No Brasil, a direita poderá
ir para a cadeia?
Guilherme Leite Gonçalves (*) - especial para o VIOMUNDO
publicado em 7 de outubro de 2013 às 19:36
Acusado por vários presos políticos de comandar sessões de tortura, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra ficou livre e ainda deu lição de moral na Comissão da Verdade. Graças, inclusive, ao STF
A falsa jabuticaba e o STF
por Guilherme Leite Gonçalves*, via e-mail
“No Brasil, rico não vai para a cadeia” já se tornou senso comum. Não surpreende ouvi-lo sair tanto da boca de um militante de movimentos sociais quanto de um turista brasileiro que visita alguma capital europeia.
Essa impressão quotidianamente difundida guarda relação com uma extensa tradição intelectual baseada na ideia da inefetividade da lei na América Latina.
Nessa região, ter-se-ia uma situação desigual na distribuição de direitos e garantias. De um lado, os pobres estariam subordinados a um regime excessivamente rigoroso de aplicação da lei e suas garantias de defesa seriam sempre desrespeitadas.
De outro, os ricos poderiam, por meio de sua influência e de seus laços pessoais, ludibriar os ditames legais, girá-los para seus próprios interesses e, caso apanhados, poderiam fazer valer todas as suas garantias jurídicas para proteger a si e a seus direitos.
Dois dias após o julgamento dos embargos infringentes do caso “mensalão”, a divulgação do Relatório do Mutirão Carcerário do Conselho Nacional de Justiça, que revelou um altíssimo e terrível índice de presos provisórios no estado do Piauí em razão do descontrole sobre processos judiciais, criou as condições ideais para se retomar a imagem do Brasil dos contrastes.
Na mídia, ela foi celebrizada por meio da diferença entre o Brasil com infringentes, em que “condenados como José Dirceu e Delúbio Soares” podem saltar para o regime semiaberto sem conhecer a cadeia, e o Brasil sem infringentes, onde “os detentos sem rosto” desconhecem a progressão de regime.
Para explicar o novo dualismo, diversas opiniões e artigos publicados recorreram ao imaginário do patrimonialismo e do favoritismo. A aceitação dos respectivos embargos foi vista como resquício de nosso formalismo ibérico e a confirmação do peso do ‘você sabe com quem está falando?’ no STF.
Embora possua sua parcela de verdade, o jargão das distorções brasileiras na aplicação da lei é uma ideologia e, como tal, recomenda-se vigilância.
Primeiramente, parte de uma premissa geográfica enganosa: por que apenas no Brasil ou, no máximo, na América Latina?
O encarceramento em massa de negros nos EUA dá algumas pistas sobre o regime jurídico vigente entre as populações excluídas daquele país.
Da perspectiva dos poderosos, as sociedades que respeitamos nos oferecem casos-exemplares.
Mesmo após todas as provas levantadas no escândalo de Watergate, Nixon não foi parar na cadeia.
No final dos anos 1990, descobriu-se na Alemanha que o Partido Democrata Cristão foi financiado por caixa dois. Seu principal dirigente, o então chanceler Helmut Kohl, reconheceu ter recebido doações ilegais em mais de 1 milhão de marcos.
No entanto, conforme a polêmica biografia escrita por seu filho, a única prisão que conheceu foi a de si mesmo e seu carcereiro seria apenas sua segunda mulher.
A exemplo do que já rezava o famoso canto internacionalista, o problema é global: “Não há direitos para o pobre. Ao rico tudo é permitido”.
Se, portanto, não se trata de produto exclusivamente nacional, uma jabuticaba, por que a tendência à brasilianização da questão da inefetividade da lei?
Trata-se de um processo de constituição de identidade política por meio da oposição a um “outro” ideal e superior.
Essa estratégia confere dois componentes fundamentais para a conservação das posições historicamente privilegiadas na sociedade brasileira.
Em primeiro lugar, ao projetar um paraíso (externo) da legalidade, canaliza as esperanças de transformação nas instituições jurídicas liberais, como se elas funcionassem perfeitamente “lá fora”, sem nenhuma desigualdade de classe, gênero ou raça.
Com isso, à revelia dos processos reais de marginalização, a idealização de que a lei é efetiva nos estados (maduros) de direito reduz nossas alternativas políticas de transformação ao projeto de criação de uma ‘cultura de respeito às regras’.
A luta por mudanças é, assim, acomodada ao status quo.
Em segundo lugar, a brasilianização da inefetividade da lei serve a interesses particulares para ocultar situações concretas de afronta à legalidade por meio de falsas dicotomias como, por exemplo, aquela entre o Brasil com e sem infringentes.
Tal dicotomia sugere que os réus da ação penal 470 tiveram todas suas garantias jurídicas asseguradas em oposição aos detentos do Piauí. Não há dúvidas que esses últimos são desrespeitados em seus direitos fundamentais mais básicos.
A conclusão, no entanto, de que os primeiros gozaram de todas as proteções legais e constitucionais não é automática.
Diversas questões polêmicas já foram amplamente levantadas: inexistência de provas suficientes, incoerência da teoria jurídica aplicada, falta de consenso no tipo penal adotado, problemas na dosimetria das penas etc.
Mas, então, vale tudo para os réus do caso mensalão? Se fossem privilegiados, não teriam sido amplamente investigados.
Se investigados, não teriam sido denunciados. Se denunciados, teriam o direito ao duplo grau de jurisdição e ao incontável número de recursos de defesa de nosso sistema processual. Se julgados, não teriam sido condenados.
Levadas a sério, essas situações hipotéticas revelam uma dimensão da inefetividade da lei, agora sim, típica da mais alta corte brasileira, principalmente quando comparada com os demais países latino-americanos ou com a Europa ocidental do pós-guerra: desde a ditadura militar se consolidou, no contexto nacional, a impunidade dos setores conservadores da sociedade, quer de políticos, agentes econômicos ou militares.
Não custa lembrar o papel do STF em casos como os de Paulo e Flavio Maluf ou a postura em relação a escândalos que envolveram Bancos como Opportunity ou Marka.
A situação mais gritante, todavia, é a impunidade dos agentes da repressão militar.
A decisão que manteve a constitucionalidade da lei de anistia criou um setor privilegiado, capaz de cometer crimes contra a humanidade, mas manter-se imune às leis penais.
Se aplicada por analogia aos torturadores, a teoria do domínio do fato poderia ter levado à cadeia os mais altos governantes (militares ou civis) da época.
Nesse sentido, a história recente do STF dá um colorido verde e amarelo ao problema de inefetividade da lei: no Brasil, a direita não vai para a cadeia.
Com isso, não se quer dizer que as condições dos presos do Piauí não sejam piores do que as dos réus da ação penal 470.
Evidente que os primeiros padecem de hipossuficiência informativa, econômica e política que bloqueiam seus direitos mais básicos de defesa. Até aí nenhuma novidade na história mundial.
Sua brasilianização, no entanto, se transforma em uma estratégia retórica de controle forjada pelo pensamento conservador contra seus adversários políticos: ao qualificar os direitos e garantias dos réus da ação penal 470 como privilégios, busca minar sua capacidade de defesa, protegida legalmente por diversos instrumentos, entre eles, os embargos infringentes.
Diante da desigualdade entre os presidiários do Piauí e os citados réus, qual seria a solução? Retirar os direitos dos segundos?
O Estado de Direito possui duas vidas. No sonho dos juristas, ele é a igualdade de todos perante a lei e o exercício universal dos direitos.
Na experiência histórica mundial, trata-se de um valor abstrato que se pretende neutro, mas é manipulado por interesses particulares e, com isso, gera contraditoriamente desigualdades.
A igualdade jurídica opera seletiva e desigualmente.
Hoje, apregoa-se contra os embargos infringentes para que se tenha igualdade entre os réus da ação penal 470 e os presidiários do Piauí.
Em julgamentos anteriores, militares e agentes políticos ou econômicos conservadores beneficiaram-se da legalidade estrita para escapar de punições.
Do valor universal da igualdade jurídica chega-se a uma desigualdade: muitos não possuem os direitos de defesa; os adversários não deveriam tê-los; poucos não apenas são plenamente titulares, mas também juridicamente privilegiados.
No futuro, existirão outros casos: o tucanoduto, por exemplo. No Brasil, a direita poderá ir para a cadeia?
(*) GUILHERME LEITE GONÇALVES é doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Salento, Itália. Atualmente, faz seu pós-doutorado na Universidade Livre de Berlim e na Universidade de Bremen, ambas na Alemanha.
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