Esfera pública, visibilidade e biografias
O que está em jogo é muito mais do que o direito de publicar uma fofoca sobre Caetano Veloso . É a natureza da esfera pública
Leonardo Avritzer( *)
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No entanto, uma questão tem assolado a esfera pública no Brasil nos últimos 20 anos, a saber o desequilíbrio entre representação e visibilidade. Desde a redemocratização brasileira a questão do papel dos artistas na esfera pública aparece como um desequilíbrio na noção de público. Os artistas e os indivíduos com maior visibilidade se posicionam publicamente supostamente com mais peso do que os demais indivíduos, tornando a esfera pública um espaço com fortes desequilíbrios. Alguns governos transformaram tal fato em política pública, tal como foi o caso do governo FHC, no qual artistas como Caetano Veloso e Renato Aragão assumiram a representação da sociedade civil no programa Comunidade Solidária. Tal designação, absurda em si mesma, supunha que a visibilidade substitui a representatividade. Este é o mote que se expressa agora na disputa em torno da biografias.
Vale a pena discutir um pouco sobre o papel das biografias na ideia de público e de esfera pública. As biografias operam com duas ideias, a da exemplaridade e a das tensões da vida privada. Os indivíduos que são biografados o são porque eles expressam formas de vida que nos ajudam a interpretar as nossas próprias contradições. Ou, no caso da biografias políticas, porque, no passado, indivíduos foram capazes de tomar decisões que podem ajudar os políticos atuais - pensemos em algumas das excelentes biografias sobre Churchill e Roosevelt - a tomarem decisões. De qualquer maneira, se pensarmos em biografias excelentes publicadas recentemente, como a de Hanna Arendt por Elizabeth Young Bruehl ou de Clarice Lispector, por Benjamin Moser, o que as torna interessantes é justamente a natureza contraditória e a tensão na vida privada dos biografados.
Não sabemos ao certo se a mãe de Clarice Lispector foi estuprada e qual foi o impacto desta violência na vida e na obra da escritora. Nem qual foi a natureza do relacionamento entre Hanna Arendt e Heidegger. As versões são diferentes e os autores escolhem versões que frequentemente não agradam aqueles que estão próximos dos biografados. É justamente isso o que torna o gênero interessante, a natureza contraditória das vidas privadas que adquirem visibilidade pública. É justamente esse aspecto que os artistas brasileiros querem suprimir das biografias.
Vale a pena mencionar a natureza contraditória da vida pública no Brasil. O nosso País vive ainda na sua plenitude a tradição do familismo, isto é, das relações privadas que adentram a esfera pública para manutenção de privilégios, entre os quais podemos incluir a memória oficial. É assim que vemos algumas das pérolas que circularam pela imprensa brasileira na última semana: a família de Paulo Leminski preocupada com uma biografia que retrata o problema do alcoolismo; a família do Roberto Carlos preocupada com elementos da sua vida amorosa, e assim por diante. Deve-se pensar comparativamente. Seria possível fazer a biografia do ex-presidente Roosevelt sem tratar da sua relação com Lucy Mercer? Ou Hanna Arendt sem a sua relação com Heidegger? Este é o ponto sensível da questão. O familismo brasileiro exige uma estória oficial para os seus membros e está disposto a arruinar um gênero literário importante na busca dos seus objetivos.
O que está em jogo na discussão sobre biografias é muito mais do que o direito de publicar uma fofoca sobre Caetano Veloso ou Roberto Carlos. É a natureza da esfera pública no País que está em jogo, ou seja, se ela será determinada por atores com supervisibilidade e tementes das contradições das suas imagens privadas ou se ela será uma esfera pública de iguais. Uma esfera pública de iguais exige uma pluralidade visões sobre a vida dos indivíduos que as biografia são capazes de produzir.
Se houver exageros - é possível que eles existam - existem leis no país capazes de puni-los, tal como ocorre em todas as demais democracias. É importante que tanto o Congresso Nacional como Judiciário reconheçam o direito à liberdade de expressão das pessoas com visibilidade, sem o qual a democracia brasileira dará um passo para trás.
(*) Leonardo Avritzer é professor titular de ciência política da UFMG
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