quarta-feira, 7 de maio de 2014

Uma receita para a desigualdade            

Os gêmeos ideológicos e a mídia complacente desconversam sobre os efeitos indigestos da receita que anunciam como se fosse um biscoito fino para o país.

Saul Leblon                                      

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O conservadorismo costuma se declarar  vítima do maniqueísmo que regularmente carimbaria na testa de seus candidatos  rótulos  depreciativos aos olhos da população.

Elitistas  e entreguistas, por exemplo.

O problema real parece ser outro. Candidaturas conservadoras mostram dificuldade  para conciliar o discurso de palanque com a identidade do projeto que defendem para o país.

Na história recente tornou-se emblemático o caso do governador Geraldo Alckmin.

Presidenciável tucano em 2006, ele se fantasiou com adesivos de estatais brasileiras  na vã tentativa de afastar compreensíveis suspeitas do eleitor.

Convenceu tanto quanto o lobo vestido de vovozinha na história da Chapeuzinho Vermelho. 

Ou então Serra. Em 2010, já descendo a ladeira, aliado ao humanista bispo Malafaia para atacar gays, aborto e petistas, o tucano chegou a acenar com um gesto generoso.

O governo propunha então R$ 538 reais para o salario mínimo válido a partir de  2011, um valor calculado conforme a regra pactuada com CUT e sindicatos quatro anos antes.

 ‘Acho pouco’, disse o tucano e sapecou:

 ‘Vou fixar em R$ 600 reais’ (veja aqui: www.youtube.com/watch?v=qzyOIv--uKw).

Não contente, prometeu um aumento de 10% para os aposentados.

E arrematou com o compromisso de incluir 15 milhões no Bolsa Família (o programa reunia  então 12,3 milhões; hoje são 13, 8 milhões), ademais de  assegurar  um 13º pagamento a todos os beneficiados.

Digamos que Dilma tomasse decisão semelhante hoje.

O que diriam os centuriões do equilíbrio fiscal que saíram de faca na boca diante do reajuste de 10% para o Bolsa Família, somado à correção da tabela do IR, ambos anunciados no discurso presidencial do 1º de Maio?

No caso de Serra, zumbiu um  silencio obsequioso.

Inútil.

A credibilidade do discurso tucano não superou as desconfianças entranhadas no personagem.

O resultado é sabido:  Dilma venceu as eleições de 2010, no 2º turno, por uma diferença de mais de 10 milhões de votos sobre o delfim do conservadorismo.

Tome-se agora o caso dos gêmeos ideológicos, Aécio & Eduardo.

Ambos querem devolver aos mercados  o comando do país.

Há diferenças de estilo, mas nisso são univitelinos.

Em linguagem explícita ou cifrada vão alternando, como num jogral,  detalhes  de como se faz esse cozido de uma Nação.

Junte um Banco Central independente (da sociedade), a um choque de juros; acrescente mais duas voltas de arrocho com um superávit de 3,5%. Pique a meta da inflação ao gosto dos rentistas. Depois misture tudo com a batedeira  da liberdade irrestrita aos capitais; leve ao forno da abertura comercial plena, geral e irrestrita.

Sirva fervendo.

Só falta explicitar  à opinião pública os custos de cada ingrediente.

Colunistas isentos  (ideológicos são os blogueiros ) adornam a omissão com uma condescendência melosa e enjoativa.

A  exemplo do que fizeram com Serra não arguem o preço social e estratégica do cardápio maturado na cozinha  dos gêmeos ideológicos.

Coube à Presidenta Dilma quebrar  o segredo culinário nesta 3ª feira, ao calcular aquilo que se omite deliberadamente:

‘Baixar a meta da inflação para 3% (como querem os gêmeos) jogaria 8,2% dos trabalhadores no desemprego’, advertiu escancarando a linha tênue que separa o salitre  impopular do lacto purga antipopular.

Preguiçosa nos cálculos quando  se trata de escarafunchar  a cozinha conservadora,  a mídia reagiu celeremente ao discurso do 1º de Maio.

Manchetes faiscantes denunciavam no dia seguinte  a ‘gastança’: R$ 8,9 bi vai  custar o reajuste de 10% para o Bolsa Família e a correção da tabela do IR.

A assimetria da reação reflete uma divergência de prioridades.

Um aumento anterior de impostos providenciado pelo governo, sobre cervejas e refrigerantes, custeará quase a metade da despesa anunciada no 1º de Maio (R$ 3,6 bi).

O mercado financeiro reagiu inconsolável.

Do Itaú, o Banco Central tucano, veio a explicação: ‘esperava-se que a receita extra fosse cobrir despesas das elétricas para não prejudicar ainda mais o superávit de 2014’.

Em bom português:  teme-se que a hidráulica fiscal vire o registro para subtrair  água dos que já tem a caixa cheia, em benefício de que vivem de gota em gota.  
Só no 1º trimestre deste ano, por exemplo, R$ 13,048 bilhões  foram adicionados  à caixa dos rentistas da  dívida interna.

O volume poderia ser significativamente menor se o registro dos juros girasse para baixo.

O Brasil paga o terceiro juro real mais alto do mundo, cerca de 5%, depois de uma queda de braço em que Dilma conseguiu, momentaneamente, trazer para  3,5%, uma taxa real que foi da ordem de 11,5%, em média, no segundo governo Lula e de 18,5% na média do segundo governo FHC.

As medidas que os gêmeos ideológicos listam para o país requisitam um cavalo de pau nessa trajetória descendente.

Com elevado risco de  retornos pífios em relação aos seus próprios objetivos.
É o que demonstra o pulso agonizante de países europeus que desde a crise de 2008 vem sendo tratados com o receituário que Aécio & Eduardo  querem agora ministrar aqui.

Vejamos.

Depois de três anos de arrocho, que decepou  7% de sua economia, a dívida pública em Portugal  saltou de 108%  para  129% do PIB. O desemprego médio passa de 15%; e supera os 30% entre os jovens.

Na Espanha, que começou o arrocho antes do vizinho ibérico,  ainda com o PSOE, e o aprofundou com a chegada da direita ao poder, em 2011, o quadro é ainda mais sombrio. 

A ponto de o país registrar um déficit fiscal que é quase o dobro daquele anterior à crise.

O arrocho congelou a economia e decepou a receita do governo. A recessão fez o resto e tornou  a crise autossustentável.

Há quase  seis milhões de desempregados na Espanha (24% da força de trabalho)

A população ativa encolhe mês a mês pela desistência pura e simples de se  procurar o que não tem: emprego.

Hoje ela  é inferior à existente há seis anos  --evolução semelhante a uma situação de guerra, quando os adultos em idade produtiva, jovens, sobretudo, vão para os campos de batalha e não retornam.

Na Espanha eles estão indo às filas de embarque .

A taxa de desemprego na juventude espanhola passa de 55%. Significa que metade de uma geração inteira talvez nunca encontre trabalho em sua terra.

Pior  só a Grécia.

Seis de cada 10 jovens gregos estão desempregados e cerca de 4 milhões dos seus 11 milhões de habitantes vivem em um labirinto de pobreza e exclusão.

Há seis anos sob implacável terapia de arrocho, o país perdeu 25% de seu PIB. Em compensação, a taxa de suicídio aumentou 45% desde 2007.

O conservadorismo sabe as consequências da receita que preconiza  para o Brasil.

O colunismo especializado, que encena esclarecimento diante do livro de Thomas Piketty (‘ O Capital no Século XXI’), tem a exata dimensão do que está em jogo. 
Está em jogo assegurar aos endinheirados  uma fatia da riqueza crescentemente superior ao desempenho médio da economia. Exatamente o traço forte do capitalismo atual denunciado minuciosamente por Piketty.

Ao fixar essa estaca, a conta de chegar não fecha para o resto da sociedade.

O capitalismo assume a sua genética como usina imbatível de assimetrias sociais. 
Ou não será exatamente essa a raiz da desordem europeia nos dias que correm? 
 Rentistas e banqueiros (alemães, sobretudo) festejam a ‘retomada’,  laços sociais se desintegram e a extrema direita colhe os frutos desesperados da pobreza e do desemprego propondo uma ordem policial contra a anomia neoliberal.

Os gêmeos ideológicos e a mídia complacente desconversam sobre os efeitos indigestos da receita que anunciam como biscoito fino para o país.

Apenas os mais afoitos admitem que o segredo da massa remonta  a uma tradição  que vem da casa grande no trato com a senzala.

Trata-se da receita da desigualdade, segundo a qual , para uma  sociedade avançar , é preciso o seu povo regredir.

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