segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

O recado do Chile

Piñera emergiu na AL chamada de chavista, em 2010, como o anfíbio ansiosamente aguardado: pensava a economia como Pinochet, sem ter vestido o capuz negro.

Saul Leblon                                           
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A volta de Bachelet ao comando do Chile, após levar 62% dos votos no 2º turno, domingo, envia uma mensagem às elites da região.

A sociedade latino-americana não tolera mais a desigualdade.

Enquanto o conservadorismo se aferra à ideia de dar eficiência às estruturas carcomidas que instalaram aqui uma das piores assimetrias de renda do planeta, as urnas  --e as ruas--  sistematicamente invertem a equação.

Em recados de crescente contundência à direita e à esquerda , avisam:  a meta deve ser a equidade, a economia  não pode funcionar mais contra as urgências da população.

O Chile rico e educado é a confirmação  enfática da fraude arquitetada por aqueles que propõem  chilenizar o Brasil primeiro (‘as reformas’), para depois distribuir.

Tudo funciona nesse modelo, mas tudo  só funciona a quem paga.

A maioria não pode pagar, por  exemplo, uma educação universitária de qualidade.
Nem a classe média remediada.
Essa, a origem da revolta dos pinguins que premiou o Chile com uma  renovação de liderança política inédita na região, pela esquerda.

Jovens comunistas  se projetam à frente da sociedade chilena dando , inclusive, uma sobrevida representativa ao Partido Comunista local, só encontrável em nações estilhaçadas pelo bisturi implacável do ajuste neoliberal. Caso da Grécia, por exemplo.

Um minúsculo enclave de 5%  da população chilena fatura por ano  quase 260 vezes mais que o seu extremo oposto na pirâmide de renda.

A principal riqueza do país, o cobre, preserva uma estatização de fachada na qual os maiores beneficiários sãos as castas fardadas que se reservaram durante a ditadura Pinochet uma fatia cativa dos rendimentos da maior reserva do metal no planeta.

Pior que o Brasil, pior que os EUA ou a Alemanha, a plutocracia chilena aferrou-se de tal maneira a seus privilégios que hoje 1% da população detém 31% de toda a riqueza nacional (21% nos EUA ; 13% no Brasil; 12,5% na Alemanha).

O conjunto faz do Chile um paradigma odioso de segregação econômica escolar.

Segundo a OCDE, dentre todos os seus membros, o Chile é o país com maior índice de financiamento privado da educação primária e secundária.

O resultado das urnas deste domingo esfarela e devolve às goelas conservadoras o júbilo manifestado em janeiro de 2010, quando um  Chile cansado das hesitações de seu centrismo, elegeu  o bilionário Sebástian Piñera  ao final do primeiro mandato de Bachelet.

Piñera reacendeu a esperança conservadora na América Latina.
Sua vitória reluzia como a revanche diante de um colar de governos progressistas que asfixiavam o horizonte da direita regional.  Enfim, um presidente para chamar de seu.

Um porta-voz moderno do dinheiro grosso.

Alguém talhado para fazer a ponte entre a inconclusa redemocratização chilena e o necessário arejamento das agendas apuradas no calabouço escuro da ditadura Pinochet.

Recorde-se que o Chile é o que é hoje  porque, antes mesmo de Thatcher,  foi militarmente capturado para ser a cozinha experimental do neoliberalismo no mundo.

Talvez fosse mais apropriada a metáfora 'açougue'.

Ali se sangrou, retalhou, picou e moeu uma nação até reduzi-la a uma massa disforme e vegetativa.

Dessa matéria-prima, nasceu a primeira receita mundial bem sucedida do cardápio que decretaria o fim do capitalismo regulado, a partir dos anos 70.

O quitute indigesto foi enfiado goela abaixo de uma das sociedades mais democráticas do continente latino-americano. Por isso mesmo, exemplarmente esgoelada na sua tentativa de construir o socialismo pela via eleitoral.

O recado foi escrito com sangue na pele da esquerda latino-americana: 'a democracia promete mais do que os mercados estão dispostos a conceder'.

Mestres-cucas da direita regional e global aderiram em massa ao mutirão corretivo.

Piñera não serviu diretamente à ditadura mais sanguinária da AL.  Justamente por isso, sua vitória em 2010 acendeu o entusiasmo conservador.

Eis o anfíbio tão aguardado.

Porque pensava a economia como Pinochet, sem ter vestido diretamente o capuz negro, era a ponte palatável entre dois mundos, no caminho de volta a uma democracia bem comportada.

"É provável que se fortaleça na América do Sul uma "frente antichavista", integrada por Álvaro Uribe (Colômbia), Alan García (Peru) e o próprio Piñera".

O augúrio do editorial da "Folha", de 22 de janeiro de 2010, externava essa aposta ansiosa.

O dote de mandatário-ponte servia ademais para espicaçar a viabilidade da jejuna e também recém-eleita presidenta brasileira, Dilma Rousseff.

Transcorridos quatro anos, Piñera devolve o lugar a Bachelet.

Os jornalismo que apostou na ressurgência neoliberal, porém, não desiste. No Brasil flerta com anfíbios tropicalizados. 

Ou não será a mesma receita da chilenização do país que emitem as goelas de veludo dos Campos & Aécios?

Quiçá de alas petistas obsequiosas aos lamentos dos mercados?

O Chile fez tudo como eles querem fazer aqui.

É a economia "mais aberta" da América Latina.

O Estado é mínimo: a dívida do setor público é de apenas 11,5% do PIB (37% no Brasil, no conceito líquido; 60% no bruto).

A previdência foi privatizada. A proteção trabalhista é pífia.

A linha da desigualdade parece o eletrocardiograma de um morto: o índice de GINI chileno oscilou de 0,55 para 0,52 entre 1990 e 2009 (o do Brasil melhorou de 0,61 para 0,54).

Segundo a CEPAL, entre 1990 e 2009, o investimento público na área social oscilou mediocremente no país: de 15,2% para 15,6% do PIB.

Até o México deu um passo maior no mesmo período: passou de 5,5% para 11,3% do PIB.

Na direitista Colômbia, o salto foi de 6,1% para 11,5%.

No Brasil, a ' gastança' avançou de 17,6% para 27,1% do PIB; na Argentina, de 18,6% para 27,8%.

O jornalismo conservador atribui à falta de 'traquejo' político do empresário-presidente o paradoxo entre uma economia 'saudável' e a rejeição política esmagadora.

O raciocínio condescendente desdenha de uma lacuna-chave.

Piñera não foi programado para transformar a maçaroca econômica em uma Nação.

Mas para transformar uma nação em mercado.

Por que teria apoio dos seus órfãos?

O Chile tornou-se um país simplificado por uma ditadura que decidiu exterminar fisicamente o estorvo ideológico e social no seu caminho: a classe trabalhadora organizada.

Uma parte foi sangrada nas baionetas de Pinochet.

A outra, exterminada estruturalmente pelos sacerdotes do laissez-faire.

Os Chicago's boys reduziram a economia às suas estritas 'vantagens comparativas'.

Um pomar de pêssego. Vinícolas. Uma mina de cobre.

Um acervo como esse não precisa de projeto nacional.

Um fluxo de mercadorias não requer formulação intelectual própria. Logo, não precisa de universidade pública autônoma.

Um aglomerado de consumo não reclama cidadania.

Piñera tentou ser o cadeado moderno entre isso e uma redemocratização intrinsecamente tensa e limitada. Os estudantes rechaçaram esse entendimento do que seja um 'Chile moderno' .

E carregaram para as ruas o inconformismo de décadas que se consagrou nas ruas deste domingo. Mas que explica, também, o monstruoso incide de abstinência de 59%.

O desinteresse pelo voto é um aviso a Bachelet: um pedaço do país, quase suficiente para eleger um outro presidente, não aguenta mais simulacros de justiça social e maquiagens estruturais.

O fracasso de Piñera não deve ser desfrutado com precipitações simplistas.

O jogo não acabou na AL. Nunca acaba.

Os embates tendem a se acirrar.  Não por acaso Aécio e Campos acercam-se de profissionais do ramo e de modelos estratégicos que caberiam perfeitamente num ministério de Piñera.

O Chile, pequeno, mas historicamente imenso, tem muito a dizer à experiência política latinoamericana.

Não foi qualquer apego a efemérides que motivou Carta Maior a reunir, este ano,  uma dezena e meia de analistas, personagens, cineastas e filmes para registrar os 40 anos do golpe militar de 11 de setembro no Chile.

O Especial ‘Chile de Allende, 40 anos do golpe’ não mira o passado.

A atualidade da arguição inclui nuances. Algumas delas falam diretamente ao Brasil dos dias que correm. Exemplos.

O que acontece em um país quando o conservadorismo forma a percepção de que as possibilidades democráticas e eleitorais de seu retorno ao poder se estreitaram?
Que contrapesos poderiam, ou melhor, deveriam ser acionados quando a judicialização da política e o golpismo midiático compõem um corredor polonês asfixiante em torno de um governo democrático e progressista?

Em que medida é realista apostar em um alicerce defensivo ancorado exclusivamente nas instituições existentes, quando o propósito é superar o que elas guarnecem? É um primeiro indicativo.

Há outros a sinalizar que não estamos falando de ontem. Mas das evocações que 1973 inspira em 2013. E em 2014.

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