A reforma agrária
possível
Com dificuldade para criar novos assentamentos, o ministro do Desenvolvimento Agrário aposta no fortalecimento dos já existentes
Rodrigo Martins / Marcelo Camargo - Agência Brasil
Ministro do Desenvolvimento Agrário na primeira gestão de Lula, Rossetto assumiu novamente a pasta há pouco mais de um mês
O governo Dilma Rousseff assentou 75 mil famílias e incorporou cerca de 2,3 milhões de hectares ao programa de reforma agrária, informa o Incra. O resultado parece pífio quando comparado ao desempenho das gestões anteriores. Entre 1995 e 2002, Fernando Henrique Cardoso destinou 21 milhões de hectares a 540 mil famílias. Lula, em seus oito anos de mandato, incluiu outras 614 mil famílias em 48 milhões de hectares. Na média, fazia em apenas um ano o que Dilma conseguiu em três.
Ministro do Desenvolvimento Agrário na primeira gestão de Lula, Miguel Rossetto assumiu novamente a pasta há pouco mais de um mês. Tem a missão de dinamizar a reforma agrária, mas assegura que não houve retrocesso nos anos Dilma. O número menor de assentamentos é atribuído à conjuntura. Num momento em que o agronegócio bate sucessivos recordes de produtividade, há menos terras passíveis de desapropriação. “O grande desafio, agora, é universalizar as políticas públicas aos assentados”.
Na entrevista a seguir, ele fala sobre os novos desafios da reforma agrária. E repele as insinuações sobre seu envolvimento no escândalo de corrupção na Petrobras, enquanto foi presidente da subsidiária de biocombustíveis. “Setores da mídia agem como a Gestapo. Se não encontram um judeu, inventam um”.
CartaCapital: O que explica a redução do número de novos assentamentos no governo Dilma?
Miguel Rossetto: O importante é a dimensão do fenômeno nos últimos dez anos. De 2003 a 2013, 751 mil famílias de brasileiros tiveram acesso à terra. A grande maioria foi beneficiada pela reforma agrária. Mas uma parcela importante, 86 mil pequenos agricultores, por meio de programas de crédito fundiário. No total do período, foram incorporados 51 milhões de hectares. Estes números são impressionantes. Nenhum país do mundo, com dimensões semelhantes ao Brasil, realizou no século XXI tamanho esforço para fazer com que terras produtivas recebessem homens e mulheres dispostos a trabalhar.
CC: Pode ser, mas a maioria dos países desenvolvidos fez a sua reforma agrária até a primeira metade do XX.
MR: É verdade. O Brasil não fez isso no século passado, mas os números atuais são impressionantes. O grande desafio, agora, é cuidar bem das áreas reformadas. Boa parte dos assentamentos ainda não dispõe de toda infraestrutura necessária para assegurar produtividade e qualidade de vida aos beneficiários.
CC: Em vez de novos assentamentos, o foco agora é cuidar das terras já reformadas?
MR: Os dois movimentos representam uma só reforma agrária. Ela começa com a desapropriação e obtenção de uma terra. Ao mesmo tempo, precisamos assegurar a capacidade produtiva e a qualidade de vida das famílias assentadas. Hoje, temos 300 mil famílias com assistência técnica, 200 mil com Luz para Todos, 154 mil com habitação rural. Os equipamentos do PAC Máquinas são usados na melhora de estradas vicinais, mas também nos assentamentos, cobrem cerca de 700 mil famílias. Cada vez mais, os assentamentos se incorporam às áreas beneficiadas por outras políticas públicas. As moradias rurais, por exemplo, fazem parte do programa Minha Casa, Minha Vida.
CC: Mas houve ou não redução do número de novos assentamentos durante o governo Dilma?
MR: Houve uma mudança na conjuntura agrícola. Pelas regras do nosso País, a capacidade de obtenção de terras para fins de reforma agrária flutua conforme o descumprimento da sua função social. Hoje, não existe mais tanta terra improdutiva como no passado. Por um lado, os assentamentos elevaram as taxas de emprego no campo, o que diminui a pressão por trabalho. De outro, tivemos um desempenho importante do setor agropecuário, que vem aumentando suas taxas de produtividade. Isso, evidentemente, reduz o estoque de terras disponíveis. O Incra melhorou sua capacidade operacional, faz mais de 800 vistorias por ano. Mas o retorno deste trabalho é menor que dez anos atrás. E por quê? Há menos áreas improdutivas e mais exigências para qualificar uma área para a reforma agrária. Muitas terras não oferecem condições de solo, clima e localização adequadas para a agricultura. É preciso assegurar a subsistência das famílias com um certo excedente, para que elas possam prosperar.
CC: Não é o caso de revisar os índices de produtividade para definir se uma terra cumpre ou não sua função social?
MR: Este indicador perdeu força na medida em que houve uma padronização nas grandes lavouras. As tecnologias aplicadas no campo homogeneizaram as taxas de produtividade num patamar elevado, o que diminui a capacidade de captar terras para a reforma agrária. Precisamos fazer com que os agricultores familiares participem desse período de prosperidade. A ideia é fortalecer essa base de pequenos e médios produtores para que eles exerçam um papel cada mais relevante na economia. Em 2003, o Pronaf ofereceu 2,4 bilhão de reais aos agricultores familiares. Em 2013, o investimento chegou a 20 bilhões.
CC: Qual é o peso dos assentamentos na produção de alimentos?
MR: De acordo com o último Censo Agropecuário, são unidades bastante produtivas, que se dedicam, basicamente, ao cultivo de feijão, mandioca, milho e à produção leiteira. A renda varia de 3 a 4 salários mínimos. Há, contudo, a necessidade de melhorar a capacidade produtiva. Trabalhamos pela aprovação da medida provisória 636, de 2013, que visa liquidar os créditos concedidos aos assentamentos desde 1985. Há um grande número de agricultores em cadastros de inadimplência, o que restringe o acesso deles um novo e positivo crédito agrícola. Será possível regularizar dos débitos de mais de 1 milhão de famílias.
CC: De fato, em 20 anos, a área plantada com grãos cresceu 40%, enquanto a produtividade aumentou 220%. O agronegócio tem um desempenho exuberante, mas escorado no velho modelo da monocultura. A concentração de terras ainda é muito grande.
MR: Todos os que produzem em respeito às normas trabalhistas e ambientais fazem parte do projeto nacional. O País tem capacidade de conviver com diferentes modelos agrícolas. O fundamental é permitir o aumento da produção agrícola de forma sustentável e pensarmos numa estratégia de produção capaz de garantir segurança alimentar aos brasileiros e gerar excedente. Avançamos em muitos aspectos. Entramos no século XIX com um sistema de georeferenciamento de terras, indispensável para a regularização fundiária, e outro de cadastro ambiental, propiciado pelo novo Código Florestal.
CC: Se pensarmos no modelo clássico de reforma agrária, ocorrido nos países europeus, nos Estados Unidos, no Japão, houve uma melhor redistribuição das terras, em alguns casos com a imposição de limites ao tamanho das propriedades.
MR: Não estamos no final do século XIX tampouco no século XX. Todos os grandes programas são historicamente datados, ocorreram conforme a conjuntura da época. Buscamos uma reforma agrária que assegure a produção e a qualidade de vida dos assentados dentro dos marcos legais existentes no Brasil.
CC: O latifúndio continuará existindo desde que seja produtivo...
MR: Sim, por conta da Constituição e da legislação brasileira. As grandes propriedades que cumprem com suas obrigações continuarão produzindo no País. O importante é reforçar essa base de pequenos e médios produtores, que representam 70% do emprego no campo e que tem recebido apoio do governo federal.
CC: E nas terras onde há trabalho escravo?
MR: Não há instrumentos jurídicos para desapropriá-las. Infelizmente, o Congresso ainda não aprovou a PEC do Trabalho Escravo.
CC: O MST fala muito sobre uma nova estratégia: aproximar-se dos centros urbanos, formar assentamentos nas periferias das cidades para assegurar a produção de frutas e hortaliças.
MR: A produção regionalizada faz parte da nossa estratégia. Muitas vezes, alimentos consumidos no Norte e no Nordeste vêm de estados como São Paulo ou da região Sul, quando há a possibilidade de produção local. Isso melhora a qualidade dos alimentos e diminui o seu preço. Apoiar os agricultores e assentados nesses cinturões faz parte, sim, de uma estratégia importante. Em Goiânia, por exemplo, 65% das escolas municipais são abastecidas por produtos da agricultura familiar.
CC: Qual é o peso da agricultura familiar na produção nacional?
MR: Da produção total, cerca de 30%. O restante vem de médios e grandes produtores. O curioso é que as pequenas propriedades tem produção média por hectare superior às grandes lavouras.
CC: Uma ideia sempre associada à reforma agrária seria a capacidade de evitar o êxodo rural e o inchamento dos centros urbanos. É possível observar esse fenômeno no Brasil?
MR: Sem dúvida. Interessa ao País uma melhor distribuição da ocupação territorial. Nas pequenas e médias cidades, há uma expansão da oferta de serviços públicos. Mais escolas, mais universidades. O Programa Mais Médicos tem um impacto significativo na melhora da assistência de saúde nas comunidades rurais, assim como o acesso à energia elétrica. Há uma nítida diminuição dos fluxos migratórios, sobretudo para as grandes capitais. Temos uma estabilidade demográfica maior. Na medida em que as políticas públicas se consolidarem no campo, haverá mais qualidade de vida e isso ajudará a fixar as pessoas no campo. Um dos dados positivos é a redução da violência rural. Em 2003, convivemos com tensões altíssimas, houve cerca de 50 assassinatos em decorrência de conflitos agrários. No ano passado, foram cinco. Talvez o maior exemplo do êxito das políticas públicas seja a forma como superamos a seca no Nordeste. Foi a maior estiagem dos últimos 50 anos, e não vimos saques ou o desespero de populações desamparada. A assistência chegou, com cisternas, carros-pipa, Bolsa Família. O programa Garantia Safra apoiou 1,2 milhão de famílias.
CC: Por outro lado, a criação de gado, ovinos e caprinos sofreu um baque muito grande, cerca de 4 milhões de animais morreram de fome. A Conab prometeu enviar estoques de milho para alimentá-los, mas muitos criadores não receberam. O milho não chegava ao Nordeste, enquanto exportávamos milhões de toneladas para os Estados Unidos produzir etanol.
MR: Tivemos problemas importantes de logística. Muitas regiões não tinham onde armazenar esses estoques. Eu não nego os problemas. Só quero demonstrar como os últimos 10 anos foram de conquistas e avanços importantes na agenda dos movimentos sociais e da agricultura no Brasil, em todos os níveis.
CC: Qual é a meta agora? Na hipótese de Dilma Rousseff se reeleger, como o senhor imagina que o Brasil estará em 2018?
MR: Com direitos universalizados. Conseguimos nacionalizar as políticas públicas. Todos os estados brasileiros tem acesso a um conjunto de programas, como Luz para Todos, habitação rural e crédito agrícola. Mas eles não estão universalizados.
CC: E quantas famílias serão assentadas neste período?
MR: Não é possível prever, dependerá da existência de terras disponíveis para a reforma agrária. Mas as famílias assentadas estarão em outro patamar. Vivemos tempos de crescimento, de distribuição de renda e de expansão de direitos sociais, em todos os níveis: educação, saúde, moradia. Nosso desafio é universalizar os programas, fazer chegar a todos os agricultores.
CC: Recentemente, seu nome acabou associado a um indiciado no escândalo da Petrobras, o ex-diretor Paulo Roberto Costa. Segundo o jornal Folha de S.Paulo, seus contatos telefônicos, identificados apenas com a letra “T”, estão em uma agenda dele apreendida pela Polícia Federal.
MR: Fui presidente da Petrobras Biocombustível e trabalhei com o diretor Paulo Roberto por quatro anos. Ele era diretor de abastecimento, enquanto eu era responsável pela produção de biodiesel e etanol. Evidentemente, tínhamos uma agenda de trabalho muito intensa. Além disso, Paulo Roberto fazia parte do Conselho de Administração da Petrobras Biocombustível, avaliava todos os investimentos da subsidiária. Portanto, não há surpresa que ele tenha em sua agenda contatos meus. Surpresa, para mim, é criar um ambiente de suspeição por conta disso.
CC: Questiona-se ainda a aquisição de uma usina no Paraná. Uma empresa privada a comprou por 37 milhões de reais e, seis meses depois, vendeu metade do negócio à Petrobras Biocombustível por 55 milhões.
MR: Esse negócio tem sido exaustivamente explicado desde 2012. Respondemos ao Tribunal de Contas da União, passamos por auditoria, fiz esclarecimentos à Câmara, aceitei o convite da Comissão de Agricultura para prestar todas as informações necessárias. O preço foi estabelecido com base em laudos técnicos. O negócio é absolutamente adequado e correto. Não tem cabimento levantar suspeitas contra uma pessoa pelo fato de seu telefone estar na agenda de um investigado. Deve haver uns 500 telefones lá. Todos são suspeitos? Desculpe-me, mas parece coisa da Gestapo. Se não encontram um judeu, inventam um.
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