“O exército, dessa vez, não se retirou”: um livro mostra a relação ‘pragmática’ da Inglaterra com a ditadura
“No século XIX, nós possuíamos tudo nesse país, com exceção apenas do nome. O Brasil era efetivamente uma colônia mercantil britânica. Nós monopolizávamos o comércio do país. Depois, construímos portos, estradas e ferrovias. No século XX, vendemos tudo para pagar por duas guerras mundiais, ou perdemos a concessão. Agora, somos uma sombra fraca do que fomos um dia. Será que podemos recuperar alguma das antigas posições? Será que de fato queremos?”
Em 1967, o embaixador inglês John Russell traduzia assim a relação e os interesses de seu país com o Brasil. Esse documento, e muitos outros, fazem parte do recém-lançado “A Ditadura que o Inglês Viu”, de Geraldo Cantarino.
Nascido em Niterói e radicado na Inglaterra há 15 anos, com passagens pelas redes Globo e Bandeirantes, Cantarino reuniu papeis confidenciais guardados no Arquivo Nacional, em Londres, recolhidos durante um ano e meio de pesquisas. “Eu nasci em 1964 e cresci ouvindo muitas histórias desse período. Não tem como a gente não se envolver e querer saber mais para entender o que se passou”, disse ele ao DCM.
Cantarino esmiuça a viagem de Geisel à Grã-Bretanha em 1976, a primeira de um presidente brasileiro à Ilha. “A visita gerou centenas de correspondências diplomáticas e tornou-se o episódio com maior volume de documentos do período da ditadura no Arquivo Nacional britânico. Como resultado dessa visita, cinco substanciais acordos comerciais foram assinados ou rubricados”, afirma.
A seguir, trechos da entrevista de Geraldo Cantarino para o DCM.
Torturas
Essas acusações chegavam à Inglaterra, eram publicadas na imprensa e provocavam reações na população em geral e até entre deputados no Parlamento britânico. Uma pasta catalogada como secreta reúne documentos que expressam essa preocupação internacional com violações de direitos humanos. Entre eles estão dezenas de cartas enviadas, no início de 1972, por membros de diferentes grupos da Anistia Internacional na Inglaterra e Escócia para o governo britânico, em protesto contra maus-tratos e tortura de presos políticos no Brasil. Em 1974, uma nota interna e confidencial do governo britânico afirma o seguinte: “A posição pública do governo brasileiro sobre tortura é que ela não está autorizada nem aprovada. No entanto, não há dúvida de que a brutalidade e a tortura ocorrem de fato, como tão frequentemente acontece em regimes autoritários com uma poderosa polícia”.
Seqüestro
Na segunda-feira, 22 de junho de 1970, dia seguinte à vitória da seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo no México, o embaixador britânico na época, Sir David Hunt, enviou um telegrama confidencial notificando Londres do risco de sequestro para ser trocado por prisioneiros políticos, conforme ocorreu com os embaixadores dos Estados Unidos e da Alemanha, e posteriormente da Suíça. A informação sobre o possível atentado foi fornecida, inicialmente, pelo Centro de Informações da Marinha (Cenimar) e repetida sete meses depois pelo serviço de inteligência do Exército brasileiro. O diplomata britânico teve a sua segurança reforçada e evitava passar pelos mesmos caminhos nos mesmos horários.
A visita de Geisel
Ao contrário dos três militares que o antecederam na presidência, o general não vinha diretamente de funções no Exército. Tinha sido presidente da Petrobras por quatro anos. Além disso, ao tomar posse, ele anunciou sua intenção de “governar com o mínimo necessário de restrição interna para manter a segurança nacional”, como observou Derek Dodson, embaixador britânico no Brasil. Essa perspectiva de liberalização se tornaria peça-chave na justificativa do convite junto à opinião pública britânica.
Havia oportunidades extremamente vantajosas para a indústria britânica no fornecimento de equipamentos e serviços ao Brasil em três setores: siderúrgico, ferroviário e energético. Assim, “foi finalmente decidido que o presidente Geisel deveria ser convidado pelo governo de Sua Majestade a fazer uma visita à Grã-Bretanha em 1976”. Contribuiu para a decisão o fato de o presidente Geisel já ter sido convidado para visitar a França e o Japão naquele mesmo ano. Após uma longa demora na resposta do lado brasileiro, o que acabou gerando especulações sobre a visita, o convite formal da rainha foi entregue no dia 11 de fevereiro de 1976, em Brasília. No mesmo dia, uma moção de protesto foi apresentada na Câmara dos Comuns pelo deputado trabalhista Martin Flannery e cinco outros parlamentares, recolhendo em pouco tempo 112 assinaturas.
Herzog
Em um dos documentos consultados, o oficial de informação do consulado britânico em São Paulo, John Guy, confidenciou o conteúdo de uma conversa reservada que tivera com o cônsul-geral da França, Michel de Camaret. Nessa conversa, o cônsul francês contou que tinha sido informado que Herzog havia sido torturado por seis a sete horas antes de morrer. Sua fonte para essa informação era um cidadão francês que estava detido há cerca de 30 dias também no DOI-Codi. Portanto, já havia naquela época provas que derrubavam a versão oficial de morte “por voluntário suicídio por enforcamento”.
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O livro traz também um despacho confidencial do embaixador John Russell três meses antes de deixar o posto. Intitulado “O declínio e a queda da democracia no Brasil: governo militar e um presidente prisioneiro”, foi dirigido ao ministro das Relações Exteriores e assinado com data de 15 de maio de 1969. Ao realizar a intervenção militar, o exército, diz Russell, exerceu o seu tradicional papel: “estabilizar e se retirar”. Só que “dessa vez não se retirou”.
O parecer de Russell:
Um novo elemento foi, assim, injetado na vida pública, ou seja, o contínuo exercício pós-crise do controle militar, que é, inevitavelmente, acompanhado da esterilização da vida política do país. O Exército colocou-se agora, firmemente, acima da lei e extinguiu aquelas mesmas liberdades que interveio para defender. Tendo provado o doce e inebriante sabor do poder, os coronéis (expressão que compreende todo o oficialato politicamente consciente das três Forças, de segundo-tenente a general de quatro estrelas) estão relutantes em retornar aos seus quartéis maçantes.
Na América do Sul, o termo “governo militar” abrange um amplo espectro político, desde a clássica opressão fascista ao constitucionalismo liberal imposto. O conceito não soa, necessariamente, hostil aos ouvidos latino-americanos ou carrega as implicações pejorativas que lhe são intrinsecamente atribuídas em Westminster. Mais de um país aqui na América do Sul tem sido grato ao seu Exército pela restauração de suas instituições democráticas.
A história, penso eu, irá dizer que, no interesse a longo prazo do Brasil, a revolução de 1964 foi benéfica e até necessária. A outra alternativa seria certamente um desastre. Por extensão, o mesmo poderia ser dito, inicialmente, sobre a reafirmação da Revolução em dezembro de 1968. Em quatro anos de poder, os altos propósitos morais de 1964 tinham decaído e havia espaço para uma reforma acentuada, tanto no Executivo como no Legislativo. Porém, começo a ter agora uma sensação desagradável de que o expurgo foi longe demais e continua muito longo. Seria inútil fingir que a democracia prática sobrevive hoje no Brasil.
É verdade que o homem comum não se queixa de estar sob um regime autoritário. É sobre as liberdades políticas superiores que os coronéis passam por cima. Habeas corpus está suspenso, a imprensa rigidamente censurada, o Congresso indefinidamente em recesso, líderes de oposição em números cada vez maiores destituídos de seus direitos políticos. (O Brasil felizmente não tem a pena de morte).
Eleições populares estão adiadas sine die, a classe trabalhadora proibida de fazer greve, as universidades subjugadas e o Supremo Tribunal Federal reduzido à conformidade, enquanto as Forças Armadas em todo o país arrogam às suas muitas personas os simultâneos e inapeláveis papéis de promotor público, juiz, júri e carcereiro. Os banimentos continuam, e, no final de abril, uma nova lista com mais de cem cassações foi divulgada.
Os liberais, os intelectuais, a imprensa, as universidades e os jovens não gostam, claro, nem um pouco dessa arregimentação arbitrária, vingativa e aparentemente contínua. Entretanto, na opinião da massa da burguesia e das classes trabalhadoras, o principal sentimento, penso eu, é de alívio pela restauração da ordem pública e por ter parado um pouco a corrupção e a expectativa de ameaça de uma tomada de poder da esquerda.
Não há em lugar nenhum qualquer nostalgia da farsa do desonesto Congresso, com seus monótonos bancos de vinil cinza, em Brasília. O Congresso Nacional precisava ganhar o respeito público, e sua suspensão tem sido recebida com indiferença geral.
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