Meus leitores costumam ficar muito irritados, com razão, quando eu menciono o nome de algum prócer da mídia e mais ainda quando reproduzo seus textos. Aconselham-me a ignorá-los completamente. Nós, blogueiros, temos de ser solidários aos leitores, até para não apanhar muito. A gente não tem proteção corporativa. Escrevemos praticamente no meio da rua, vulneráveis a xingamentos, vaias e tomates.
Tenho seguido esses conselhos e tentado ignorar os medalhões e suas bobagens.
Os internautas, afinal, procuram os blogs para fugir dos jornalões. Entendo a sua frustração ao encontrarem as mesmas figuras, mesmo que analisadas criticamente, aparecendo por aqui.
Dito isso, peço humildemente a misericórdia de vocês para fazer um contraponto à coluna de Merval Pereira, neste domingo-20, no jornal O Globo.
Como diziam aqueles garotos, não é pelos 0,20 de Merval, e sim por seu texto constituir, de fato, uma síntese acabada do engodo neoliberal que quase destruiu a América Latina, e que eles querem trazer de volta em 2015.
Um contraponto parágrafo a parágrafo facilitará imensamente o meu trabalho.
Vamos lá.
O texto de Merval vai com fundo cinza, o meu com fundo laranja, fonte em itálico e entre colchetes (é preciso cuidado redobrado para não haver confusão).
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O tal mercado
Por Merval Pereira, OGlobo - 20.07.2014 11h09m
O comportamento de regozijo do mercado financeiro toda vez que uma pesquisa de opinião mostra a chance de derrota de Dilma na eleição presidencial tem gerado críticas por parte dos petistas, inclusive do mais graduado deles, o ex-presidente Lula, que chegou a ironizar recentemente esse comportamento: “Pelo o que eu sei esse tal de mercado internacional nunca votou em você (Dilma) e nunca votou em mim. Quem vota na gente é o povo, cujo único mercado que conhece é onde compra feijão”.
[Em primeiro lugar, esse "regozijo" é um tanto relativo. No início de julho, eu registrei no Cafezinho a seguinte manchete.]
[Ou seja, há uma forçação de barra na mídia para associar variações na bolsa a pesquisas eleitorais. Não há nada científico neste sentido, embora eu até acredite que possa haver especulação com esse viés, sobre a qual falarei em seguida.]
(…) Lula sabe o que é isso. Já tivemos no mercado internacional o lulômetro, que o banco de investimentos americano Goldman Sachs criou na eleição de 2002 para medir a influência na cotação do dólar do risco de Lula vir a ser eleito presidente da República. O modelo matemático previa que o dólar chegaria a 3 reais em outubro, e ele chegou a 4 diante da realidade de Lula subindo a rampa do Palácio do Planalto.
[Essa é uma meia verdade daquelas bem safadas. Bem antes da eleição, o Brasil vivia sob um intenso ataque especulativo, porque nossos fundamentos macroeconômicos eram frágeis. O risco país era altíssimo. Estávamos fortemente endividados lá fora, e com dívidas vencendo em curto prazo. Nossas reservas internacionais estavam exauridas. Inflação e desemprego acima de dois dígitos. Nossa balança comercial estava negativa. Daí vem um banco de investimento hoje mais famoso pelos seus erros catastróficos do que por seus acertos, e diz que a culpa era de Lula? Não me faça rir, Merval.]
E, diante da desconfiança do tal mercado, Lula teve que lançar a “Carta aos Brasileiros” para garantir que não mudaria a política econômica. Anos depois, Lula se confessaria arrependido de ter feito tal carta, o que só reforça a desconfiança atual dos mercados com o governo Dilma.
[Lula fez a 'Carta aos Brasileiros' para se defender da chantagem dos mercados e da mídia. Agora, quando Lula se arrependeu? Isso eu não sabia. Não estou dizendo que é mentira de Merval, espero que ele esteja dizendo a verdade, mas ele poderia dar uma dica de quando foi isso. Procurei no Google e não vi nada.]
Depois de duas eleições em que reeleger Lula ou eleger Dilma não parecia perigoso para a economia do país, chegamos este ano a uma eleição diferente. O ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, que deve ser o principal nome da economia em um eventual governo do tucano Aécio Neves, já previra que a possibilidade de Dilma se reeleger no primeiro turno, como indicavam as pesquisas até pouco tempo, poderia ter o mesmo efeito que a vitória de Lula em 2002.
[Besteira. O Brasil hoje está infinitamente mais preparado e mais sólido do que em 2002. Até um Banco dos Brics criamos, para desespero do Globo. Aliás, o Globo de hoje dedica o caderno de Economia ao "aniversário" de Bretton Woods, que teria inaugurado uma nova ordem mundial. Fala em reforma de FMI e Bird, mas não analisa a importância, no contexto da geopolítica financeira mundial, da criação do banco dos Brics.]
Em consequência, a possibilidade de haver segundo turno, com boa chance de derrota do PT, poderia fazer a Bolsa de Valores retomar o crescimento, depois de ter caído quase 40% nos anos Dilma.
[É realmente triste ver um jornalista posando de profeta de bolsa de valores. Em se tratando de bolsa, tudo pode acontecer. Sobretudo o contrário do que se espera. Note o "wishful thinking" de Merval, ao falar em "boa chance de derrota do PT".]
Na semana passada, diante da pesquisa Datafolha que mostra um empate técnico entre a presidente Dilma e o candidato do PSDB Aécio Neves num segundo turno, o Ibovespa subiu, empurrado especialmente pelas ações das estatais. O que quer dizer que os investidores acreditam que num novo governo as estatais não serão mais usadas como instrumentos de política econômica, mas como empresas competitivas num mercado internacional cada vez mais difícil.
[Ah, tá bom. Os "investidores" agora são santinhos interessados no bem do Brasil. Ora, em primeiro lugar, vamos dar o nome certo: são especuladores, não investidores. Esses especuladores querem dinheiro fácil, só. Imagino que um "novo governo" trataria as estatais com muito carinho, do jeito que se vê na imagem abaixo, né?]
[Ora, as estatais nunca estiveram tão sólidas. O BB e Caixa nunca lucraram tanto e nunca tiveram fatias tão importantes do mercado. A Petrobrás nunca achou tanto petróleo, nunca produziu tanta gasolina e diesel, e nunca investiu tanto em novas plataformas e novas refinarias como hoje.]
Isso por que o mercado, dizem os especialistas, é essencialmente um instrumento da democracia, como transmissor de informações e expressão da opinião pública. Lembrei-me de um debate, anos atrás, em que fiz a mediação entre dois dos pais do Real, os economistas Gustavo Franco e André Lara Resende, hoje atuando como assessor de Marina Silva, sobre o qual já escrevi na coluna.
[Dizer que "o mercado, dizem os especialistas, é essencialmente um instrumento de democracia", é rir na cara do leitor. Que especialistas? São pós-graduados em ciência política? São filósofos? Ou seriam apenas fantasmas na cabeça de Merval? O mercado é "transmissor de informações e expressão da opinião pública"? Explique isso direito ao milhões de latino-americanos que morreram ou quase morreram de fome nas décadas neoliberais, porque se acreditava nessa balela.]
Quando o assunto foi o mercado, os dois concordaram em que a sua impessoalidade sai sempre mais barata para o contribuinte. “Goste-se ou não, o mercado é a forma mais eficiente e influente de expressão da opinião pública, e transparência é tudo quando se trata do funcionamento do mercado”, disse Gustavo Franco.
[Transparência? Que transparência? No Brasil, apenas o setor público é transparente, por lei. Sabemos exatamente o que é gasto em cada área, quanto cada funcionário ou diretor ganha. Tudo que o mercado não tem é transparência. Que o diga a Globo, que nunca mostrou o Darf.]
Para ele, uma coisa é certa: “quanto mais distantes do mercado estiverem as relações entre o público e o privado, quanto mais discricionárias as decisões, e quanto menor a transparência, maior será a corrupção”.
[Certo, então devemos aumentar a transparência do mercado, que é obscuro. O Estado brasileiro criou inúmeras leis de transparência.]
André Lara Resende destacou que a contribuição mais relevante do economista austríaco liberal Friederich Hayeck “é o seu papel de defensor dos mercados, como insuperável transmissor de informação e estimulador da criatividade, onde se pode encontrar a mais coerente e fundamentada análise dos riscos econômicos e sociais do aumento do papel do Estado”.
[Ok, até concordo, que o mercado estimula a criatividade. Sei disso por experiência própria. Nada como sentir o chão esquentando para aprendermos a pular. Mas as potências ricas, a começar por EUA e Europa, sempre tiveram um Estado fortemente indutor do desenvolvimento. Há muita falácia sobre o liberalismo americano. Lá sempre houve fortes leis contra monopólios, na comunicação, no petróleo. E toda a aparente liberalidade interna foi compensada com o imperialismo interventor em outros países, inclusive o Brasil. Ou o Merval se esqueceu que o Estado americano teve papel essencial na derrubada da nossa democracia? Isso é mercado? Não, é Estado.]
Para Franco, “quem vai terminar com a sociedade do privilégio é a economia de mercado, e não é outro o motivo pelo qual a estabilização, a abertura, a desregulamentação, e a privatização geraram tantas tensões”. A economia de mercado, na definição de Franco, “é subversiva numa sociedade do privilégio, pois propugna a competição, a impessoalidade e a meritocracia, e dispensa, tanto quanto possível, a interveniência de um Estado cheio de vícios”.
[Ah, que alívio. Gustavo Franco nos conforta dizendo que quem vai acabar com o privilégio será a economia de mercado... Agora sabemos que a "economia de mercado" irá construir estradas, escolas, hospitais, infra-estrutura. Irá aprimorar o Judiciário, combater a corrupção, humanizar os presídios. Irá sustentar a previdência social dos brasileiros, elaborar nossa política externa. Não precisamos nos preocupar com mais nada.
O "Estado cheio de vícios" não mais atrapalhará a economia brasileira. Entregaremos a gestão de tudo para um executivo do "mercado", que aliás pode ser o próprio Gustavo Franco, em cuja gestão à frente do Banco Central vivíamos um paraíso na terra. Não ligue para a notícia abaixo, deve ser intriga da oposição.]
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