“Tivemos que enfrentar o preconceito das elites, que nunca confiaram na capacidade do povo”, diz Lula, Doutor Honoris Causa de Salamanca
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu nesta quarta-feira (23), o título de doutor honoris causa da Universidade de Salamanca, na Espanha.
O título é o 27º honoris causa recebido pelo ex-presidente. “A instituição te honra, e você, presidente, honra esta universidade, disse Gonzalo Gomes Dacal, catedrático de educação que foi o padrinho da indicação de Lula para receber a honraria de doutor honoris causa em educação e filologia, pelo papel no seu governo em promover a língua espanhola, adotada no ensino brasileiro.
Em seu discurso, Lula falou sobre a emoção de receber o título de uma universidade tão tradicional, com quase 800 anos de idade, e de como o Brasil tem nos últimos 11 anos lutado para avançar na educação, após séculos de atraso, com programas como o Reuni, o Prouni e o FIES, que ampliaram o acesso dos estudantes ao ensino superior. “Tivemos que enfrentar o preconceito das elites, que nunca confiaram na capacidade do povo brasileiro”.
O ex-presidente ressaltou, por exemplo, o aumento do número de estudantes universitários em 11 anos, de três milhões para sete milhões de estudantes e o fato de ter triplicado o orçamento federal para a educação, entre 2003 e 2013.
A universidade de Salamanca tem mais de 300 estudantes do Brasil, em cursos de graduação e pós-graduação, incluindo cerca de 50 estudantes do programa Prouni Internacional.
Leia a íntegra do discurso, (sem improvisos), de Lula na cerimônia de doutor honoris causa em Salamanca.
Magnífico Reitor,
Peço vênia,
É com emoção que recebo esta homenagem da Universidade de Salamanca, que deu imensa contribuição à humanidade em oito séculos de existência.
Tenho consciência de que esta honraria pertence ao povo brasileiro, que tomou seu destino nas mãos e vem empreendendo uma grande jornada de transformações sociais e econômicas nos últimos anos.
Este é uma ocasião especialíssima, pois Salamanca simboliza o Humanismo em todos os campos do conhecimento, e erigiu-se em trincheira da liberdade de pensamento.
É particularmente significativo, para um brasileiro de hoje, que doutores de Salamanca tenham sido os primeiros a reconhecer os indígenas da América como seres humanos e pessoas de direito.
O que nos parece óbvio, no século XXI, foi um gesto de extrema ousadia intelectual e moral, no Século XVI.
Devemos a um espanhol das Canárias, o padre José de Anchieta, a primeira Gramática do idioma dos indígenas do Brasil, publicada na Europa no século XVI.
Por mais de 200 anos, essa Língua Geral, o nheengatu, foi o idioma usado no país, até a imposição do Português como língua oficial na segunda metade do século XVIII.
Tendo-se tornado o mais brasileiro dos espanhóis, José de Anchieta acaba de ser sagrado santo pelo papa Francisco, o primeiro latino-americano no trono de Pedro e o primeiro a ter o Espanhol por idioma materno.
Ousadia e paixão são duas características que o mundo reconhece no povo da Espanha, desde tempos imemoriais.
Ombreando com nossos irmãos lusitanos, os espanhóis se lançaram ao mar num desafio tecnológico e numa aventura humana sem precedentes, 500 anos atrás.
Semearam pelos quatro cantos o idioma de Miguel de Cervantes, o mais universal dos escritores espanhóis.
Quem não se comoveu nestes quatro séculos com as desventuras de Dom Quixote de La Mancha? A humanidade acolheu o cavaleiro da triste figura como o herói que ele verdadeiramente simbolizava – o herói de todos os que ousamos sonhar.
Cervantes pôs nos lábios do Quixote uma apaixonada definição de Liberdade, tratando-a como valor inerente ao espírito humano. Diz o herói ao seu escudeiro:
“A liberdade, Sancho, é um dos dons mais preciosos que o céu deu aos homens. Nada a iguala, nem os tesouros que a terra encerra no seu seio, nem os que o mar guarda nos seus abismos. Pela liberdade, tanto quanto pela honra, pode e deve aventurar-se a nossa vida.”
A história de Salamanca foi escrita pelos que defenderam a liberdade de pensar e de construir o conhecimento.
Foi o exemplo que nos legou Miguel de Unamuno, aquele que ousou defender a inteligência e a vida perante a força do obscurantismo, numa quadra particularmente difícil.
Esta coragem histórica de ser livre faz com que seja especialmente honroso o título Honoris Causa da Universidade de Salamanca.
Magnífico reitor, senhoras e senhores,
Quando assumi a presidência do Brasil, onze anos atrás, recebi da sociedade um mandamento que se resumia numa única palavra: mudança.
Era chegada a hora de superar um modelo injusto, que perpetuava a desigualdade e impedia o pleno desenvolvimento do meu país.
Começamos pelo compromisso de acabar com a fome. Não havia causa mais urgente nem mais emblemática da mudança que precisávamos empreender.
Criamos o programa Fome Zero e, em seguida, o Bolsa Família, que garante uma renda mensal a 14 milhões de famílias e vem proporcionando excelentes melhorias nos indicadores de Educação e Saúde.
Valorizamos os salários e ampliamos o acesso ao crédito para os trabalhadores e para as empresas.
O potencial produtivo da população brasileira foi despertado, num ciclo virtuoso de investimento, consumo e geração de empregos que fez a economia crescer em bases sustentadas.
Garantimos os fundamentos da estabilidade econômica e ampliamos as relações diplomáticas e comerciais com os vizinhos da América Latina, os países da África e os chamados grandes países emergentes.
O mais importante resultado desse esforço coletivo é que 36 milhões de brasileiros saíram da pobreza extrema, 42 milhões alcançaram a classe média e 21 milhões de empregos formais foram criados nesses 11 anos.
O processo que acabo de descrever, em linhas apenas gerais, representou a conquista da cidadania por milhões de brasileiros que estavam à margem do processo econômico e social.
O fato de termos alcançado tais conquistas em um tempo relativamente curto, de apenas uma década, pode causar a ilusão de que foi uma tarefa simples. Não foi.
Tivemos de enfrentar resistências e preconceitos de toda ordem. Especialmente o preconceito de elites que governaram o país ao longo de séculos, sem jamais confiar na capacidade do nosso povo.
Trataram os pobres como um problema sem solução, e o povo brasileiro demonstrou que, na verdade, os pobres e os trabalhadores são a parte essencial das soluções.
O que parecia um sonho de Quixote é hoje a realidade de um país que reduziu as desigualdades internas e se afirmou internacionalmente como uma grande economia.
Magnífico reitor, minhas senhoras e meus senhores,
Libertar-se de um ciclo histórico de desigualdade e injustiça foi apenas o primeiro passo. O Brasil tem um longo caminho pela frente e muitos desafios a superar.
O mais importante de todos é garantir a educação das crianças e jovens, para que tenham um futuro melhor, com as oportunidades que foram negadas a seus pais e avós.
Um grande educador brasileiro, meu companheiro Paulo Freire, destacava a importância da educação no combate à desigualdade. Dizia ele:
“Se a educação sozinha não pode transformar a sociedade, tampouco sem ela a sociedade muda.”
Por isso nos empenhamos tanto, no meu governo e no governo da presidenta Dilma, para dar um salto de qualidade no ensino público brasileiro.
O orçamento federal para a Educação foi triplicado e supera os 33 bilhões de euros. Nenhum outro país ampliou tanto o investimento em Educação nesse período, de acordo com os indicadores da OCDE.
O Brasil tem hoje um Plano Nacional de Educação que contempla todas as etapas, desde a creche até o pós-graduação, da alfabetização de adultos ao ensino técnico.
Todas as iniciativas são importantes quando se trata de Educação.
Nestes 11 anos, abrimos 18 universidades e 146 novos campi, oferecendo oportunidades aos jovens do interior do país. Aumentamos de 12 para 18 a proporção de alunos por professor.
Adotamos um sistema de cotas que favorece o acesso de negros e indígenas ao ensino superior.
Criamos o PROUNI, um programa de bolsas de estudos em troca da isenção de impostos federais, que abriu as portas das universidades particulares para 1 milhão e 300 mil estudantes de famílias pobres.
Enfrentamos a questão do crédito estudantil com o FIES, um programa em que o governo é o avalista dos empréstimos. O FIES já financiou os estudos de 1 milhão e 500 mil universitários.
Graças a essas iniciativas, o número de estudantes nas universidades públicas e privadas dobrou para 7 milhões.
O programa Ciência Sem Fronteiras levou 60 mil jovens a estudar nas melhores universidades do mundo.
Abrimos em 11 anos 365 escolas técnicas, o que representa duas vezes e meia o que foi feito no século passado.
O Pronatec, criado em parceria com as organizações empresariais, está qualificando 6 milhões de trabalhadores.
Nós acrescentamos de oito para nove anos o tempo de estudo no ensino fundamental, e estamos trabalhando para que todas as crianças estudem em tempo integral.
Introduzimos a realização de Olimpíadas de Matemática, Língua Portuguesa e Ciências na escola pública, que despertaram o interesse de mais de milhões e milhões de alunos.
No país de maior população negra fora da África, adotamos no currículo oficial o ensino da Cultura Afro-Brasileira e da História da África.
Inauguramos, em parceria com os países de língua portuguesa, a Universidade Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira.
Valorizamos os professores, criando por lei o piso salarial nacional para os que lecionam em escolas públicas.
Criamos a Universidade Aberta, um sistema de ensino à distância, com mais de 700 polos no interior do país, para dar formação pedagógica aos professores.
Para garantir que todo esse investimento seja sustentado e crescente, aprovamos a lei que destina à Educação 75% dos royalties do petróleo.
Em nome dos brasileiros, quero agradecer o apoio da Universidade de Salamanca ao Programa Ciência Sem Fronteiras.
Agradeço também o apoio do Santander para trazer turmas de alunos do Prouni a esta universidade.
E quero reconhecer a valiosa contribuição do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Salamanca para a divulgação do Brasil na Espanha.
Tudo que estamos realizando no campo da Educação, com a contribuição de valorosos parceiros, tem o sentido de proporcionar um futuro melhor para esta geração e para as que virão depois.
Esta é a maior garantia de que o Brasil continuará se transformando e surpreendendo o mundo com novas e profundas transformações.
Magnífico reitor, senhoras e senhores,
Uma das primeiras medidas do nosso governo no campo da educação foi adotar o estudo do idioma Espanhol como segunda língua no currículo escolar.
É lamentável que essa decisão tenha demorado tanto, diante dos laços históricos e culturais que unem Brasil, Espanha e nossos vizinhos da América do Sul.
Para muitas gerações de brasileiros, a palavra Liberdade soou mais forte, mais verdadeira, quando pronunciada no idioma de Cervantes.
Em espanhol se deram primeiros brados de independência na América do Sul. Em espanhol foram escritas as primeiras constituições republicanas.
Em espanhol foram escritos romances que nos apresentaram a América Latina sob uma nova perspectiva, mágica e realista, e que tanto aproximaram nossos povos.
Nos duros tempos do exílio, na Argentina, no Chile, no México, em Cuba, muitos brasileiros aprenderam a cantar e a sonhar, em espanhol, com a unidade latino-americana.
Avançamos na construção deste sonho, consolidando o Mercosul e criando a União das Nações Sul-Americanas – Unasul, e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e do Caribe – Celac.
A adoção do ensino de espanhol é coerente com esse processo, bem como a criação da Universidade da Integração Latino-Americana – Unila, que tive a alegria de inaugurar ao final de meu governo.
Os países da América Latina têm origens comuns, e as diferenças de idioma não podem constituir um obstáculo à integração.
Ao contrário: o aprendizado do espanhol está revelando a uma geração de brasileiros a imensa riqueza que podemos compartilhar com os vizinhos.
O espírito da integração não se circunscreve ao comércio e à troca de investimentos, campos em que fizemos enormes progressos na última década.
Estende-se à cultura, à Educação e ao mundo do trabalho.
Conhecer o idioma dos parceiros é parte do processo de construção de uma cidadania mais larga, que há de derrubar fronteiras como as que persistem, por exemplo, no reconhecimento mútuo da formação acadêmica.
O espírito da integração se estende, naturalmente, aos irmãos espanhóis e portugueses, cada vez mais presentes na economia e no cotidiano da América Latina.
Nessa construção vamos aprendendo a cada dia, com a troca de experiências e a constante descoberta de valores e identidades.
O fundamental é manter o rumo e seguir adiante, como nos recomenda o belo poema de Antonio Machado: "Caminante, no hay camino, se hace camino al andar.”
Muito obrigado.
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