Não penso, logo...
relincho
Um glossário com a lista dos principais clichês repetidos pelas redes sociais para justificar, no discurso, um mundo de violência e exclusão.
Matheus Pichonelli 

Dizem que uma mentira repetida à exaustão se transforma em verdade. Pura mentira. Uma mentira repetida à exaustão é só uma mentira, que descamba para o clichê, que descamba para o discurso. E o discurso, quando mal calibrado, é o terreno para legitimar ofensas, preconceitos, perseguições e exclusões ao longo da História. Nem sempre é resultado da má-fé. Por estranho que pareça, é na maioria das vezes frut o da indigência mental – uma indigência mental que assola as escolas, a imprensa, as tribunas, as mesas de bares, as redes sociais. Com os anos, a liberdade dos leitores para se manifestar sobre qualquer assunto e o exercício de moderação de comentários nos levam a reconhecer um clichê pelo cheiro. Listamos alguns deles abaixo com um apelo humanitário: ao replicar, você não está sendo original; está apenas repetindo uma fórmula pronta sem precisar pensar sobre tema algum. E um clichê repetido à exaustão, vale lembrar, não é debate. É apenas relincho*.
“Negros têm preconceitos contra eles mesmos”
Tentativa
clássica de terceirizar o próprio racismo, é a frase mais falada das redes
sociais durante o Dia da Consciência Negra. É propagada justamente por quem
mais precisa colocar a mão na consciência em datas como esta: pessoas que nunca
tomaram enquadro na rua nem foram preteridas em entrevistas de emprego sem
motivos aparentes. O discurso é recorrente na boca de quem jamais se questionou
por que a maioria da população brasileira não circula em ambientes frequentados
pela elite financeira e intelectual do País, como universidades, centros
culturais, restaurantes, shows e centros de compra. Tem a sua variação
homofóbica aplicada durante a Parada Gay. O sujeito tende a imaginar que Dia
Branco e Dia Hétero são equivalentes porque ignora os processos históricos de
dominação e exclusão de seu próprio país.
“Não precisamos de consciência preta, parda ou branca. Precisamos
de consciência humana”
Eis uma
verdade fatiada que deixa algumas perguntas no contrapé: o manifestante a
exigir direitos iguais não é gente? O que mais se busca, nessas datas, se não a
consciência humana? Ou ela seria necessária, com ou sem feriado, caso a cor da
pele (ou o gênero ou a sexualidade) não fosse, ainda hoje, fatores de exclusão
e agressão?
“Héteros morrem mais do que homossexuais. Portanto, somos mais
vulneráveis”
É o mesmo que medir o volume de um açude com uma régua escolar.
Crimes como homicídio, latrocínio, roubo ou furto têm causas diversas: rouba-se
ou mata-se por uma carteira, por ciúmes, por fome, por motivo fútil, por futebol,
mas não necessariamente por causa da orientação sexual da vítima. O argumento é
utilizado por quem nunca se perguntou por que ninguém acorda em um belo dia e
decide estourar uma barra de ferro na cabeça de alguém só porque este alguém
gosta e anda de mãos dadas com alguém do sexo oposto. O crime motivado por ódio
contra heterossexuais é tão plausível quanto ser engolido por uma jaguatirica
em plena Avenida Paulista.
“Estamos criando uma ditadura gay (ou racial) no Brasil. O que
essas pessoas querem é privilégio”
Frase
utilizada por quem jamais imaginou a seguinte cena: o sujeito acorda, vê na
tevê sempre os mesmos apresentadores, sempre as mesmas pautas, sempre as mesmas
gracinhas. No caminho do trabalho, ouve ofensas de pedestres, motoristas e para
constantemente em uma mesma blitz que em tese serviria para todos. Mostra
documento, RG. Ouve risada às suas costas. Precisa o tempo todo provar que
trabalha e paga imposto (além, é claro, de trabalhar e pagar imposto). Chega ao
trabalho e é recebido com deferência: “oi boneca”; “oi negão”; “veio sem camisa
hoje?”. Quando joga futebol, vê a torcida imitando um macaco, jogando bananas
ao campo, ou imitando gazelas. E engasga toda vez que vira as costas e se
descobre alvo de algum comentário. Um dia diz: “apenas parem”. E ouve como
resposta que ele tem preconceito contra a própria condição ou está em busca de
privilégio. Resultado: precisamos de um novo glossário sobre privilégios.
“A mulher deve se dar o valor”
Repetida tanto por homens como por mulheres, é a confissão do
recalque, em um caso, e da incompetência, no outro: o homem recorre ao mantra
para terceirizar a culpa de não controlar seus próprios instintos; a mulher,
por pura assimilação dos mandamentos do pai, do marido e dos irmãos. Nos dois
casos o interlocutor acredita que, ao não se dar o valor, a menina assume por
sua conta e risco toda e qualquer violência contra sua pretensão. Para se
vestir como quer, andar como quer, dizer e fazer o que quer com quem bem
quiser, ouvirá, na melhor das hipóteses, que não é a moça certa para casar; na
pior, que foi ela quem provocou a agressão.
“Os homens também precisam ser protegidos da violência feminina”
Na Lua, é possível que a violência entre gêneros seja equivalente.
Na Terra, ainda está para aparecer o homem que apanhou em casa porque foi
chamado de gostoso na rua, levou mão na bunda, ouviu assobios ou ruídos com a
língua sem pedir a opinião da mulher. Também não há relevância estatística para
os homens que tiveram os corpos rasgados e invadidos por grupos de mulheres que
dominam as delegacias do País e minimizam os crimes ao perguntar: “Quem mandou
tirar a camisa?”.
“Se ela se deixou ser
filmada, é porque quis se exibir”
Verdade.
Mas não leva em conta um detalhe: existe alguém do outro lado da tela, ou da
câmera. Este alguém tem um colchão de conforto a seu favor. Se um dia o vídeo
vazar, será carregado nos braços como comedor. Ela, enquanto isso, vai ser
sempre a exibida. A puta. A idiota que deixou ser flagrada. A vergonha da
família. A piada na escola. Parece uma relação bastante equilibrada, não?
“O humor politicamente correto é sacal”
É a mais pura verdade em um mundo no qual o politicamente
incorreto serve para manter as posições originais: ricos rindo de pobres,
paulistas ridicularizando nordestinos, brancos ricos fazendo troça de mulatos
pobres, machões buscando graça na vulnerabilidade de gays e mulheres. As
provocações são brincadeiras saudáveis à medida que a plateia não se identifica
com elas: a graça de uma piada sobre português é proporcional à distância do
primeiro português daquele salão. Via de regra, a frase é usada por quem jura
se ofender quando chamado de girafa branca tanto quanto um negro ao ser chamado
de macaco. Só não vale perguntar se o interlocutor já foi chamado de “elemento
suspeito”, com tapas e humilhações, pelo simples fato de ser alto como o
artiodátilo.
“Bolsa Família incentiva a vagabundagem. Pegar na enxada e
trabalhar ninguém quer”
Há duas
origens para a sentença. Uma advém da bronca – manifestada, ironicamente, por
quem jamais pegou em enxada – por não se encontrar hoje em dia uma boa
empregada doméstica pelo mesmo preço e a mesma facilidade. A outra origem é da
turma do “pegar o jornal e ler além do horóscopo ninguém quer”; se quisesse, o
autor da frase saberia que o Bolsa Empreiteiro (que também dispensa a enxada)
consome muito mais o orçamento público do que programa de transferência de
renda. Ou que a maioria dos beneficiários de Bolsa Família não só trabalha como
é obrigada a vacinar os filhos, manter a regularidade na escola e atravessar as
portas de saída do programa. Mas a ojeriza sobre números e fatos é a mesma que
consagrou a enxada como símbolo do nojo ao trabalho.
“Na ditadura as coisas funcionavam”
Frase geralmente acolhida por pacientes com síndrome de Estocolmo.
Entre 1964 e 1985, a economia nacional crescia para poucos, às custas de
endividamento externo e da subserviência a Washington; universalização do
ensino e da saúde era piada pronta, ninguém podia escolher os seus
representantes, a imprensa não podia criticar os generais e a sensação de
segurança e honestidade era construída à base da omissão porque ninguém
investigava ninguém. Em todo caso, qualquer desvio identificado era prontamente
ofuscado com receitas de bolo na primeira página (os bolos eram de fato
melhores).
“Você defende direito de presos porque ele não agrediu ninguém da
sua família”
É o
sofisma usado geralmente contra quem defende o uso das leis para que a lei seja
garantida. Para o sujeito, aplicação de penas e encarceramentos são privilégios
bancados às custas dele, o contribuinte. Em sua lógica, o Estado só seria
efetivo se garantisse a sua segurança e instituísse a vingança como base
constitucional. Assim, a eventual agressão contra um integrante de uma família
seria compensada com a agressão a um integrante da família do acusado. O
acúmulo de experiência, aperfeiçoamento de leis e instituições, para ele, são
papo de intelectual: bons eram os tempos dos linchamentos, dos apedrejamentos
públicos, da Lei de Talião. Falta perguntar se o defensor do fuzilamento está
disposto a dar a cara a tapa, ou a tiro, quando o filho dirigir bêbado,
atropelar, agredir e violentar a família de quem, como ele, defende penas mais
duras para crimes inafiançáveis.
“A criminalidade só vai diminuir quando tiver pena de morte no
Brasil”
Frase repetida por quem admira o modelo prisional e o corredor da
morte dos EUA, o país mais rico do mundo e ao mesmo tempo o mais violento entre
as nações desenvolvidas. Lá o crime pode não compensar (em algum lugar
compensa?), mas está longe de ser varrido junto com seus meliantes.
“Político deveria ser tratado por médico cubano”
Tradução: “não gosto de política nem de cubano”. Pelo raciocínio,
todo paciente tratado por cubanos VAI morrer e todo político que precisa de
tratamento médico DEVE morrer. Para o autor da frase, bons eram os tempos em
que, na falta de médico brasileiro, deixava-se o paciente morrer – ou quando as
leis eram criadas não pelo Legislativo, mas pelo humor de quem governava na
canetada.
“Deveriam fazer testes de medicamento em presidiários, não em
animais”
Também
conhecida como “não aprendemos nada com a parábola do filho Pródigo que tantas
vezes rezamos na catequese”. É citada por quem não aceita tratamento desumano
contra os bichos, mas não liga para o tratamento desumano contra humanos. É
repetida também por quem se imagina livre de todo pecado e das grandes ironias
da vida, como um certo fiscal da prefeitura de São Paulo que um certo dia criticou
o direito ao indulto de presidiários e, no outro, estava preso acusado de
participação na máfia do ISS. É como dizem: teste de laboratório na cela dos
outros é refresco.
“Por que você não vai para Cuba?”
Também
conhecida como “acabou meu estoque de argumentos. Estou andando na banguela”.
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