Mais cedo do que tarde, como dizia Allende, verdade será restaurada
Em seu comentário na Rádio Brasil Atual, cientista político Paulo Vannuchi, membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, exalta a dignidade de José Genoino
Paulo Vannuchi
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REPRODUÇÃO
“Que paixão insatisfeita/ Que vingança mais demente/ Virgem santa decaída/ Satanás onipotente” (Cacaso, sobre Antonio Conselheiro). Cena do filme Guerra de Canudos, de Sérgio Resende (1997)
Lendo ontem a carta de Genoino, em que renuncia ao seu mandato de deputado, senti-me impactado. Procurei logo algumas referências – em pensadores, poemas, músicas – e me ocorreu que a maior ligação com o que acontecia na carta está nos versos do grande poeta e letrista, mineiro de Uberaba, Cacaso, para uma música que ele compôs sobre o Antônio Conselheiro, de Canudos, em parceria com o Edu Lobo: Paixão insatisfeita/ que vingança mais demente/ Virgem santa decaída/ satanás onipotente.
Foi essa a minha sensação.
A mesma Câmara dos Deputados que, recentemente, absolveu e defendeu o mandato do presidiário Donadon, envolvido em gravíssimos episódios de corrupção, de enriquecimento milionário. A mesma Câmara do pastor homofóbico racista Marco Feliciano, do deputado Jair Bolsonaro, que defende as torturas da ditadura e diz que o único erro foi ter deixado vivos alguns remanescentes dos grupos de resistência, como José Dirceu, Dilma Rousseff e muitos outros. Essa mesma Câmara se preparava ontem para promover a cassação do mandato de José Genoino, pessoa que na juventude foi presa como guerrilheira nas matas do Araguaia, no sul do Pará, quando pouquíssima gente se expunha a arriscar a vida. Houve mais de 70 mortos, companheiros de Genoino nessa resistência heroica pela construção democrática que o Brasil segue hoje.
A carta de renúncia de Genoino teve o intuito de impedir o novo espetáculo midiático – para atender ao clamor da multidão que teve a consciência política inteiramente inoculada pelas emissoras de televisão e rádio.
Muito mais cedo do que se espera, “mais cedo do que tarde”, como disse Salvador Allende, já sendo metralhado, no Palácio La Moneda, na sua última transmissão por rádio, o Brasil vai entender o que foi esse processo do chamado mensalão.
Na carta de elevada dignidade, Genoino diz:
Dirijo-me a Vossas Excelências após mais de 25 anos dedicados à Câmara dos Deputados, e com uma história de mais de 45 anos de luta em prol da defesa intransigente do Brasil, da democracia e do povo brasileiro, para comunicar uma breve pausa nessa luta, que representa o início de uma nova batalha, dentre as tantas que assumi ao longo da vida.
Assim, e considerando o disposto no inciso II, do artigo 56 da Constituição Federal;
Considerando ainda a transformação midiática em espetáculo de um processo de cassação;
Considerando, de outro modo, que não pratiquei nenhum crime, não dei azo a quaisquer condutas, em toda minha vida pública ou privada, que tivesse o condão de atentar contra a ética e o decoro parlamentar;
Considerando que sou inocente;
Considerando, também, que a razão de ser da minha vida é a luta por sonhos e causas ao longo dos 45 anos, reitero que entre a humilhação e a ilegalidade, prefiro o risco da luta; e
Considerando, por derradeiro, que sempre lutei por ideias e jamais acumulei patrimônio ou riqueza.
Por tudo isso e ao mesmo tempo em que agradeço a confiança em mim depositada ao longo de muitos anos pelo povo do Estado de São Paulo e pelo Brasil, renuncio ao mandato parlamentar e encaminho a presente missiva através do deputado José Guimarães (PT-CE) e do dr. Alberto Moreira Rodrigues, advogado inscrito na OAB/DF nº 12.652.
Esse episódio, de fato, protege a dignidade humana pessoal de Genoino e a dignidade política de mais um ataque que seria o tipo de discurso de Jair Bolsonaro e seus seguidores, os seguidores de Donadon. Aqueles que, travestidos de base aliada, trabalharam para que fosse pautada a cassação. E aí entra uma parcela do próprio PMDB na Câmara, aí entra a intervenção de figuras do PMDB, como o próprio presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves, e o líder Eduardo Cunha, que não consideraram o argumento de que o parlamentar em processo de cassação tem de ter o direito à palavra. O Donadon teve e conseguiu maioria para evitar sua cassação. Ele continua preso, condenado a 18 anos de prisão por crimes gravíssimos, de verdadeira corrupção.
Genoino não teria condições de saúde de se submeter ao estresse. O próprio laudo médico, forjado por Joaquim Barbosa, assegura a ideia de que Genoino tem de ser preservado de condições de estresse para sobreviver. E esse PMDB, que é parte da base aliada, não foi sensível, não foi capaz da coragem cívica que Genoino demonstrou.
Genoino tem sido objeto de uma solidariedade que rompe qualquer separação direita/esquerda, situação/oposição. Figuras como Ives Gandra Martins, Claudio Lembo, Celso Antônio Bandeira de Melo, Dalmo Dallari. Marilena Chauí, Maria Victoria Benevides, Chico Buarque de Holanda, Fernando Morais, Frei Betto.
Leonardo Boff acaba de lançar um contundente texto dizendo que Joaquim Barbosa não honra o Supremo, e começa o seu artigo dizendo que a imagem da Justiça, tradicionalmente, é imagem de alguém representado por uma estátua, que tem os olhos vendados para ser imparcial e objetivo, que tem uma balança para significar que ele pondera a equidade, e a espada como a força para impor a decisão. E conclui que Joaquim Barbosa não é digno do posto que ocupa: “Com o ministro Barbosa, a Justiça ficou sem as vendas porque não foi imparcial, aboliu a balança, porque ele não foi equilibrado. Só usou a espada para punir, mesmo contra os princípios do Direito. Não honra seu cargo e apequena a mais alta instância jurídica da Nação. Ele, como diz São Paulo aos Romanos, 'aprisionou a verdade na injustiça'. A frase completa do apóstolo, considero-a dura demais para ser aplicada ao Ministro”.
E o maior teólogo cristão do Brasil encerra poupando Joaquim Barbosa do que seria a parte mais dura da palavra que São Paulo escreve na sua Carta aos Romanos. Procurei saber qual era o resto da frase, fui procurar, e encontrei: “A ira de Deus se manifesta do alto do céu contra a impiedade e perversidade dos homens que pela injustiça aprisionam a verdade”.
Exalto a coragem cívica de Genoino, dizendo que o chamado que ele faz quando anuncia que vai prosseguir uma nova luta é um chamado a todas as pessoas que prezam pelos direitos humanos e pela democracia no Brasil. Eu não sou pessimista. Eu repito esse pensamento da frase derradeira de Salvador Allende: mais cedo do que tarde, essa verdade será restaurada. Por enquanto, o dia é de tristeza, de indignação que repete o poeta Cacaso quando descreveu o massacre de Canudos e dos seguidores de Antônio Conselheiro, do sertão da Bahia, em 1897. Que paixão insatisfeita/ Que vingança mais demente/ Virgem santa decaída/ Satanás onipotente.
O texto é um resumo do comentário de Vannuchi na Rádio Brasil Atual. Ouça a íntegra
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