quinta-feira, 17 de abril de 2014

Lênin, Aécio e a coerência histórica                                        

Aécio Neves pede uma CPI em defesa da Petrobras; em 2013 lançou uma agenda eleitoral de oito mil palavras, sem destinar uma ao pré-sal.

Saul Leblon                                   

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A desabalada defesa da Petrobrás --motivada pelo prejuízo que a operação Pasadena trouxe à estatal-- revelou um zelo pelo interesse nacional que o país desconhecia.

A síntese arrematada da novidade  é o empenho do presidenciável Aécio Neves em  encaixar uma CPI sobre o tema no calendário eleitoral de 2014.

A política, como se sabe, não é o reino da linha reta. Política é economia concentrada, contém o conjunto das contradições da sociedade. Seguir uma  reta num pântano é missão para santidades, não para pecadores.

Aécio ou Lênin  não pode  ser julgado por atos isolados.

Para que não se firme, porém,  a impressão de que a política é o inferno da hipocrisia convém dar  aos eventos a ponderação da coerência histórica, cotejada  pela correlação de forças determinante em cada época.

Tomados esses cuidados, o ambiente político  adicionalmente turvado pelas disputas eleitorais deixa de passar a falsa impressão de que todos os gatos são pardos.

Quando se afunila  a visão, ao contrário,  estamos a um passo do moralismo.

Não importa que  ele venha entrecortado de bem intencionados  sustenidos radicais.

O moralismo traz  no DNA a prostração  política encarnada nas legendas redentoras do ‘tudo ou nada’.

O ‘nada’ muito frequentemente tem saído vitorioso nessa prática de dar a história o tratamento de uma roleta de cassino.

Ou não será nisso que o conservadorismo aposta para levar a eleição de outubro a um segundo turno do tipo ‘todos contra o bando do PT’?

O incentivo quase paternal aos protestos contra a Copa do Mundo dimensiona o valor elevado que o jornalismo  isento atribui a essa aposta.

É nesse ponto, quando o alarido  do presente embaça  a  percepção do futuro,  que a  balança crítica  deve escrutinar o saldo da coerência  no prato da direita e no da esquerda.

Um exemplo extremo, à esquerda, a título de ilustração, foi a política de capitalismo de Estado, adotada por Lênin,  em março de 1921, com amplas concessões ao capital privado.

Quando a NEP (nova política econômica) foi instaurada, a Rússia revolucionária sangrava ferida de fome, desabastecimento, desemprego e colapso na infraestrutura.

A NEP  regenerou  práticas capitalistas contra as quais se fez a revolução.

Por exemplo: o investimento privado do capital estrangeiro foi liberado no setor varejista  (o comércio atacadista foi preservado em mãos do Estado).

Enquanto  avançava a criação de cooperativas no campo, a  NEP proibia novas expropriações de indústrias nas cidades; a nacionalização de fábricas só poderia ocorrer  após minuciosa avaliação do governo revolucionário.

Não só.

Foi restaurada a livre contratação de mão de obra.

O salário igualitário foi suprimido.

O critério de produtividade foi reposto no cálculo das folhas.

E mais: a população passou a pagar pelos serviços de água, transportes, moradia, jornais, correio e eletricidade, gratuitos no início da revolução.

A ninguém ocorre  carimbar em Lênin o epíteto de ‘covarde’ por ter cedido espaços ao capital quando a alternativa era perder tudo.

Pode-se (deve-se) discutir exaustivamente os gargalos e erros que levaram a experiência de 1917 a desaguar na queda de 1989.

Carta Maior tem opiniões claras sobre isso: uma delas remete à natureza indissociável entre socialismo e participação direta da sociedade na sua construção.
É impossível, porém,  negar à biografia de Lênin a coerência por ter reagido como reagiu ao risco de uma metástase do regime, em 1921.

Feito esse entrecho à esquerda, voltemos à coerência de Aécio Neves e assemelhados na defesa, algo tardia, que fazem agora  da Petrobrás.

Avulta aqui o oposto na balança.

Não há qualquer coerência entre o que se diz no presente, o que se praticou  no passado e o que se promete consumar no futuro .

Alguém duvida que entre as ‘medidas impopulares’, das quais o tucano se jacta de ser um portador destemido, encontra-se a quebra do regime de partilha do pré-sal, que hoje garante a redistribuição da renda petroleira na forma de educação, saúde e infraestrutura aos nossos filhos e aos filhos que um dia eles terão?

Não estamos falando de um detalhe tangencial à luta pelo desenvolvimento brasileiro.

O pré-sal, é forçoso repetir quando tantos preferem esquecer, mudou o peso geopolítico do Brasil ao adicionar à sua riqueza uma reserva da ordem de 50 bilhões de barris de óleo.

A preços de hoje isso significa algo como US$ 5 trilhões.

É como se o Brasil ganhasse dois anos de PIB  --sob  controle político da sociedade-- para se recuperar  das mazelas seculares incrustradas em seu tecido social.

Não se trata tampouco de um futuro remoto.

O pré-sal já alterou a curva de produção da Petrobras.
 
A estatal, que levou 60 anos para chegar à extração  de dois milhões de barris/dia, vai dobrar essa marca em apenas sete anos.

A ignorância tudo pode, mas quem desdenha dessa mutação em curso sabe muito bem  o que está em jogo.

Dez sistemas de produção do pre-sal entram em operação até 2020.

Hoje, os novos reservatórios já produzem 400 mil barris/dia.

Em 2020 serão mais dois milhões de barris/dia.

A curva é geométrica.

Para reter as rendas do refino  na economia brasileira, a capacidade de processamento da Petrobras crescerá proporcionalmente: de pouco mais de dois milhões de barris/dia hoje, alcançará  3,6 milhões de barris/dia em seis ou sete anos.

O conjunto requer  US$ 237 bilhões em investimentos até 2017.

É o maior programa de investimento de uma petroleira em curso no mundo.

Seus desdobramentos não podem ser subestimados.

A infraestrutura é o  carro-chefe do investimento nacional nesta década. Mais de 60% do total de R$ 1 trilhão a ser gasto na área estará associado à cadeia de óleo e gás.

Objetivamente: nenhuma agenda política relevante pode negligenciar aquela que  é a principal fronteira crível do desenvolvimento  brasileiros nas próximas décadas.

Mas foi  exatamente esse sugestivo lapso que o agora patriótico Aécio Neves cometeu em dezembro de 2013, quando lançou sua agenda eleitoral como presidenciável do PSDB.

Em oito mil e 17 palavras encadeadas em um jorro espumoso do qual se extrai ralo sumo, o candidato tucano  não mencionou uma única vez o trunfo que mudou o perfil geopolítico do país, o pré-sal.

A omissão  fala mais do que consegue esconder.

Seu diagnóstico sobre o país, e a purga curativa preconizada a partir dele, são incompatíveis com a existência desse  incômodo cinturão estratégico a encorajar a construção de uma democracia social , ainda que tardia, por essas bandas.

Ao abstrair o pré-sal,  a agenda de Aécio para o Brasil mais se assemelha a uma viagem de férias à Brazilândia do imaginário conservador, do que à análise do país realmente existente –com seus gargalos e trunfos.

Só se concebe desdenhar dessa janela histórica  –como o fez o agora empedernido defensor da CPI -- se a concepção de país embutida em seu projeto negligenciar deliberadamente certas  urgências.

Por exemplo, a luta pela reindustrialização brasileira, da qual as encomendas do pré-sal podem figurar como importante alavanca, graças aos índices de nacionalização consagrados no regime de partilha.

Mais que isso:  se, ao contrário, a alavanca acalentada pelo tucano, para devolver dinamismo à economia,  for como ele gosta de papagaiar aos ouvidos do dinheiro grosso,  o chamado ‘choque de competitividade’.

Do que consta?

Daquilo que a emissão conservadora embarcada na mesma agenda alardeia como inevitável dia sim, o outro também.

O velho  recheio  inclui  ingredientes tão intragáveis que se recomenda dissimular em um contexto eleitoral, a saber: ajuste fiscal drástico, com os custos sociais sabidos; ampla abertura comercial –com a contrapartida imaginável de desindustrialização adicional e desemprego;  livre movimento de capitais; privatização do que sobrou das estatais (quando Aécio fala em ‘estatizar’ a Petrobrás é a novilíngua, em ação beligerante contra a inteligência nacional); cortes de direitos trabalhistas e de poder aquisitivo real dos salários –para reduzir o custo Brasil e tornar o país ‘atraente’ ao capital estrangeiro.

Por último, ressuscitar a lógica  da Alca e atrelar a diplomacia do Itamaraty  aos interesses  norte-americanos.

Em resumo, um neoliberalismo requentado, indiferente ao prazo de validade vencido na crise de 2008.

Reconheça-se, não é fácil pavimentar o percurso oposto, como vem tentando o Brasil desde então.

Com a maturação da curva do pre sal  as chances de êxito aumentam geometricamente nos próximos anos.

Não é uma certeza, é uma possibilidade histórica.

Os efeitos virtuosos desse salto no conjunto da economia exigem uma costura de determinação política para se efetivarem.

Algo que a agenda eleitoral do PSDB omite, renega e descarta.

Em nome da coerência, Aécio Neves deveria adicionar ao seu pedido de CPI  uma explicação ao país sobre o destino reservado ao pre-sal,  caso as urnas de outubro deem a vitória a quem assumidamente se propõe a ser uma réplica  do governo FHC em Brasília.

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