sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

A taxa Selic (agora a 10%) e os descaminhos do dinheiro           


Original de em 28 de novembro de 2013          

Do AMgóes - Sem veleidades de tecer  opinião 'técnica' sobre os meandros sinuosos da economia(por vezes indecifráveis para o senso comum), acesso cotidianamente  análises didáticas e menos áridas que se reportam ao tema, antigamente sob controle de iluminados 'cardeais', com suas impenetráveis interlocuções em 'economês'. Os tempos mudaram. As teorias econômicas, embora em esparsos rudimentos, chegaram às variadas bancas universitárias e escolas de nível técnico-profissional, estimulando-nos a eventuais incursões sobre o que se passa, com base nessa temática, em nosso derredor.                                                                                                                                                    
     Dessa forma, cabe-nos lembrar que a inflação, nos estertores do governo FHC(2002) bateu os 12,35%, impensável para quem desfraldara, com o estardalhaço da paridade real-dólar, a bandeira de seu sistemático controle. Visando a 'combatê-la'(assim mesmo, com aspas) - sob uma política de estrutura neoliberal, gestada em 1989 pelo  famigerado 'Consenso de Washington' para fomentar o 'ajuste macroeconômico' dos países em desenvolvimento (insolventes nos compromissos em organismos tais como o Banco Mundial e o FMI) -  o governo tucano do pretenso 'príncipe dos sociólogos' não hesitou em lançar mão do receituário dito 'consensual'(melhor dizendo, 'preferencial').                                         
       Para  se contrapor ao descontrole inflacionário, decorrente de seu projeto recessivo, as eminências da economia tucana soltaram o monstrengo da Taxa SELIC, cevado a pão-de-ló pelos  banqueiros, cuja dose cavalar chegou aos 25% ao ano. Nos tempos atuais. as perniciosas recidivas da crise internacional levaram o governo Dilma ao retorno da Selic aos dois dígitos, na casa dos 10%), nada comparável aos descalabros de 11/12 anos atrás. Efetivamente, os juros retornaram a um patamar até bem pouco descartado, impingido pelos espasmos convulsivos do mercado exterior.                                                    
       Todavia, imperioso destacar a diametral diferença entre os comportamentos dos governos do PT e do antecessor PSDB: conquanto ainda escorchantes(para os padrões atuais), os juros são administrados em limites minimamente suportáveis, não paira sobre nós a sombra da mais tênue recessão, vivemos uma quadra de 'pleno emprego' e o consumo segue firme, estimulado pela oferta do mercado produtor, apesar dos gananciosos especuladores, no atacado e no varejo, pústulas cuja profilaxia deve ser implementada(se necessário, com pressão popular) como uma política de Estado, no prioritário interesse dos consumidores e potenciais contribuintes do erário.                                                                               
[Ops, em 27 de novembro de 2013 chegou a 10]
Os Descaminhos do Dinheiro: uma visão sistêmica

por Ladislau Dowbor  - 6 de dezembro de 2012

O Brasil vive desde 2012 uma grande ofensiva política, promovida pela aliança entre as oligarquias tradicionais, o oligopólio da mídia e uma cunha no poder judiciário.
O alvo, naturalmente, é o governo progressista que dirige o país desde 2003.
O golpismo nunca saiu de cena na América Latina. Recentemente tivemos golpes na Venezuela, em Honduras e no Paraguai. A Argentina está sendo desestabilizada.
No caso brasileiro, o golpismo se apoia em elevados sentimentos éticos, e justifica o movimento como luta contra a corrupção. Violências jurídicas a parte, a campanha navega numa ampla desinformação sobre como funciona a corrupção.
No presente artigo, fizemos um exercício bastante simples, de explicitação dos mecanismos: a compra das eleições, o uso de juros oficiais, a cartelização do sistema financeiro, a apropriação do orçamento público, e o funcionamento dos paraísos fiscais, que asseguram segurança, segredo e rentabilidade ao dinheiro ilegal.
A questão, na nossa interpretação, vai muito além do desvio do dinheiro: é a própria democracia que está sendo apropriada. O exemplo básico aqui analisado é o do Brasil, mas trata-se de todos nós.
Transformar o exercício da justiça em espetáculo midiático não é correto nem ético. Fazê-lo em nome da ética, menos ainda. Para muita gente, parece tratar-se de uma catarse política, canalização de ódios acumulados. Não se resolve grande coisa desta maneira e gera-se sim dinâmicas perigosas. E sobretudo, canaliza-se toda a energia contra pessoas, obscurecendo os vícios do sistema. O sistema agradece, e permanece. A realidade, é que há um imenso desconhecimento, por parte de não economistas, de como se dão os grandes vazamentos de recursos públicos.
 1 – A compra das eleições
Bem, vamos por partes. Primeiro, a grande corrupção, a grande mesmo, aquela que é tão grande que se torna legal. Trata-se do financiamento de campanhas. A empresa que financia um candidato – um assento de deputado federal tipicamente custa 2,5 milhões de reais – tem interesses. Estes interesses se manifestam do lado das políticas que serão aprovadas, por exemplo contratos de construção de viadutos e de pistas para mais carros, ainda que se saiba que as cidades estão ficando paralisadas.
As empreiteiras e as montadoras agradecem. Do lado do candidato, apenas assentado, já lhe aparece a preocupação com a dívida de campanha que ficou pendurada, e a necessidade de pensar na reeleição. Quatro anos passam rápido.
Entre representar interesses legítimos do povo – por exemplo, mais transporte coletivo, mais saúde preventiva – e assegurar a próxima eleição, ele que estudou economia ou direito, e por tanto sabe fazer as contas e sabe quem manda, está preso numa sinuca.
O próprio custo das campanhas, quando estas viram uma indústria de marketing político, é cada vez mais descontrolado. Segundo The Economist, no caso dos EUA, os gastos com a eleição de 2004 foram de 2,5 bilhões de dólares, em 2010 foram de 4,5 bilhões, e a estimativa para 2012 é de 5,2 bilhões.
Isto está “baseado na decisão da corte suprema em 2010 que permite que empresas e sindicatos gastem somas ilimitadas em marketing eleitoral”. Quanto mais cara a campanha, mais o processo é dominado por grandes contribuintes, e mais a política se vê colonizada. O resultado é a erosão da democracia. E resultam também custos muito mais elevados para todos, já que são repassados para o público através dos preços.
Comentando os dados dos gastos corporativos na campanha eleitoral de 2010, Robert Chesney e John Nichols, da universidade de Illinois, escrevem que os financiamentos corporativos “se traduziram numa virada espetacular para a direita: a captura da vida política por uma casta financeira e midiática mais poderosa do que qualquer partido ou candidato. Não se trata apenas de um novo capítulo no interminável romance entre o dinheiro e o poder, mas de uma redefinição da própria política pela conjunção de dois fatores: o fim dos limites de doações eleitorais por parte das empresas e a renúncia por parte da imprensa ao exame dos conteúdos das campanhas. Resulta um sistema no qual um pequeno círculo de conselheiros mobiliza montantes surrealistas para orientar o voto para os seus clientes. Este ‘complexo eleitoral dinheiro-mídia’ constitui presentemente uma força temível, subtraída a qualquer forma de regulação, liberada de qualquer obrigação de prudência por uma imprensa que capitulou. Esta máquina é permanentemente mediada por cadeias comerciais de televisão que faturaram, em 2010, 3 bilhões de dólares graças à publicidade política”.
No Brasil este sistema foi legalizado em governos anteriores. A lei que libera o financiamento das campanhas por interesses privados é de 1997. Podem contribuir com até 2% do patrimônio, o que representa muito dinheiro.
Os professores Wagner Pralon Mancuso e Bruno Speck, respectivamente da USP e da Unicamp, estudaram os impactos. “Os recursos empresariais ocupam o primeiro lugar entre as fontes de financiamento de campanhas eleitorais brasileiras. Em 2010, por exemplo, corresponderam a 74,4%, mais de R$ 2 bilhões, de todo o dinheiro aplicado nas eleições (dados do Tribunal Superior Eleitoral)”.
Oded Grajew resume bem o impacto: “O financiamento das campanhas é feito majoritariamente por empresas. Nas eleições de 2010, empresas doaram R$ 2,3 bilhões e foram responsáveis por 70% dos recursos para as campanhas dos deputados federais, 88% dos recursos dos senadores, 90% para os candidatos a governadores e 91% para os candidatos a presidente. Só 1% das empresas doadoras (479) fizeram 41% das doações e 10% das empresas foram responsáveis por 77% das doações. A quase totalidade dessas empresas tem negócios com governos e dependem muito dos políticos para realizar suas atividades. O que quase todas estas empresas esperam dos eleitos? Contratos e legislações em seus benefícios.”
E a deformação é sistêmica: além de amarrar os futuros eleitos, quando uma empresa “contribui” e por tanto prepara o seu acesso privilegiado aos contratos públicos, as outras se vêm obrigadas a seguir o mesmo caminho, para não se verem alijadas.
O candidato que não tiver acesso aos recursos, simplesmente não será eleito. Todos ficam amarrados. Começa a girar a grande quantidade de dinheiro no sistema eleitoral. Criminalizar as empresas, ou as pessoas, não vai resolver, ainda mais se os criminalizados são apenas de um lado do espectro político. É preciso corrigir o sistema.
Mas custos econômicos incomparavelmente maiores resultam do impacto indireto, pela deformação do processo decisório na máquina pública, apropriada por corporações. O resultado, no caso de São Paulo, por exemplo, de eleições municipais apropriadas por empreiteiras e montadoras, são duas horas e quarenta minutos que o cidadão médio perde no trânsito por dia.
Só o tempo perdido, multiplicando as horas pelo PIB do cidadão paulistano e pelos 6,5 milhões que vão trabalhar diariamente, são 50 milhões de reais perdidos por dia. Se reduzirmos em uma hora o tempo perdido pelo trabalhador a cada dia, instalando por exemplo corredores de ônibus e mais linhas de metrô. serão 20 milhões economizados por dia, 6 bilhões por ano se contarmos os dias úteis.
Sem falar da gasolina, do seguro do carro, das multas, das doenças respiratórias e cardíacas e assim por diante. E estamos falando de São Paulo, mas temos Porto Alegre, Rio de Janeiro e tantos outros centros. É muito dinheiro. Significa perda de produtividade sistêmica, aumento do custo-Brasil.
Este tipo de corrupção leva a que se deformem radicalmente as prioridades do país, que se construam elefantes brancos. A deformação das prioridades mediante desvio dos recursos públicos daquilo que é útil em termos de qualidade de vida para o que é mais interessante em termos de contratos empresariais, gera um círculo vicioso, pois financia a sua reprodução.
Uma dimensão importante deste círculo vicioso, e que resulta diretamente do processo, é o sobre-faturamento. Quanto mais se eleva o custo financeiro das campanhas, conforme vimos acima com os exemplos americano e brasileiro, mais a pressão empresarial sobre os políticos se concentra em grandes empresas.
Quando são poucas, e poderosas, e com muitos laços políticos, a tendência é a distribuição organizada dos contratos, o que por sua vez reduz a concorrência pública a um simulacro, e permite elevar radicalmente o custo dos grandes contratos. Os lucros assim adquiridos permitirão financiar a campanha seguinte.
Se juntarmos o crescimento do custo das campanhas, os custos do sobre-faturamento das obras, e sobre tudo o custo da deformação das grandes opções de uso dos recursos públicos, estamos falando em muitas dezenas de bilhões de reais. Pior: corrói o processo democrático, ao gerar uma perda de confiança popular nos processos democráticos em geral.
Não que não devam ser veiculados os interesses de diversos agentes econômicos. Mas para a isto existem as associações de classe e diversas formas de articulação. A FIESP, por exemplo, articula os interesses da classe industrial do Estado de São Paulo, e é poderosa.
É a forma correta de exercer a sua função, de canalizar interesses privados. O voto deve representar cidadãos. Quando se deforma o processo eleitoral através de grandes somas de dinheiro, é o processo democrático que é deformado.
A moral da história é simples. Comprar votos é ilegal. Vincular o candidato com dinheiro não é ilegal. Já comprar o voto do candidato eleito é de novo ilegal.
A conclusão é óbvia: vincula-se os interesses do candidato à empresa, o que é legal, e tem-se por atacado quatro anos de votação do candidato já eleito, sem precisar seduzi-lo a cada mês.
O absurdo não é inevitável. Na França, a totalidade dos gastos pelo conjunto dos 10 candidatos à presidência em 2012 foi de 74,2 milhões de euros, 12 vezes menos que no Brasil. Na Polônia, os candidatos podem receber até o equivalente de 4 mil dólares, de pessoas físicas. Contribuições de pessoas jurídicas são proibidas. No Canadá há teto por tipo de posto almejado.
Há muitas soluções neste plano. Nenhuma resolve todo o problema da corrupção, mas é uma condição prévia necessária. E sai muito mais barato para todos nós.
A grande corrupção gera a sua própria legalidade. Já escrevia Rousseau, no seu Contrato Social, em 1762, texto que hoje cumpre 250 anos: “O mais forte nunca é suficientemente forte para ser sempre o dono, se não transformar a sua força em direito e a obediência em dever”. Em 1997, transformou-se o poder financeiro em direito.
O direito de influenciar as leis, às quais seremos todos submetidos. Ético mesmo, é reformular o sistema, e acompanhar os países que evoluíram para regras do jogo mais inteligentes, e limitaram drasticamente o financiamento corporativo das campanhas.
 2 – A armadilha da dívida pública
Estamos aqui elencando alguns dos principais mecanismos da apropriação privada do dinheiro público. A compra das eleições, que vimos acima, permite colocar em postos de comando da máquina pública pessoas cujos interesses estão diretamente vinculados a grupos empresariais.
Uma imagem clara pode ser vista na ação da bancada ruralista sobre o direito de desmatar. Mas constituiu-se igualmente a bancada das empreiteiras, das montadoras, da grande mídia, dos bancos e assim por diante. Reduz-se drasticamente o que poderíamos chamar de bancada do cidadão. No congresso, instala-se o clima de “negócios”.
Em termos gerais, isto leva a mudanças das regras do jogo em função de interesses privados, em detrimento dos interesses públicos. Os interesses privados deixam assim em parte de estar submetidos às leis do mercado – concorrência, e que o melhor vença – e passam a navegar, legalmente, nos canais de acesso privilegiado aos recursos públicos.
Em termos econômicos, ao somarmos os custos para a sociedade dos gastos com as próprias campanhas eleitorais, do sobre-faturamento de obras e da deformação das prioridades nos investimentos – veja-se em particular os imensos custos da prioridade ao automóvel nas cidades e da opção rodoviária para cargas – chegamos a somas extremamente elevadas, que resultam da corrupção da própria legalidade.
Em termos políticos, os custos podem ser ainda maiores, pois a apropriação da coisa pública por interesses privados deforma sem dúvida o processo democrático.
A maior apropriação privada de recursos públicos no Brasil, além de legal, criou a sua justificação ética, a de estar combatendo a inflação: trata-se da taxa Selic. Como muitos sabem, e a imensa maioria não sabe, a Selic é a taxa de juros que o governo paga aos que aplicam dinheiro em títulos do governo, gerando a dívida pública.
A invenção da taxa Selic elevada também é uma inciativa dos governos nos anos 1990. Tipicamente, passou-se a pagar, a partir de 1996, já com inflação baixa, entre 25 e 30% sobre a dívida pública. Os intermediários financeiros passaram a dispor de um sistema formal e oficial de acesso aos nossos impostos.
Com isto o governo comprava, com os nossos impostos, o apoio da poderosa classe de rentistas e dos grandes bancos do país, inclusive dos grupos financeiros transnacionais. Assim os governantes organizaram a transferência massiva de recursos públicos para grupos financeiros privados.
Amir Khair explicita a origem do mecanismo: “O Copom é que estabelece a Selic. Foi fixada pela primeira vez em 1º de julho de 1996 em 25,3% ao ano e permaneceu em patamar elevado passando pelo máximo de 45% em março de 1999, para iniciar o regime de metas de inflação. Só foi ficar abaixo de 15% a partir de julho de 2006, mas sempre em dois dígitos até junho de 2009, quando devido à crise foi mantida entre 8,75% e 10,0% durante um ano. A partir de junho de 2010, com a forte elevação dos preços internacionais das commodities, passa novamente a subir até atingir 12,5% em julho de 2011 e a partir de um ano atrás passou a cair até os 7,5% atuais.” 
Como funciona? Primeiro, eleva-se drasticamente a taxa Selic, em nome de se proteger a população da inflação. O argumento é tecnicamente errado, mas numa população traumatizada pela hiperinflação, há até um sentimento de alívio.
Um bom brasileiro poupador coloca a sua poupança no Banco, aplica em algum produto financeiro que vai lhe render, por exemplo, 10% ao ano. O Banco aplica este dinheiro em títulos do governo que pagam por exemplo 25%.
A diferença é embolsada pelo banco, pois o governo lhe paga estes 25% com o dinheiro do contribuinte. A fase da Selic elevada gerou enormes transferências. Estamos falando de centenas de bilhões de reais.
De onde o governo consegue tirar este dinheiro? Naturalmente, dos impostos, pagos por este mesmo depositante. Este, portanto, de um bolso tira o dinheiro e o coloca no banco, e de outro bolso tira mais dinheiro para pagar os impostos que o banco receberá pelo prazer de ter a sua poupança. Não há complicações, ele recebe 10%, mas paga 25%.
Uma monumental transferência de recursos públicos para rentistas, que além de nos custar muito dinheiro, desobriga os bancos de fazerem investimentos produtivos que gerariam produto e emprego.
É tão mais simples aplicar nos títulos, liquidez total, risco zero. E realizar investimentos produtivos, financiando por exemplo uma fábrica de sapatos, envolve análise de projetos, seguimento, enfim, envolve atividades que vão além de aplicações financeiras.
Acostumamo-nos a que tipicamente 5% do nosso PIB fosse desviado via governo para intermediários financeiros, sem que produzissem nada, pelo contrário, desviavam-se os recursos do investimento produtivo para a aplicação financeira. Para cobrir os juros sobre a dívida, o governo FHC elevou a carga tributária de 26% para 32% do PIB. De algum lugar tinha de vir o dinheiro.
No momento em que Lula assume o governo, em 2003, a taxa Selic está em 24,5%. Em junho de 2002, A dívida pública tinha chegado a 60% do PIB, hoje (2012) está mais próxima de 35%%, e os juros pagos sobre a dívida baixaram para 7,5%, mas o estoque da dívida é maior. Foi fácil abrir a torneira, fechá-la é muito mais complicado.
A partir do governo Lula o sistema foi sendo gradualmente controlado. Ainda assim, é uma transferência de dinheiro público para não-produtores que se conta em centenas de bilhões de reais. Apoio político comprado com dinheiro público, mas rigorosamente legal. Em vez de ir contra a lei, é mais prático fazer a lei ir ao nosso encontro.
No braço de ferro que hoje se desenrola, a cada vez que se baixa um meio ponto, o mundo financeiro grita na mídia, todos ameaçam com a inflação, pedem “responsabilidade” ao governo. A evolução é resumida por Amir Khair: “A dívida líquida do setor público foi marcadamente influenciada pela Selic. No início do governo FHC estava em 28,0% do PIB e mesmo com a mega venda de patrimônio público com privatizações, ao final do governo chegou a 60,4%. A elevada Selic foi a responsável por isso. No final do governo Lula tinha baixado para 39,2% e em julho estava em 34,9%. Caso a Selic continue caindo é possível que ao final do governo Dilma seja possível retornar próximo da que estava no início do governo FHC”.
Como foi possível manter-se durante tanto tempo uma transferência gigantesca de recursos públicos para intermediários financeiros?
O “núcleo” do mecanismo foi bem explicitado por J. Stiglitz, na análise que lhe valeu o “nobel” de economia: a assimetria de informação. Em termos mais explícitos, pouquíssimas pessoas entendem de mecanismos financeiros. E os que têm por profissão manejar apenas dinheiro, entendem tudo.
Vimos o excelente negócio que realizam as corporações privadas ao investirem em campanhas políticas. Investimento de alta rentabilidade. E vimos como rende obter do governo uma gigantesca fonte de transferências chamada Selic, ancorada numa instituição legal chamada Conselho Monetário, e com uma proteção ética de ganhar tanto dinheiro em nome de se proteger o povo da inflação.
As melhores apropriações se fazem com elevado espírito ético. Estamos falando aqui em algumas centenas de bilhões de reais desviados do processo produtivo. Volumes de deixar pálido qualquer jurista, sobretudo se lembrar do capítulo da constituição sobre a ordem econômica e financeira.
3 -A manipulação dos juros comerciais
Estamos, aqui, indo por partes, explorando os meandros da apropriação do dinheiro público, mecanismos relativamente simples, mas que por alguma razão não aparecem na mídia e que o público, que entra com a matéria prima, não entende.
Na raiz, conforme vimos, está a compra das eleições, que gera a apropriação indevida do poder legislativo por grandes grupos econômicos, o que por sua vez tende a gerar bases legais para ações ilegítimas. Vimos em seguida como funciona um dreno impressionante de recursos que esta legalidade gerou, através das elevadíssimas taxas Selic.
Foram centenas de bilhões de reais, apropriados essencialmente por intermediários financeiros, e os chamados “rentistas”, que vivem do que o dinheiro rende, não da produção que dá substância ao dinheiro.
Os intermediários financeiros e rentistas não se contentam com a Selic, taxa de juros oficial sobre a dívida pública. Recorrem a um segundo mecanismo que é a fixação de elevadas taxas de juros ao tomador final, por bancos comerciais, mecanismo diferente da taxa Selic, tanto assim é que a Selic baixou radicalmente frente aos 25-30% da fase FHC para os 7,25% atuais, sem que houvesse redução significativa dos juros dos bancos comerciais.
Naturalmente, os bancos comerciais, como entidades privadas, afirmam que são livres de praticar os juros que querem.
A coisa não é assim, por uma razão simples: como trabalham com dinheiro do público, e não dinheiro deles, devem seguir regras definidas pelo Banco Central, e mesmo um banco privado precisa de uma carta patente que o autorize a funcionar dentro de certas regras. Estas regras, naturalmente, vão depender da capacidade de pressão política.
Como se trata de dinheiro do público apropriado diretamente pelos intermediários financeiros, sem mediação do governo, poderíamos achar que não é desvio de dinheiro. De certa forma, quando tiram o nosso dinheiro sem a ajuda de um político, seria por assim dizer mais limpo.
Habilidade de um lado, ingenuidade ou impotência do outro, mas não corrupção.
Essencial para nós, é que sustentar no Brasil juros que são tipicamente dez vezes (dez vezes, não dez por centos a mais) relativamente aos juros praticados internacionalmente, só pode ser realizado mediante apoio político. E como durante longo tempo tivemos banqueiros na presidência do Banco Central, montou-se mais um sistema impressionante de legalização do desvio do nosso dinheiro. Esta “ponte”, entre o político e o comercial, precisa ser explicitada.
A nossa constituição, no artigo 170º, define como princípios da ordem econômica e financeira, entre outros, a função social da propriedade (III) e a livre concorrência (IV).
O artigo 173º no parágrafo 4º estipula que “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.”
O parágrafo 5 é ainda mais explícito: “A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular”.
Cartel é crime. Lucro exorbitante sem contribuição correspondente produtiva será “reprimido pela lei” com “punições compatíveis”.
O estudo do Ipea mostra que a taxa real de juros para pessoa física (descontada a inflação) cobrada pelo HSBC no Brasil é de 63,42%, quando é de 6,60% no mesmo banco para a mesma linha de crédito no Reino Unido.
Para o Santander, as cifras correspondentes são 55,74% e 10,81%. Para o Citibank são 55,74% e 7,28%.
O Itaú cobra sólidos 63,5%. Para pessoa jurídica, área vital porque se trataria de fomento a atividades produtivas, a situação é igualmente absurda. Para pessoa jurídica, o HSBC, por exemplo, cobra 40,36% no Brasil, e 7,86 no Reino Unido.
Comenta o estudo do Ipea: “Para empréstimos à pessoa física, o diferencial chega a ser de quase 10 vezes mais elevado para o brasileiro em relação ao crédito equivalente no exterior. Para as pessoas jurídicas, conforme aponta a tabela 3, os diferenciais também são dignos de atenção, sendo prejudiciais para o Brasil. Para empréstimos à pessoa jurídica, a diferença de custo é menor, mas, mesmo assim, é mais de 4 vezes maior para o brasileiro.”
O Banco Itaú teve em 2011 um lucro líquido de 14,5 bilhões, montante da mesma ordem de grandeza que o Bolsa Família que resgata da pobreza cerca de 50 milhões de pessoas. O lucro do Itaú vai para muito poucas famílias.
O banco Santander (ramo brasileiro) cobra 146% no cheque especial no Brasil, enquanto o Santander na Espanha cobra 0% (zero por cento) por seis meses até cinco mil euros. O gigante mundial que é o Santander tem no Brasil 25% do seu lucro global. Os ganhos dos grupos estrangeiros no Brasil sustentam assim as suas matrizes.
A situação é escorregadia. Se um economista disser que os grandes bancos comerciais no Brasil formaram um cartel, fica ele sujeito a ser processado, pois não terá como puxar o documento de um acordo assinado pelos membros do cartel.
Aliás ninguém, obviamente, assina um papel assim. Então em termos jurídicos, quem afirmar que há um cartel está na ilegalidade, e hoje temos todos um saudável receio do que os bancos podem fazer através de procedimentos judiciais.
Por outro lado, sendo economista, se disser aos seus alunos de economia que não há cartel, será considerarão um idiota, porque o sol não se tapa com peneira. Os dados, aqui, são absolutamente claros.
Para quem faltou à aula de economia, um dado básico: a intermediação financeira é uma atividade meio. Não alimenta nem veste ninguém. Mas se agregar as nossas poupanças para financiar uma fábrica de sapatos, por exemplo, e com isto gerar investimento, produção e empregos, está plenamente justificada.
Os lucros da fábrica permitirão a remuneração da iniciativa, a modesta remuneração da nossa poupança, e o lucro financeiro do intermediário. Além de, evidentemente, aumentar a oferta de sapatos. Mas tudo está nos montantes. O financiamento devidamente regulado capitaliza as atividades econômicas, a agiotagem as descapitaliza.
Quando se “facilita” a compra a prazo, se o juro é elevado, por exemplo de 102% como é o praticado para pessoa física, as pessoas irão comprar com uma prestação “que cabe no bolso”, porque são pobres ou não entendem de juros, mas no conjunto a metade apenas do dinheiro que gastam irá para pagar o produtor, por exemplo de uma geladeira, e a outra metade servirá para pagar juros.
O consumidor poderá comprar apenas a metade do que é a sua capacidade de compra real, e o produtor receberá muito pouco pela geladeira que produziu. O intermediário ganhará a metade de todo o valor, sem ter produzido nada. Isto se chama economia do pedágio.
O caso dos cartões de crédito deixa isto bem claro. Nota de Lucianne Carneiro em O Globo Economia compara o juro médio sobre cartão de crédito no Brasil, de 238% ao ano, com os 16,89% nos EUA e 18,7% no Reino Unido.
Não há como explicar uma diferença destas com “mecanismos de mercado”. É agiotagem mesmo.
O resultado é uma sangria absurda da capacidade de compra. Ao fazer todos os que entram neste tipo de crédito pagarem muito mais pelos produtos, gera-se um impacto forte sobre os preços finais. E nos dizem tranquilamente que juros altos nos protegem da inflação. O resultado final são dificuldades para o consumidor e para o produtor, e lucros exorbitantes para os intermediários.
Juros de 101,68% para pessoa física e de 50,06% para pessoa jurídica travam tanto o investimento como o consumo. A ANEFAC apresenta os dados completos.
Lucros financeiros como do Itaú em 2011, 14,5 bilhões de reais, constituem custos, pagos pela sociedade, sob forma de consumo retraído por parte consumidor e de lucro menor (quando não quebra) por parte do produtor. A intermediação financeira é necessária, mas quando se usa o oligopólio para fixar juros estratosféricos, o intermediário vira atravessador.
Em vez de fomentar, cobra pedágio. Em vez de gerar efeitos multiplicadores, trava a economia, ao punir o produtor e o consumidor. Os grupos internacionais têm vantagens, e buscarão dinheiro no exterior através das suas matrizes, com custos muito menores, inclusive para comprar empresas nacionais. Para o parque produtivo nacional, é desastroso.
No conjunto, trata-se de um desvio de dinheiro da economia real, via uma forma institucional ilegal, que é a “dominação dos mercados, eliminação da concorrência e aumento arbitrário dos lucros.” que a Constituição condena em termos inequívocos. Frente aos números, há alguma dúvida quanto à ilegalidade?
Não há notícias de julgamento a este respeito, e sim muitas denúncias no Procon, Idec e outras instituições, e milhões pessoas se debatendo em dificuldades.
O Serasa-Experian, hoje empresa multinacional, guardiã da moralidade financeira, decretará que brasileiros passam a ter o nome sujo, ou seja, punirá quem não conseguiu pagar 238%, e não quem os cobra.
Na realidade, esta situação se mantém pela base política de que dispõe o poderoso setor financeiro, e o conjunto da classe dos rentistas. A base política é mantida e reproduzida pelos mesmos mecanismos de contribuições eleitorais, além de posições de força conquistadas no Banco Central e no Copom.
Para que não se mude a situação, é essencial que muitos deputados, senadores e funcionários de outras áreas, que não menciono não por decoro mas por prudência, sejam devidamente financiados.
O problema do cartel é que, como no caso dos impostos, não temos escolha. Como todos cobram mais ou menos os mesmos juros e as mesmas tarifas, mudar de banco não resolve grande coisa, e gera dificuldades burocráticas.
A massa de empregados no país é paga no banco que fez um acordo com a empresa, e não tem muita escolha.
O resultado será uma economia estagnada, porque os agentes privados financeiros preferem trabalhar com papéis de que fazer investimento, ou seja, preencher a função social da propriedade prevista na Constituição.
No conjunto, permite-se que no Brasil se ganhe muito dinheiro mesmo não produzindo, e sim intermediando o esforço dos outros. Alguma semelhança com outros mecanismos de apropriação indevida de recursos? Mais bilhões.
No braço de ferro que hoje se desenrola (2012), o governo está utilizando os bancos oficiais para introduzir gradualmente mecanismos de concorrência, baixando os juros pagos pelos tomadores de empréstimos. Foi aprovada uma lei que facilita ao usuário mudar de banco. O crédito em consignação que o governo instituiu permite acesso a juros mais baratos no banco, para comprar à vista no comércio.
A própria Selic foi drasticamente reduzida, de 24,5% em 2002 para 7,5% em 2012, o que força gradualmente os bancos comerciais a procurar investimentos produtivos. A capacidade do governo de enfrentar processos de cartelização foi reforçada (o novo CADE). Mas a lentidão do processo mostra a força da resistência.
[Nota do Viomundo: Um ano depois da publicação deste artigo, a Selic volta aos 10%]
É a lenta e penosa batalha pela transferência dos recursos apropriados pelos rentistas e intermediários em geral, para os setores produtivos e os consumidores.
O Brasil, evidentemente, não está sozinho nesta luta pelo uso apropriado das nossas poupanças. Na área internacional, os grandes grupos financeiros utilizam outros mecanismos, como alavancagem, carry trade, High Frequency Trading, arbitragem, fraudes na Libor e na Euribor e outros.
Estes grupos criaram, através do controle de parlamentares, a sua própria legalidade, por exemplo com a eliminação da legislação Glass-Steagall e a diluição da lei Dodd-Frank nos Estados Unidos.
O objetivo a perseguir é claro: transformar o dreno das nossas poupanças em financiamento da economia real e fomento de atividades produtivas, reintroduzindo mecanismos de concorrência e de transparência, através de regulação pública adequada. Isto envolve o resgate da dimensão pública do Estado. Quanto ao judiciário, bastaria seguir a Constituição.

(*) Ladislau Dowbor é economista, professor da PUC de São Paulo.

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