quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Qual é a direção política das Forças Armadas?

É preocupante que o manual militar trate movimentos sociais como "forças oponentes" e as iguale a grupos criminosos

Alexandre Fuccille (*)              Carta Capital

                                       
Às vésperas de se completar 50 anos do golpe de 1964, a sociedade brasileira foi surpreendida pela publicação do manual “Garantia da Lei e da Ordem” (MD33-M-10). Fato aparentemente pouco relevante, uma vez que o Artigo 142 da Constituição Federal e a Lei Complementar 97/99 facultam ao presidente da República a decisão acerca do emprego das Forças Armadas na Garantia da Lei e da Ordem (GLO), o problema reside no conteúdo e na forma pela qual se deu a elaboração do citado opúsculo.
Oriundo do Ministério da Defesa, o documento “tem por finalidade estabelecer orientações para o planejamento e o emprego das Forças Armadas em Operações de Garantia da Lei e da Ordem” (p. 13). Ainda que não pensado exclusivamente para este fim e a despeito de uma ampla base legal para a atuação em ações de GLO, é certo que a Copa do Mundo e as Olimpíadas que se avizinham, bem como as manifestações que eclodiram em todo o país no último ano, fizeram a confecção e publicização do referido manual ganhar celeridade. Talvez por isso é preciso estar atento aos riscos e equívocos conceituais que nele aparecem, como a noção de “forças oponentes”, a caracterização de “movimentos ou organizações [sociais]” ao lado de “organizações criminosas, quadrilhas de traficantes de drogas, contrabandistas de armas e munições, grupos armados etc” (p. 29) como perturbadores da ordem pública e alvos a serem neutralizados, e pontos nebulosos sobre o relacionamento e atuação da mídia.
A questão de fundo é que, passadas décadas do fim do regime autoritário e após a criação do Ministério da Defesa em 1999, persiste o emprego de termos e nomenclaturas inapropriados para um ambiente democrático, como o tratamento de concidadãos como “forças adversas” (num passado não distante os militares, por decisão civil, foram utilizados na greve dos petroleiros, para controlar o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra/MST, entre outras missões nada alvissareiras). Apreciação originalmente empregada pelo Exército em seus documentos doutrinários, notamos que, ao invés da superação desta terminologia saudosa da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), no compêndio “Garantia da Lei e da Ordem” dá-se o seu alargamento para as outras forças singulares, como a Marinha e a Aeronáutica.
Este e outros pontos remetem ao problema central para o qual queremos chamar a atenção aqui: a questão do estabelecimento de um controle civil democrático sobre os militares. É preciso fortalecer o Ministério da Defesa na sua dimensão civil, com capacidade real de definir e implementar políticas de defesa, tornando-se necessário para tanto criar e fomentar uma massa crítica civil nesta temática (via, por exemplo, criação da carreira de Analista de Defesa).
O ministro Celso Amorim, homem inteligente e sensível que é, sinaliza com um recuo e revisão do recém-lançado “Garantia da Lei e da Ordem” que assinou (possivelmente de forma inadvertida por sua enxuta assessoria civil). Ainda que louvável, outros ministros da Defesa que o antecederam e igualmente procuraram avançar no controle civil e/ou combater nichos de autonomia militar encontram dificuldades em fazê-lo, precisamente por negligenciarem a dimensão direção política.
A direção política ultrapassa, em muito, a mera questão administrativa rotineira com respeito ao aparelho militar, e deve apontar para qual Forças Armadas são desejadas em função do perfil estratégico pretendido pelo Brasil, que deverá contemplar o redimensionamento de seus meios, aqui incluso pessoal, material, educação etc. É, antes de qualquer coisa, o mundo político – com a legitimidade recebida nas urnas e em nome da cidadania – definindo o que a sociedade espera de quem são os responsáveis por sua “proteção”, ou seja, as Forças Armadas. Nessa caminhada, é mister a participação do Executivo e do Legislativo, somado a outros atores como as universidades, num diálogo aberto, transparente e democrático, acerca de como devem ser superadas as dificuldades na construção da direção política sobre o aparelho militar. Isso passa longe do aviltamento dos militares e das instituições em que estes se encontram, como pensam alguns.
Que este episódio sirva para recordar de que não existe vácuo de poder na política e de que é preciso se evitar a sanha de criminalização dos movimentos sociais. Há avanços inegáveis nas últimas décadas, mas, igualmente, é forçoso admitir que muitos desafios ainda permanecem para o adequado aprimoramento das relações civis-militares em nosso país.
*Alexandre Fuccille é doutor em Ciência Política (UNICAMP), professor da UNESP (Universidade Estadual Paulista) e membro de seu Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES). Trabalhou no Ministério da Defesa de 2003 a 2005.
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