O Brasil sob a
neblina da guerra
Saul Leblon
A expressão ‘a névoa da guerra’ é uma metáfora do elevado grau de incerteza que cerca o campo de batalha no momento que antecede o conflito.
Seu formulador, Carl von Clausewitz (1780/1831), um general prussiano ilustrado, amante da filosofia e da literatura, tutor do príncipe herdeiro Frederico Guilherme IV, é autor de outra máxima de reconhecida pertinência na compreensão dos conflitos modernos: ‘a guerra é a continuação da política por outros meios’.
A névoa da guerra recobre o noticiário brasileiro nessa antessala da eleição de outubro.
A neblina da desinformação é tão espessa que ofusca a própria visão do campo progressista sobre seus desafios e possibilidades.
A mídia não reflete apenas a incerteza da disputa; ela é a principal usina irradiadora das nuvens de pessimismo através das quais, para glosar Clausewitz, a política se transforma na continuação da guerra por outros meios.
Os desequilíbrios inscritos no crescimento brasileiro dos últimos anos – sobretudo a endogamia entre juros altos e câmbio valorizado, que atrai capitais especulativos, encharca o mercado de dólar, barateia importações e comprime a indústria local — não explicam o belicismo do noticiário.
Sua determinação, na verdade, é criar um ambiente de prostração eleitoral.
Tornar a sociedade refém do pânico próprio das presas enredadas em tragédias inelutáveis e incompreensíveis.
Qualquer semelhança com o bombardeio indiscriminado destinado a inocular o sentimento de rendição incondicional em populações civis não é mera coincidência.
No caso específico da economia brasileira, a manipulação de uma cortina de fogo de adversidades e revezes é operada de forma a impedir que o eleitor alcance o discernimento das grandes questões em jogo na disputa eleitoral em curso.
Em primeiro lugar, o discernimento histórico de que contradições macroeconômicas são inerentes ao capitalismo.
Em segundo lugar, que hoje elas estão exacerbadas pelo movimento errático de massas descomunais de fluxos financeiros, engalfinhadas na disputa virulenta por um pedaço da riqueza global.
Que foi diminuída ao longo de seis anos de colapso da ordem neoliberal.
Em terceiro lugar, trata-se de naturalizar as relações de um capitalismo sem freios, para desautorizar agendas alternativas.
Faz parte dessa mutação ‘esquecer’ que já não foi assim nos seus próprios termos.
Mas não foi.
Há exatamente 70 anos, em 22 de julho de 1944, o acordo assinado em Bretton Woods –que o neoliberalismo cuidou de sepultar na década de 80— visava impedir o que predomina agora.
Ou seja, a lógica de um capitalismo ensandecido em sua própria liberdade.
Que submete nações aos desígnios da mobilidade extorsiva dos capitais, sonegando-lhes instrumentos para ordenar seu fluxo na economia, ademais de negar-lhe o poder de comando sobre variáveis cruciais do desenvolvimento, como as políticas monetária, fiscal e cambial.
A libertação dos demônios reprimidos em Bretton Woods não sepultou apenas os alicerces do Estado do Bem-Estar Social.
Ela ameaça conduzir a humanidade a um estágio de indiferenciação regressiva entre a ordem jurídica, o sistema político e a hegemonia irretorquível dos mercados financeiros.
Já vivemos isso antes quando o dono da terra era o dono do servo, o dono da lei, o senhor da vida e da morte.
No absolutismo moderno, Estados e nações são chantageados incessantemente pelos mais diferentes marcadores da cobiça e das expectativas manejados pelos mercados financeiros desregulados.
Não só as bolsas, os mercados futuros e as agências de risco, mas também a mídia associada.
Tangidos pela volatilidade ininterrupta de variáveis que não controlam –e cuja coordenação exigira um poder de comando estatal demonizado como ilegítimo— governantes se veem obrigados a elevar a taxa de juros a níveis recessivos para evitar a fuga de capitais; a política cambial escapa-lhes pelos dedos; oscilações adversas nas paridades ora desencadeiam a perda da competitividade manufatureira, ora impõem o arrocho salarial sobre as famílias, ademais da perda do poder de compra nas relações de troca internacionais.
Um governante que acene com políticas de controle de capitais, estabilização cambial e cortes nas taxas de juros será comprimido até esfarelar por entre as pinças de um articulado alicate global e local.
Calcula-se que a estagnação dos negócios provocada pela crise de 2008 tenha acumulado atualmente nos caixas das grandes corporações norte-americanas cerca de US$ 7 trilhões em capitais ociosos.
É só um dos reservatórios da liquidez circulante no planeta.
Capturar o Estado de uma economia com a envergadura que tem a brasileira interessa sobremaneira a essa riqueza fictícia, compelida a uma corrida de vida ou morte pelo planeta para alimentar a sua reprodução.
É disso também que se trata nas urnas de outubro próximo.
Disso e do seu contrário.
Ou seja, de construir uma política de investimento de longo prazo, que detenha o comando das variáveis que dão margem de segurança e previsibilidade ao cálculo econômico contra o tsunami externo.
Mais ainda.
De fazê-lo na era dos mercados desregulados, quando todo capital é capital estrangeiro e, independente da nacionalidade jurídica, opera contra barreiras de comando público e soberania democrática.
É disso que se trata também quando o jornalismo abestalhado de ideologia neolibera menospreza a importância dos instrumentos de coordenação financeira criados na reunião de cúpula dos BRICS, realizada agora no Brasil.
O que a neblina ofuscante da emissão conservadora providencia nesse acirramento da disputa é a interdição implacável da politização da economia, único antídoto à rendição incondicional aos mercados prescrita por seus candidatos do peito e da alma.
Faz parte desse boicote a greve do capital contra o investimento.
Repita-se, a economia brasileira encerra desequilíbrios reais.
Em parte derivados da transição em curso no cenário global (superliquidez de um lado, baixo crescimento do comércio, de outro).
Mas não são eles que explicam o recuo acelerado das inversões produtivas nos últimos meses, magnificado pelas sirenes do apocalipse midiático.
O principal impulso vem da disputa para alterar a correlação de forças da sociedade nas urnas de outubro. E desfrutar, a partir daí, das vantagens de um novo ciclo de expansão da riqueza sob auspícios da restauração neoliberal no Brasil.
Sugestivo desse braço de ferro é o resultado da pesquisa feita pela consultoria Grant Thornton realizada junto a 12.500 empresas, em 45 países, divulgado no mês passado.
A enquete mostra uma dualidade paradoxal dos humores no país.
Cerca de 20% dos executivos consultados aqui esperam piora no desempenho da economia nos próximos 12 meses.
A taxa está acima da média global (15%).
Em contrapartida, 46% das companhias instaladas no Brasil garantem que vão ampliar seus investimentos em máquinas e equipamentos nos mesmos próximos 12 meses.
Mais: 24% pretendem construir novas instalações no período.
Os números são os maiores do mundo nos dois quesitos.
Nos EUA, investimentos em máquinas e equipamentos estão previstos nos planos de 43% das empresas, diz o levantamento da Grant Thornton –a taxa é de 37% no Reino Unido, 35% na Alemanha e 32% no Japão.
Na China, o percentual cai a 29%; no México, o novo titã dos livres mercados, recua a 28% –bem abaixo da média global de 37%.
Os dados corroboram a percepção de que a neblina da guerra eleitoral ofusca a realidade subjacente à disputa.
O que as urnas de outubro vão dizer é quem terá a hegemonia na condução do novo ciclo de desenvolvimento na sociedade que reúne a 5ª maior extensão territorial do planeta, abriga mais de 200 milhões de habitantes, sendo 90 milhões de assalariados, tem uma renda per capita crescendo acima de 2% ao ano, em média, e consolidou um mercado de consumo popular que já representa 53% da população.
Uma economia que tem um encontro marcado com um pico de investimentos em infraestrutura entre 2015 e 2017, somando R$ 299,2 bilhões, ademais de uma espiral de produção de petróleo extraído das maiores reservas descobertas no mundo no século XXI.
A ‘névoa da guerra’ não borra apenas esses contornos do campo de batalha.
Ela oculta os projetos de futuro em duelo no confronto.
O fatalismo midiático trata um como populista. Consagra ao outro o título de passaporte para a redenção brasileira.
Deslindar o sentido dessa rotulagem aos olhos do eleitor implica romper a visão economicista que frequentemente contamina o próprio discurso do governo.
Não é uma questão retórica.
A politização das escolhas do desenvolvimento significa estender ao eleitor, de fato, a tarefa de ir além do voto, para no momento seguinte da urna se engajar na construção efetiva do destino sufragado. Ou este não se consumará.
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