sábado, 7 de dezembro de 2013

Para ministra, figura de           Mandela é usada para tentar disfarçar racismo no Brasil    

Luiza Bairros, da Seppir, avalia que morte simboliza 'fim de uma era' na luta contra o racismo. Problema ainda não está superado, nem entre sul-africanos, nem entre brasileiros
Tadeu Breda 07/12/2013                                           
SHAHZAIB AKBER/EFE
mandela
Luiza Bairros: "Vai demorar algum tempo para que se produza uma referência negra internacional tão forte como ele foi”
São Paulo – A ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Luiza Bairros, era ativista do Movimento Negro Unificado, na década de 1970, quando se passou a debater mundialmente as violações cometidas durante o apartheid, regime que segregava brancos e negros na África do Sul, privando de direitos a maior parte da população.
Hoje (6), ao comentar a importância da figura maior surgida da resistência à violência, a gaúcha de Porto Alegre, que sentou raízes no movimento negro em Salvador, recorda que a figura do ex-presidente sul-africano Nelson Mandela, morto nesta quinta-feira (5), aos 95 anos, foi muitas vezes usada para tentar atenuar a gravidade dos fatos ocorridos em todo o resto do mundo. “O apartheid na África do Sul sempre foi utilizado como exemplo de racismo que, comparativamente às condições nacionais, fazia com que o racismo praticado por cada país parecesse algo muito brando”, avalia, em entrevista concedida hoje por telefone à RBA.
Para Luiza, tanto na África do Sul como no Brasil há um largo caminho a recorrer para romper com as diferenças entre negros e brancos. Se no caso brasileiro não houve um aparato institucional oficial no século 20 a cometer violações de toda ordem, o Estado pós-abolição da escravidão encontrou formas de provocar diferenças. E, agora, este mesmo Estado precisa encontrar caminhos para superá-las, mas se depara com resistências dentro e fora dele.
Com isso, a luta de Mandela ainda tem um duplo aspecto. “A notícia da morte é recebida com muita tristeza. Com ele também vai uma certa era da luta contra o racismo no mundo. Vai demorar algum tempo para que se produza uma referência negra internacional tão forte como ele foi”, diz a ministra, avaliando que, por outro lado, seu exemplo seguirá a ser necessário na superação de dificuldades.

Como Mandela influenciou o movimento negro brasileiro?

O movimento brasileiro reemergiu na década de 1970, quando a luta contra o apartheid era muito forte. Existe essa coincidência histórica. Circulavam muitas informações sobre as lutas sul-africanas. Isso influenciou bastante nossas formas de pensar a discriminação que os negros sofriam no Brasil. Embora o apartheid fosse um sistema racista diferente do racismo brasileiro, no fim das contas, tanto lá como cá as consequências do racismo eram as mesmas: países com maioria negra onde os negros estavam em sua maioria submetidos a condições de pobreza, sem acesso aos espaços de poder. Da nossa parte, aqui, construir uma luta contra o apartheid também era uma forma de denunciar as condições internas do país. Nos anos 1980 se formaram no Brasil comitês anti-apartheid, bastante ativos, e que contribuíram muito com o rompimento das relações do Brasil com a África do Sul naquele momento. Era uma demanda importante do CNA naquele momento, para enfraquecer o regime.

Incomoda o movimento negro Mandela ter-se transformado numa unanimidade, elogiado inclusive entre racistas?

O fato de ser unanimidade não incomoda nem é visto com bons olhos. A unanimidade revela outra coisa, que no Brasil sempre foi muito evidente. Nos países onde o racismo tem efeitos negativos na população negra, o apartheid na África do Sul sempre foi utilizado como exemplo de racismo que, comparativamente às condições nacionais, fazia com que o racismo praticado por cada país parecesse algo muito brando. No Brasil é bastante evidente. Sempre se insistiu na existência do racismo na África do Sul, mas não aqui. Toda essa unanimidade em relação a Mandela, em alguns casos, envolve pessoas, autoridades que olham para África do Sul para poder negar as condições em que o racismo opera em seus próprios países, como no Brasil.

A luta de Mandela terminou quando chegou ao fim o apartheid?

A luta de Mandela ainda não terminou. O apartheid foi instituído em 1948. Até acabar, nos anos 1990, deixou sequelas na sociedade sul-africana extremamente fortes. A polícia foi formada para reprimir os negros. São marcas muito fortes. O fato de o país viver desigualdades sociais profundas faz com que ainda haja parcela significativa da população negra morando nos bairros negros. São bairros afastados dos centros urbanos, às vezes 50, 60 quilômetros. Isso ainda não foi completamente eliminado. Você tem contingente muito grande de pessoas que sofrem muito para sobreviver naquela sociedade, em situações muito parecidas com as que vivem os negros no Brasil.

Existe algum tipo de apartheid no Brasil?

Não dá pra dizer que existe apartheid no Brasil no sentido de um sistema legal. Mas os defeitos do racismo, em qualquer lugar, com ou sem lei, são a existência de diferenciais profundos, em prejuízo dos negros. A lição que a gente aprendeu analisando a forma como o racismo opera no Brasil, nos Estados Unidos e na África do Sul, é que no Brasil a inexistência de leis racistas não impediu a sociedade de criar outros mecanismos de exclusão da maioria negra. Por exemplo, o fato de hoje estarmos tentando organizar políticas de promoção da igualdade racial resulta exatamente desse longo trajeto histórico. Você precisa da participação ativa do Estado brasileiro no sentido de criar mecanismos fortes, consistentes, que forcem uma inserção mais vantajosa dos negros na sociedade.

Dá para dizer que houve avanços no combate ao racismo no Brasil?

Avanços no combate ao racismo devem ser pensados em dois níveis. Um nível, a promoção da igualdade racial. Nessa direção é que a Seppir opera dentro do governo federal: como criar determinadas iniciativas para acelerar a melhoria das condições de vida da população negra. Dadas as condições gerais, o Brasil tem demonstrado uma decisão política muito forte. O governo de uma maneira geral. Mas, do ponto de vista do combate ao racismo, isso é outra coisa. As atitudes racistas, as práticas racistas no Brasil hoje são muito mais evidentes do que já foram há 20 anos. Exatamente pelo fato de os negros acessarem determinados espaços e lugares sociais onde antes não estavam provoca nas pessoas uma reação a essa presença. Então você tem, paralelamente aos avanços na Seppir, manifestações de racismo mais frequentes e mais explícitas. Um dos casos mais recentes foi o daqueles jovens que entraram em um shopping em Vitória para se proteger de uma batida policial no baile funk e foram dentro do shopping confundidos com jovens que estariam lá para fazer arrastão ou coisa parecida. A reação da PM foi arbitrária e violenta. As fotos lembram os quadros de negros sendo caçados e apreendidos pelos capitães.

Quais as principais barreiras no combate ao racismo?

Elas se colocam principalmente a partir daqueles setores que sempre operaram usando o racismo como um recurso. Você tem hoje debates fortes dentro do governo, iniciativas para conter as mortes violentas entre jovens negros, que é um fenômeno nitidamente influenciado pelo racismo. Tantas vidas que se perdem num país que não está em guerra, você só pode imaginar que são vidas que não têm valor. Trabalhar essa questão do racismo desse ponto de vista tem sido uma dificuldade muito grande. Não conseguimos adentrar com esse debate nas instituições policiais, no sistema de justiça, que tem papel muito importante na modificação desse quadro das altas taxas de homicídio dos jovens negros. Outro espaço importante para que essa discussão se afirme são os meios de comunicação. Ainda há um processo de veiculação de imagens negativas dos negros que o tempo todo reforça essas suposições de inferioridade.

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