Mestre Joel fala por nós: vamos digerir a ofensa com nosso orgulho e alegria
Fernando Brito
Aos meus amigos e leitores “politicamente corretos” – que me condenaram por achar que “embarco” numa onda que é no fundo racista – faço questão de reproduzir o magnífico artigo de Joel Rufino dos Santos, na FolhaSP.
Joel, um intelectual brilhante, veterano historiador e lutador da cultura brasileira- com quem partilho um passado brizolista e memórias de um tempo de que ele talvez não se lembre, porque eu era um menino e meu pai amigo de outra historiadora negra, a Dulce – vai ao mesmo ponto que atingiu Daniel Alves: o problema é que deixou de ser vergonhoso ser racista.
Ao contrário, os “intelectuais” da nova direita (existe direita nova?) procuram desqualificar as lutas históricas deste país dizendo que não há racismo e que o movimento anti-racista é arcaico e simplista – da mesma forma como torcem o nariz para o nacionalismo.
A barbárie?
Não, essa é natural, é a lei do “mercado” transposta para o social.
Este tempo exige de nós que percamos a vergonha, também. É bom ser negro, mulato, mestiço, brasileiro. Nos orgulhamos disso, embora isso também não nos faça melhor do que ninguém, exceto num sentido: sendo assim nunca nos tratarão impunemente como seres humanos ou povo inferiores.
Intelectuais mansos viram conservadores, podem crer, porque mudar significa não ser manso e fazer barulho.
Quando ficamos com medo do inconvencional, da alegria, da irreverência, somos mais fracos, porque somos mais tristes.
Mas quando a gente encara, de cabeça erguida, e devolve devidamente digerida a banana que nos lançam, tiramos nossa dignidade do particular e a colocamos onde ela precisa estar para produzir mudança: nas ruas.
Banana é bom e faz crescer
Joel Rufino dos Santos
Há 70 anos, havia consenso entre os analistas sobre o declínio do racismo antinegro no Brasil. Modernização capitalista, miscigenação intensa e continuada garantiam essa previsão. A promiscuidade entre as raças, para o bem e para o mal, impedira a segregação –que marcava, essa sim, o caso norte-americano.
Os brasileiros negros, quando se organizavam em clubes recreativos, de autoajuda, escolas noturnas profissionalizantes, declaravam querer isso: integrar o negro, fazendo-o valer mais no mercado de trabalho para, dessa forma, participar do progresso nacional. Queriam se sentir tão ou mais brasileiros que os outros.
Após 125 anos do fim do escravismo –do escravismo, porque o trabalho escravo ainda existe–, as manifestações de racismo antinegro explodem nos estádios brasileiros.
Muitos se surpreenderam com a agressão da torcida do Mogi ao meia Arouca, do Santos, em março, no dia seguinte à agressão sofrida por um juiz no Rio Grande do Sul. No entanto, desde que o futebol virou uma profissão, lá por 1930, grandes craques negros –um Fausto, um Jaguaré, um Valdemar, um Leônidas, um Zizinho, um Pelé– e pequenos, cujo número é infinito, foram hostilizados e prejudicados pelo racismo. Os que agora se surpreendem –cronistas, apresentadores, jogadores, técnicos– não aprenderam na escola como nosso país se formou. De brincadeira, vão dizer que faltaram a essa aula. Não sejam rigorosos consigo mesmos, os que foram à escola não tiveram essa aula. Monteiro Lobato confessou que a única coisa que se lembra da história do Brasil é que o bispo Sardinha foi devorado pelos caetés.
Todos sabem que o Brasil teve escravidão. Alguma coisa nos impede de saber mais. Em alguma aula do curso elementar, nos disseram que “os negros foram escravos porque os índios não se adaptaram à escravidão”;. Como se diz na gíria, fala sério. A escravidão de índios no Brasil foi a maior da América do Sul, durou 250 anos. A dos negros, 350. O racismo, antinegro e anti-índio, é uma das colunas da formação brasileira.
O nosso racismo é envergonhado, tanto que alguém acusado de preconceito e discriminação racial se defende dizendo que tem amigos e, às vezes, até parentes negros. Diante de uma ofensa racista, sentimos vergonha pelo ofensor –no fundo, de nós mesmos. Tinga e Arouca são artistas doces e inteligentes da bola, que vergonha por quem os agrediu! Temos racismo em todas as suas formas –o preconceito, mais brando, a discriminação, mais eficaz, o racismo propriamente dito, estrutural, que organizou as nossas relações de trabalho, nossos hábitos, nossa moral pública.
No Carnaval, um bloco cantou: “Olha a cabeleira do Zezé, será que ele é, será que ele é?”. O que se insinua aí é que todos sabem que ele é, mas precisam comunicar a condição do Zezé. Bom, essa é uma peculiaridade do racismo brasileiro: como tem vergonha de ser, é preciso uma rede Brasil curtir a novidade, sem exceção. O país sempre foi racista –e chega a comover o esforço de militantes do movimento negro para convencer o Brasil do óbvio.
Por que a perda da vergonha? Um dos vetores deve ser a barbárie, palavra que tem milhares de acepções. Aqui é a vida que transcorre toda no estágio dos instintos primários: reproduzir, comer, sobreviver. Ou dito de outra maneira: sexo, consumo, violência. Há uns 50 anos, a vida do mundo civilizado parece caminhar para trás, não se diferenciando mais da vida primitiva. Não há hoje povo conhecido sobre a Terra que seja bárbaro. Todos criaram uma teia, às vezes fina, às vezes densa, de civilização –poesia, música, curiosidade intelectual, língua, filosofia, fundamento (outro nome de tradição) e destino (transcendência). Salvo as massas urbanas. Essas estão prontas, “everytime”;, “everywhere”;, para o espetáculo das torcidas organizadas.
A vergonha de ser racista é que acabou, ou está acabando. Se na Copa pularem feito macacos atirando bananas no campo, dou meu conselho aos jogadores negros. Façam como Daniel Alves esta semana: descasquem as bananas e comam. Essa também é uma tradição brasileira: o que vem a gente traça. No final do processo digestivo, a ofensa se transformará no que verdadeiramente é –aquela “coisa” amarelada.
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