sexta-feira, 18 de julho de 2014

A doutrina da Usura e o pecado mortal da Avareza na Idade Média             

Publicado na Folha de S. Paulo, domingo, 8 de maio de 1983

Neste texto foi mantida a grafia original
MOACYR SCLIAR (*)                   

As dificuldades que o Brasil e outros países atravessam em seu balanço de pagamentos mostram até que ponto a economia mundial depende hoje do sistema financeiro, vale dizer, dos bancos. 

A taxa de juros passou a ser o termostato pelo qual as atividades econômicas são reguladas (ou desreguladas), aquecidas ou esfriadas; a taxa de juros reflete-se na queda da produção, no desemprego - e em última análise acaba afetando a vida de todas as pessoas. Quem pode tira proveito dos juros altos, emprestando ou especulando. Quem não pode olha com inveja e angústia esta situação. Mas mesmo estes reconhecem a respeitabilidade do capital financeiro, que se traduz, entre outras coisas, na imponência dos bancos e na importância que é dada às opiniões dos banqueiros.

Poucos hão de lembrar que nem sempre foi assim; que houve tempos em que dinheiro e usura eram coisas olhadas com nojo e desprezo (o fato de os cofrinhos infantis terem muitas vezes a forma de um porco deve ser resíduo dessa época). O auge deste horror ao dinheiro ocorreu na Idade Média, como resultado da convergência dos interesses de duas classes poderosas. De um lado, o clero. Como assinala Henri Pirenne, em sua "História da Idade Média": "A concepção de mundo da Igreja adaptava-se admiravelmente às condições econômicas de uma época em que a terra era a única base da ordem social.

A terra tinha sido dada por Deus aos homens para que dela pudessem viver, visando à salvação eterna. O objetivo do trabalho não era a riqueza, mas sim a manutenção de cada qual na posição social em que havia nascido, até o advento da vida eterna. A renúncia do monge era o ideal que a sociedade deveria almejar. Buscar a riqueza era cair no pecado da avareza.

A pobreza era uma determinação divina, mas competia aos ricos aliviá-la pela caridade. Emprestar a juros - a usura - era uma abominação". A outra classe que abominava o dinheiro - e o trabalho - era a nobreza. De fato, os cavaleiros medievais não tinham outra ocupação do que festas, torneios e expedições militares - já que a subsistência lhes era garantida pelo trabalho dos servos.

Mesmo nesta economia rudimentar, contudo, o dinheiro era necessário. Afinal o luxo - os finos tecidos, as jóias, as especiarias - tinha seu preço, como o tinham as expedições militares, inclusive - e principalmente - as Cruzadas. A sociedade feudal resolveu o impasse de uma maneira engenhosa. Atribuiu o papel de usurário a um elemento marginal na sociedade, um elemento que pouco podia esperar da vida na terra e muito menos da vida eterna: o judeu. Criou-se assim a figura típica e caricatural do usurário de olhinhos brilhantes, nariz adunco e dedos em garra, um estereótipo que de tal forma se impôs que historiadores sob outros aspectos respeitáveis, como Werner Sombart, foram levados a crer que a usura constituía um atributo específico da chamada "raça judaica". Que não haja nada semelhante à categoria biológica de raça nos judeus em nada perturbou tais historiadores, como em nada perturbou os nazistas; o que era efeito passou a ser considerado causa e assim a lenda da predisposição judaica à usura manteve a mesma consistência que tinha à época da Idade Média. 

As relações entre usurários e senhores feudais era uma relação de mútua safadeza, uma sinistra simbiose entre a astúcia do fraco e a prepotência do forte. Relegados a este papel abominado e abominável, os judeus tiravam dele o maior proveito que podiam, cobrando escorchantes taxas de juros (mesmo essas taxas exageradas, contudo, não chegavam aos níveis de hoje, atingindo 86 por cento no máximo...). Os senhores feudais toleravam, enquanto queriam, esta situação, e, na Inglaterra, os reis dela tiravam proveito, porque todos os empréstimos contraídos com os judeus eram registrados no "saccarium judaeorum" e gravados com uma taxa de 10 por cento em proveito do tesouro real (cf. Abraham Leon, "Concepção Materialista da Questão Judaica", Global, 1981, p. 82). 

Quando os nobres não podiam pagar, ou quando precisavam de muito dinheiro de uma vez só, faziam o que faz um garoto quando necessita do dinheiro de seu cofrinho: destrói o porco. Os massacres de judeus, com sua consequente "queima de arquivo", eram a solução. Em 1189, os judeus são assassinados em Londres, Lincoln e Standord; em 1190, a nobreza destrói o "saccarium judaeorum" de York, queimando solenemente os títulos das dívidas; os judeus, situados num castelo, se suicidam em massa... Em 1290 toda a população judaica da Inglaterra foi expulsa e seus bens confiscados. O mesmo aconteceu depois na França e na Espanha, neste último país numa data bem simbólica, 1492.

A expedição de Colombo (segundo muitos historiadores, financiada por judeus) assinalaria a supremacia do capital mercantil e o fim da Idade Média. A Reforma já não consideraria pecado ganhar dinheiro; pelo contrário, poupar e investir seriam elementos importantes da ética protestante, na qual o capitalismo em ascensão encontrou seu substrato moral.

Os usurários serão substituídos pelas figuras mais respeitáveis dos comerciantes e dos financistas; entre estes os judeus encontraram seu lugar, se não com exclusividade, pelo menos com menor risco. Em 1815 esta ascensão chega ao auge, com o triunfo dos Rotschild - cinco irmãos, cada um atuando numa capital européia. O mais esperto era Nathan, que operava na Bolsa de Londres; baixo e gordo, de aparência desagradável, sempre de mãos no bolso, costumava ficar encostado numa coluna que até hoje tem seu nome. Dali acompanhava o pregão, e foi dali que deu um golpe genial. Graças à rapidez com que os agentes da família se moviam pela Europa, havia sido informado da derrota de Napoleão em Waterloo antes mesmo do governo britânico. De posse dessa valiosa informação, o que fez? Atirou-se a comprar títulos ingleses? Não. Ao contrário, começou a vendê-los, precipitando uma corrida neste sentido. Rotschild sabe, pensavam os especuladores, se Rotschild está vendendo, é porque Napoleão venceu. Então, no último momento, Rotschild tornou a comprar todos os títulos — e por preço vil. Em questão de minutos acumulou uma imensa fortuna.

Os Rotschild posteriormente tornaram-se nobres - barões, como os barões feudais que massacravam os usurários judeus na Idade Média, o que dá uma medida da relatividade ética através dos tempos e demonstra a hipocrisia oculta atrás de certas sacrossantas indignações. Mas não é esta a única conclusão a extrair da história da usura: o mais importante é constatar que ela nada mais é que um instrumento destinado a fazer o dinheiro trocar de mãos, a tornar os ricos ainda mais ricos e os pobres mais pobres. Através da elevação das taxas de juros conseguem-se hoje a recessão, o desemprego, a formação do "exército de reserva" que mantém o operariado dócil e atemorizado; através da elevação da taxa de juros mantém-se o fosso que separa os países ricos dos países pobres.

Não há dúvida: a usura só pode ser invenção de um demônio. Mas este demônio e sua invenção só são invocados quando os poderosos deles necessitam.

(*) Moacyr  Scliar(*1937/+2011), escritor gaúcho, formou-se em Medicina e trabalhou como especialista em Saúde Pública e professor universitário. Autor de contos, romances, ensaios e literatura infanto-juvenil, além de cronista  pubicado pelos principais jornais e revistas do país, integrou a Academia Brasileira de Letras.

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