segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

“Negros e pobres ainda são tratados como inimigos internos”                       


Tatiana Merlino (*)                                              

                              
O país é profundamente racista e classista”, define o antropólogo Luiz Eduardo Soares
Em audiência da Comissão da Verdade de São Paulo sobre a desmilitarização da PM, o professor da UERJ aponta caminhos para uma reforma do sistema de segurança pública do país.

O que as violações ocorridas durante a ditadura militar tem a ver com a segurança pública hoje?”, questionou Luiz Eduardo Soares, durante audiência pública da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, ocorrida nesta quinta-feira, 28, na Assembleia Legislativa de São Paulo.
Tudo”, ele mesmo respondeu. “O Brasil continua torturando e matando pobres e negros, tidos como inimigos internos, suspeitos. Qual conexão e referências à ditadura que praticava violações de forma sistemática com prática ainda persistem nas instituições policiais? [São práticas que] não envolvem todos, mas incluem contingentes numerosos, que se sentem autorizados a perpetrar brutalidades contra inimigos internos”.
A autorização para cometer as violações, acredita Soares, não é dada exclusivamente ou necessariamente pelos superiores dos agentes policiais. É dada também pela sociedade, “que aplaude as ações, ou se omite diante dos fatos”, e governos, “muitas vezes por omissão” outras por “intervenções proativas” que acabam tolerando e se tornando cúmplice dessas práticas.
Há, também, a responsabilidade do Ministério Público, explica Soares, que deveria zelar pelo controle externo das atividades policiais, mas “por omissão ou ação insuficiente acaba se tornando cúmplice”. A Justiça, explica “na sua passividade aristocrática, consagra e abençoa a continuidade dessas práticas”.

Violência estrutural

A manutenção de práticas de tortura e assassinatos cometidas pelos agentes do Estado mesmo após a transição da ditadura para a democracia, acredita o professor, é resultante de um processo histórico do Brasil. “A ditadura não inventou a violência institucional. Ela é parte da nossa história, assim como o racismo estrutural, a escravidão e o autoritarismo. Infelizmente eles sempre fizeram parte da nossa história”.
O que a ditadura fez, aponta, “foi deslocar o foco para os militantes de oposição”.  Pois, antes disso, o foco eram os negros e pobres. E depois da transição, seguiu sendo os negros e pobres, “dando continuidade ao processo”.
Ou seja: “A ditadura não inventou a violência policial, ela a qualificou, a tornou prática organizada de política de Estado”.
Na transição para a democracia, “embora tenhamos entoado hinos e glórias ao Estado democrático de direito”, aponta esqueceu-se que a transição passou de forma insuficiente pelas áreas de segurança pública, “que acabaram não sendo submetidas a um processo de transformação”.
A maneira brasileira de fazer a transição, de forma negociada, defende o antropólogo, “jogou para debaixo do tapete muitas mortes e crimes. Isso não se faz impunemente”.
Assim, entre os elementos de continuidade da ditadura existentes na democracia brasileira, está a lógica de que os fins justificam os meios.
E à medida em que a inadmissibilidade da tortura não foi submetida a uma revisão profunda do ponto de vista ético, a sociedade aplaude, e os profissionais continuam adotando as mesmas práticas”.

Aulas de tortura

De acordo com o antropólogo, até 1996, na Polícia Civil do Rio de Janeiro, havia aulas de “como bater”. “Não eram aulas de defesa pessoal, que são indispensáveis e sim aulas de como bater em alguém”.
O Bope [força de operações especiais da PM do Rio de Janeiro], por sua vez, oferecia aulas de tortura até 2006. “Quer dizer, não é resultado de uma veleidade ideológica de um ou outro, mas sim um procedimento institucional”.
No Rio de Janeiro, explica Soares, de 2003 a 2012, 9646 pessoas foram mortas em ações policiais. Desse universo, não se sabe quantas são mortes extra-judiciais. “Ninguém sabe porque não há investigação”.
Outro dado apresentado é que entre os casos de resistência no Rio de Janeiro, menos de 3% deles são investigados.
O MP raramente se debruça sobre esses casos, apenas quando há envolvimento de pessoas de classe média e quando isso ocupa espaço na mídia”.
Na opinião do professor da UERJ, o que acontece é uma naturalização da falta de informação e ausência de procedimentos institucionais que visem com rigor a suspensão de tais práticas. E, para ele, a naturalização é o processo de autorização social para tais procedimentos.
Por isso a importância do caso Amarildo. Ele deu rosto, nome, endereço, classe social e espaço territorial a um processo vago, genérico, sem biografia e que não gerava empatia”.
Luiz Eduardo Soares sustenta que não é possível pensar em segurança pública sem que as instituições responsáveis por provê-la cumpram a lei, respeitem a Constituição e os tratados internacionais endossados pelo Brasil, “de modo a merecer a autoridade que o Estado de direito lhe confere”.

Campeão em mortes

A exemplo da gravidade do problema da segurança pública no Brasil, Soares lembrou que por ano, no Brasil, há 50 mil homicídios dolosos.
É uma barbaridade, um número monstruoso em termos absolutos, nos colocando na segunda posição do mundo, atrás apenas da Rússia”.
Desses 50 mil casos, pesquisas apontam que em média, apenas 8% são investigados.  Ou seja, 92% dos homicídios dolosos seguem impunes.
Junto a isso, o país tem a quarta população carcerária do mundo: 550 mil presos, num crescimento acelerado em relação a 1996, quando o número era de 140 mil.
Estamos atrás dos EUA, China e Rússia, mas numa competição que tende a nos elevar nesse campeonato mórbido”.
Os que cumprem pena por homicídio representam 12% do universo penitenciário, 40% estão em prisão preventiva e dois terços cumprem pena por crimes contra o patrimônio ou tráfico de drogas. 64,6% são negros e de baixa escolaridade e renda.
Não precisa ser sociólogo ou estudar especificamente o tema para concluir que o que está acontecendo é a aplicação seletiva de filtros legais. Estamos projetando a legalidade a partir de refrações, como a classe social, cor da pele, território. Isso significa que os profissionais responsáveis pela acusação e julgamento são todos cúmplices de um grande um complô racista e voltado contra os pobres de forma consciente? Não, isso significa que o país é profundamente racista e classista”, analisa Soares.
Apesar de o tema ser tão importante, pondera o professor, o Brasil nunca discutiu a questão coletivamente, “isso nunca esteve na agenda pública.  Dificilmente a sociedade se debruça sobre o modelo policial”.

O que fazer?

Soares lista cinco pontos que acredita ser fundamentais na arquitetura institucional da política de segurança pública do país: aumento da responsabilidade da União Federal, o empoderamento dos municípios, ciclo completo, carreira única, revisão da estrutura militar.
“Não devemos discutir a questão da desmilitarização isoladamente, ainda que ela seja indispensável”.
Sobre a defesa da carreira única dos policiais, Soares lembra que dois universos convivem na mesma instituição: na PM, são praças e oficiais; e na polícia civil, oficiais delegados e não delegados, “com salários e prestígios diferentes. Por isso, a carreira única me parece imprescindível”.
Já sobre a unificação do ciclo, hoje, há a PM fazendo o trabalho ostensivo e a civil o investigativo. “Precisamos que haja integração”.
Para Soares, não faz sentido a Polícia Militar se organizar à semelhança do Exército. “Isso faria sentido se as finalidades fossem as mesmas, mas não são”.
Entre as tarefas policiais, aponta, há inúmeras delas que são de alta complexidade e que exigem adaptação. “Elas não são compatíveis com uma estrutura rígida”.
Já os confrontos correspondem a um percentual mínimo das atividades cotidianas, e para tal, deve haver unidades organizacionais específicas para confronto, “para atuar dentro da legalidade e respeitando os direitos humanos”.
Segundo ele, a ideia de que desmilitarizar fere os profissionais é absurda.
Estou falando de eficiência, capacidade de prevenção, profissionais mais valorizados. Não significa desrespeito à hierarquia, nem a ausência dela”.

Questionamento

Durante a audiência, o presidente da Comissão da Verdade de São Paulo “Rubens Paiva”, deputado Adriano Diogo, questionou o coronel Glauco Silva de Carvalho, da área de direitos humanos da Polícia Militar, que estava presente na atividade.
Por que só a Comissão de Direitos Humanos e a Comissão da Verdade tem um policial anotando tudo que acontece nas audiências, embora tenhamos sistema de gravação? Por que tanto privilégio? Quais são os relatórios que são enviados para comando, a respeito das audiências?
Logo depois, o presidente da Comissão pediu ao coronel cópias dos tais relatórios feitos pela PM.
Também participaram da audiência o delegado Maximiliano Fernandes Filho, o tenente Francisco Jesus da Paz e a cineasta Luciana Bulamarqui, diretora do filme “Entre a luz e a sombra”, exibido ao final da audiência.
Luciana leu e entregou à Comissão uma cópia(clique aqui) de um abaixo assinado defendendo a desmilitarização da PM.

(*) Tatiana Merlino é jornalista, assessora da Comissão da Verdade de São Paulo “Rubens Paiva”

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