Gaza, o cinismo e
os mortos
Manuel Loff
Público
“Temos
de os matar – não só os militantes do Hamas, mas toda a população de
Gaza!" É o que diz a um correspondente do Guardian um
soldado israelita de 22 anos no funeral de um camarada seu, um dos 18 soldados
israelitas mortos na enésima invasão de Gaza, um jovem de 20 anos que fazia o
serviço militar obrigatório.
"Não temos escolha: se
não lutarmos até ao fim, eles nos matam." Nas ruas de Jerusalém, todos se
dizem contra um cessar-fogo: querem que se “dê cabo do Hamas. E isso leva
tempo”. Perguntados pelas centenas de palestinos mortos (até essa quarta-23 de manhã
eram mais de 600, o equivalente aos passageiros de dois aviões iguais ao
da Malaysia Airlines abatido
na Ucrânia), 80% dos quais civis, segundo a ONU, 20% crianças. A lengalenga
sinistra é a mesma de sempre: “Muita gente foi morta porque o Hamas usa escudos
humanos. Os palestinos não têm respeito pela vida, nós é que temos.” De
descrições de inimigos fanatizados e sem apego à vida está a História cheia: os
americanos achavam o mesmo dos vietnamitas, era o que os 'nazis' diziam de
soviéticos e iugoslavos na 2ª Guerra Mundial... Como explica uma porta-voz
da B'Tselem(uma
ONG israelita de direitos humanos), “os israelenses não negam que [os
palestinos] morram; simplesmente fazem um raciocínio que os culpa pela sua
própria morte”. E queixam-se de que os media “mostram
imagens de crianças mortas sem explicar o contexto do conflito” (Guardian, 20 e 21.7.2014).
Pois
é, o contexto... A Anistia Internacional tem repetido que é precisamente
o inverso que se passa: nas sucessivas operações punitivas sobre Gaza,
“soldados israelitas utilizaram civis palestinos, crianças incluídas, como
escudos humanos durante as operações militares”. Foi o que aconteceu na
operação Chumbo
Fundido (22 dias entre dezembro de 2008 e janeiro de 2009):
cerca de 1400 palestinos mortos, “incluídas pelo menos 330 crianças”
Cinco anos depois (e, pelo meio, outra operação, em 2012, que matou mais 160
palestinos), tudo se repete: Israel, ainda que incomparavelmente menos pressionado
que qualquer outro ator internacional, martela a opinião pública com esta
propaganda de que, se há mortos, a culpa é da forma perversa como os seus
adversários fazem a guerra – mas quando a poeira assentou em 2009, o que as
organizações independentes (a AI, as agências da ONU) comprovaram é que o
Exército israeense atacou “15 dos 27 hospitais de Gaza”, “uma trintena de ambulâncias”, “matou 16 membros do pessoal médico”. Ao contrário do que dizia a
propaganda israelita, “a Anistia não encontrou indício algum de que os combatentes
do Hamas ou doutros grupos armados tenham utilizado os hospitais para se
esconder ou para conduzir ataques, e as autoridades israelenses não forneceram
provas dessas alegações”. Pelo contrário: “impediram deliberadamente a ajuda
humanitária e as equipes de socorro [da Agência das Nações Unidas para os
Refugiados e da Cruz Vermelha] de entrar em Gaza, ou obstaculizaram a sua
circulação, atacaram veículos, centros de distribuição e pessoal médico.”
(AI, Relatório Anual 2010)
Por
tudo isto é verdadeiramente patética a discussão sobre se é “desproporcionada”
a reação israelita aos rockets lançados
a partir de Gaza. Desproporcionada, não; ela é um crime internacional, feito
enquanto o resto do mundo olha para os restos do avião Malysia Airlines! Invoca
Obama o direito de Israel a defender-se, como se Gaza fosse um país
independente que agride outro país independente. Não: é Israel que desde há 47
anos ocupa Gaza (e a Cisjordânia, e Jerusalém Oriental) ilegalmente, e a
bloqueia por terra, ar e mar (nenhum barco se pode aproximar da costa, nenhum
avião pode aterrar sem autorização militar israelita) desde 2007, controlando
todos os seus acessos (salvo Rafah, no qual tem a colaboração do Egito). A
retirada militar israelense em 2005 não alterou em nada o estatuto de território
ocupado. Em apenas 360 km2 (o tamanho do concelho de Sintra, em Portugal) vivem 1,8 milhões
de pessoas, 43% delas menores de 14 anos, 80% dependendo de ajuda humanitária
por causa do desemprego, da pobreza extrema. Para a Anistia, “a amplitude do
bloqueio e as declarações dos responsáveis israelitas sobre os seus objetivos
demonstram que esta medida é uma forma de castigo coletivo infligido à
população de Gaza, em violação flagrante do Direito Internacional.”
De todo o quadro de
ilegalidades cometidas por Israel que a União Europeia e os EUA toleram, o bloqueio a Gaza
supera tudo. Nada há neste planeta mais próximo de um gueto (o mundo deveria
pensar a que é que isto soa...) no qual se fecham, até à exasperação total,
quase dois milhões de pessoas. Os israelenses – e esta coisa a que
cinicamente se chama comunidade
internacional – comportam-se como se eles fossem todos
“terroristas” do Hamas. Os media(veja-se
o Huffington Post,
13.7.2014) mostram moradores das colinas próximas de Gaza sentados em cadeiras
de praia a aplaudir o espetáculo dos aviões e drones que bombardeiam Gaza.
Trazem pipocas, fumam cachimbos de água – enquanto a poucos quilômetros de
distância famílias inteiras ficam soterradas debaixo dos escombros, crianças
são levadas em desespero para hospitais bombardeados, onde se operam feridos
num corredor... “Os palestinos não têm respeito pela vida!”
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