambiente de festival) e rebatido por “Pra não dizer que não falei das flores”, com a sua cantilena processional de chamado para a luta (“Vem, vamos embora/ que esperar não é saber”).
A grandeza sacrificial de uns, com tudo que possa ter havido de ilusão nas suas apostas, e quem somos nós para dizer isto, se choca com a baixeza torpe assumida pelo outro como programa de vida.
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