França: um exemplo do poder destruidor que podem ter as redes sociais
A última crise francesa fornece uma prova, ao mesmo tempo demolidora e cômica, acerca da influência desses dispositivos na opinião pública.
Paris - As linhas que seguem são um reflexo verbal da realidade, e não uma piada forjada no coração de uma das grandes democracias do Ocidente. Se alguém duvida do poder destruidor que podem alcançar as redes sociais e os instrumentos de comunicação mais avançados, a última crise francesa fornece uma prova ao mesmo tempo demolidora e cômica acerca da influência desses dispositivos na opinião pública.
Um falso rumor propagado por católicos de ultradireita através de Facebook, Twitter e SMS fez com que dezenas de milhares de pessoas acreditassem que o Executivo se preparava para ensinar a masturbação nos jardins de infância, para dar cursos sobre a famosa teoria de gênero ao mesmo tempo em que atribuiu à senadora socialista Laurence Rossignol a seguinte frase: “as crianças não pertencem aos pais, mas sim ao Estado”.
O resultado desta campanha foi devastador: o governo se encontrou em sérios apuros quando milhares de pais decidiram participar de uma greve e se negaram a levar seus filhos às escolas. Tudo, porém, é falso. Os grupos de ultradireita e os católicos integristas que, no ano passado, saíram às ruas para se manifestar contra a lei que aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo estão por trás dessa argúcia mentirosa difundida por meio das redes sociais. A mentira acertou no alvo.
A história passaria por um caso anedótico se não se tratasse de uma sociedade avançada como a francesa e se não tivesse tido nenhum impacto na realidade. Em setembro do ano passado, o ministro da Educação, Vincent Peillon, e a ministra dos Direitos da Mulher, Najat Vallaud-Belkacem, cogitaram a ideia de realizar em alguns estabelecimentos escolares do país uma operação destinada a promover a igualdade entre homens e mulheres. Reciclada pelos católicos integristas e a extrema-direita, a ideia se converteu em uma ameaça imaginária articulada em torno de um suposto programa cujo objetivo consistia em propagar nas escolas a teoria de gênero, ou seja, esse princípio segundo o qual ser homem ou mulher é uma mera construção social e não uma consequência biológica por completo.
Milhares de pais começaram a receber SMS advertindo que o governo, em nome da teoria de gênero, havia dado instruções aos professores para que estes ensinassem aos filhos a arte da masturbação e convidassem transexuais para as aulas. Muitos deles acreditaram. No dia 24 de janeiro, em uma dezena de departamentos da França, as salas de aula estavam vazias. Aterrorizados diante de semelhante barbaridade, os pais tiraram os filhos das escolas. Delirium tremens.
Os tópicos desta operação perversa realizada por pequenos grupos de extrema direita e católicos fanáticos agrupados em diversas associações: JDR, JRE 2014, os fascistas do grupo Jour de Colère (Dia de Cólera), próximo do ensaísta de extrema-direita Alain Soral e da militante Farida Belghoul, 24 heuresactu, Boulevard Voltaire, Egalité et Réconciliation, Manif pour Tous, Printemps Français, Action Française, Familles de France. Estes movimentos pertencem à órbita mais extrema da direita e vivem em uma esfera paranoica.
Em um artigo publicado em meados de janeiro, 24heuresactu, por exemplo, assegura que o governo socialista está estudando “um informe da OMS (Organização Mundial da Saúde), que propõe estimular a masturbação infantil e permitir à criança a expressão de seus desejos sexuais”. O informe existe, mas não expressa nenhuma dessas ideias. No entanto, o rumor acabou sendo tomado como verdade.
Esta nebulosa católica-fascista denuncia uma espécie de engrenagem lógica onde se associa o casamento entre pessoas do mesmo sexo com a igualdade entre o homem e a mulher, o ocaso da família tradicional com a decadência da civilização, a ampliação do direito de aborto com a intoxicação da imigração, a cultura laica com a suspeita de que se está buscando reconfigurar a família e mudar a mentalidade das crianças, a obsessão de que serão transmitidas coisas de adultos para as crianças, de que serão incitadas a mudar de sexo, a se masturbar ou se converter em pedófilos.
O catálogo é pesado. A teoria de gênero carece de todo fundamento. De fato, ela é chamada assim, mas nem sequer é uma teoria. Trata-se de um estudo de gêneros iniciado nos Estados Unidos nos anos 60 e 70. No entanto, os “anti” inventaram sua existência nas escolas da França e estão convencidos de que os socialistas querem reorientar a sociedade com base nas orientações sexuais, as quais se converteriam, assim, no fundamento do direito e da igualdade. A política governamental contra a desigualdade entre o homem e a mulher não tem nada a ver com isso, mas sim com a igualdade dos papéis sociais entre homem e mulher.
O ministro francês da Educação, Vincent Peillon, respondeu a estes delírios: “não escutem a quem quer semear a divisão e o ódio nas escolas. O que nós fazemos não é ensinar a teoria de gênero, eu a rechaço, mas sim promover os valores da República e a igualdade entre os homens e as mulheres”, disse o titular da pasta.
A chamada facho-esfera conseguiu, contudo, que muitos pais acreditassem nessas invenções. A França se viu assim sob o poder hipnótico de uma intoxicação destruidora, de um fantasma que, em pleno século XX, ganha adesões no coração de sociedades que sustentaram seus progressos em valores totalmente opostos aos que essas correntes extremistas promovem.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
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