Não seria o caso de as Genis exigirem respeito à sua privacidade?
Washington Araújo
Manda recolher! E pergunta à família do Médici se aprova aquela biografia…
“Impeça Saber” seria melhor que “Procure Saber”
São, mas com uma ressalva. E a ressalva é de um cabotinismo atroz: desde que essa liberdade não prejudique a imagem que a história reservará para essa ou aquela celebridade.
A organização Procure Saber, encabeçada por Paula Lavigne e, pelo jeito, escudada pela fama de seus representados – gente famosa do naipe de Milton Nascimento, Caetano Veloso e Chico Buarque – é nada mais que o avesso do avesso em se tratando de busca da verdade.
Seria mais apropriado que se chamasse “Impeça Saber”.
Porque é isso que a citada instituição procura fazer: impedir que o público leitor de biografias saiba da vida real, da vida tal como é, de seus ídolos, seja dos esportes, seja das artes, seja da política.
E impede de forma acintosa: (1) biografia precisa ter prévia anuência do biografado e (2) biografados devem receber parte dos possíveis lucros comerciais advindos com sua publicação.
No primeiro aspecto fica patente que “conseguir anuência prévia do biografado” nada mais é que liberar a mais despudorada avalancha de elogios, bom-mocismo, e dar relevo a tudo quanto coloque o biografado “bem na foto e bem no painel da História”.
Desaforos e despautérios, falas, gestos, atos ou mesmo decisões consideradas impensadas com o decorrer do tempo em que aconteceram, se protagonizadas por gente famosa provavelmente serão aniquiladas ainda no nascedouro da biografia.
E o público-leitor ficará ignorante sobre a falibilidade humana de seus ídolos, sobre as páginas menos lisonjeiras da vida de seus artistas, pensadores, filósofos, autores, profissionais preferidos e admirados.
E se um desses ídolos, mal acostumados com o despejo indiscriminado de elogios e loas, de repente for apresentado ao público por outro viés, não menos verdadeiro que as bases que lhes granjearam a admiração, aí o trem em busca da verdade descarrila de vez.
Seria o caso de um biógrafo sério e competente, esforçado e meticuloso, deparar com declarações do biografado em favor do nazifacismo, em favor de Hitler, Franco ou Idi Amin Dada, ou seu apoio financeiro através de laranjas para o aparato de segurança dos longos períodos ditatoriais em que mergulhou o Brasil tantas vezes?
Será que tais descobertas deveriam continuar encobertas ante olhares de outrem?
Ou deveria valer apenas este tipo de pacto em que “só deixo saber de mim o que me interessa, me promove, me mitifica”, só aprovo incluir em minha pretensa biografia fatos, atos e informações que me deixem circundado por anjos e arcanjos, que me concedam a aura de gênio da raça e de raro luminar da humanidade.
Parece que a pergunta que merece ser respondida é uma só: por quê tenho medo de lhe mostrar quem sou?
É óbvio que se nada tenho a esconder, se me portei como humano – e não como semideus – ao longo de minha vida, nada deveria a temer. Quem não erra? Quem não se equivoca? Quem não troca os pés pelas mãos de vez em quando?
Quem não se arrepende de ter apoiado uma causa que, antes, honrada, caiu em desgraça ante a inesperada publicidade de sua podridão moral? Mas as celebridades se acostumaram por tempo demasiado a conviver apenas com os bônus da fama.
Fogem do ônus como o Super-Homem foge da criptonita. E o diabo foge da cruz.
Pelo jeito, as personalidades com potencial para serem objeto de biografia, passarão a fugir de biógrafos sérios e independentes como quem foge da própria sombra, sombra que impediu que jorrasse luz sobre aspectos menos edificantes (ou admiráveis) de sua vida pública, de sua arte publicitada.
No segundo aspecto, o de querer auferir lucros comerciais com a venda de livros biográficos, a situação chega a ficar patética, para não ficar apenas no ridículo em que a situação foi posta pela Procure Saber.
Como assim? Além de lutar para que se publique apenas o que se encaixa em seu modo de ver a própria vida, em sua maneira de se enxergar bem nas páginas da história, o biografado ainda se sente no direito de abocanhar algumas míseras fatias de um possível lucro financeiro devido ao autor da biografia e a todas as engrenagens da produção, edição, distribuição e comercialização da mesma?
São duas coisas que não convém convidar para a mesma mesa: direito à privacidade e direito a lucros comerciais.
Não seria o caso de uma biografia que venha a receber o Imprimatur ou o Nihil Obstat do biografado receba a tarja negra na capa e na lombada com este dístico “Biografia aprovada integralmente pelo autor”?
E como seria salutar se essas fossem abatidas ainda no processo de produção e, caso sobrevivesse a tal dispendioso processo, ficasse encalhada em livrarias!
Ao mesmo tempo, seria bem interessante que puluassem na Grande Teia da Web as biografias-ninjas, aquelas biografias que não apenas contemplassem os elevados picos de beleza artística e de fatos edificantes quais marcos civilizatórios do estado d’arte, mas também que mergulhassem a fundo nos imensos abismos e de cujas funduras os biografados tanto gostariam de manter longe dos olhos do público.
Aí sim, teríamos o salutar equilíbrio. Do contrário, estaríamos criando uma espécie de Biograbrás, a hipotética entidade responsável por despejar no mercado livreiro um sem número de biografias chapas-brancas.
Considero Chico Buarque o melhor compositor brasileiro de todos os tempos. Coleciono sua obra musicial em vários formatos – livros, discos, cds, dvds, filmes.
Admiro suas posições políticas tanto no período em que se levantou contra a ditadura militar que tomou de assalto o país quanto do período pós-democratização.
Entre Chico e Caetano não tenho dúvida alguma: é o Chico.
Entre a Rede Globo e o Chico. Chico novamente.
Entre Veja e o Chico. Dá-lhe Chico de novo.
Aprecio a totalidade de sua obra, com algumas canções tenho verdadeiro caso de amor (Sem fantasia,Tatuagem, Construção, Cotidiano, Vai passar, Paratodos) e com outras aprecio a inteligência afiada, apurada, a antena conectada com o seu tempo, mas discordo de sua letra. É o caso de Geni e o Zepelim.
A história é fantástica, a construção melódica também. Mas o refrão é bastante infeliz. E por quê é infeliz?
Por que existem milhares de mulheres no Brasil e no mundo que tem como nome próprio Geni. É que ninguém em sã consciência gostaria de ser alvo de bullying de conhecidos e desconhecidos com o tirano refrão “joga pedra na Geni, joga bosta na Geni, ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir, ela dá pra qualquer um, maldita Geni”.
Como se sentem as Genis quando ouvem nas rádios essa música? E, se com a família reunida, em uma noite prosaica de domingo, a dona Geni com a filharada em volta assiste na tevê um especial sobre o Chico e neste está escalada Geni e o Zepelim?
Não seria o caso de as Genis exigirem respeito à sua privacidade?
Não seria o caso de as Genis exigirem que os lucros advindos com a comercialização desta música em particular lhes fossem distribuídos equitativamente a título de ressarcimento por danos morais?
O que a Procure Saber tem a dizer sobre isso e sobre tantas outras obras artísticas que afrontam a dignidade humana?
Por exemplo, há algum tempo nutro o desejo de escrever a biografia do Chico, afinal, material não me falta e interesse também não.
Mas jamais faria se para tanto tivesse que submeter o texto à sua autorização antes da publicação. Isto implicaria em me manietar intelectualmente, em me podar artisticamente.
Antes de entrevistar esta ou aquela pessoa que com ele conviveu, pensaria duas vezes, “será que o Chico aprovaria” que eu entrevistasse essa pessoa para falar de sua vida, de sua arte? Por exemplo, penso aqui em José Ramos Tinhorão. Chico aprovaria?
Existem posturas e posturas. Vejamos o caso do Paulo Coelho. Fernando Moraes escreveu uma alentada biografia sobre ele. Contou com o apoio do biografado, teve acesso a material inédito de valor incomparável para compor seu painel biográfico.
Assim surgiu, pela Cia das Letras “O Mago”.
Muita coisa ali é dita: experiências místicas-espirituais, esperiências homossexuais, experiências com drogas leves e pesadas, descrédito junto a escritores renomados e também junto a editoras comerciais, ridicularização na imprensa, menosprezo por gente da Academia Brasileira de Letras (instituição em que Coelho agora integra os quadros como imortal).
Será que, sendo um dos representados pela Procure Saber, o público teria acesso à vida do Paulo Coelho de corpo inteiro? Entraria apenas o lado luz? Seria vetado o lado sombra?
Minha posição é clara: liberdade total de pensamento aos biógrafos.
E um conselho a estes: sejam práticos – risquem para sempre os nomes dos que apoiam ou integram a despropositada Procure Saber, risquem seu nomes de fututors projetos biográficos; e, obviamente, continuem seu trabalho pesquisando, compondo e produzindo apenas biografias dos que são a favor de liberdade de expressão, conforme rege a Constituição Federal do Brasil.
Decisões assim pautadas resultariam melhores para todos – biógrafos e biografados – se por um lado os biógrafos poderão trabalhar, produzir e ser remunerados em paz, sem questionamentos judiciais (apenas por alguma eventual divergência ou excesso); e os leitores sempre teriam ao alcance dos olhos biografias honestas e na íntegra, sem censura prévia.
E caso faltem personalidades brasileiras para biografar não faltarão personalidades estrangeiras, e de quebra, como escreveu um leitor, “vocês contribuirão para aumentar a cultura internacional do brasileiro leitor!”
E passo a régua no assunto.
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