segunda-feira, 2 de junho de 2014

O verdadeiro discurso do medo                       

No Chile, o primeiro ato da derrubada de Salvador Allende desenrolou-se com uma paralisação de transportes seguida de um lock-out do comércio de alimentos

Wanderley Guilherme dos Santos                     
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Também seguimos inseguros, os empenhados existencialmente nesse fluxo histórico de espetacular transformação da comunidade brasileira. Também seguem meio desorientados os que apostaram na capacidade de um punhado de políticos de boa cepa ensinar ao país que é possível perseguir uma sociedade justa, não obstante os entulhos de um passado oligarca e suas reencarnações tatibitati. Mas incomoda vê-los hesitar diante das vociferações dos antidemocratas de todas as cores. A imagem de meia dúzia de desatinados, entre os quais índios sem teto ou sem oca, expostos a selfies na marquise do Congresso não prenuncia nada engraçado. Muito menos folclóricos ainda são os gigantescos engarrafamentos castigando a população que retorna do trabalho, à conta da intimidação promovida por uns poucos buldogues ameaçadores, fora da linha sindical. São movimentos de carregação aproveitados, bandeiras à vista, por legendas partidárias sem expressão e sem voto, desafio da força bruta ocasional à tolerância democrática.

A democracia é, por certo, um sistema político que garante voz a quem deseja acabar com ela, mas não é um arranjo institucional de espinhela caída a permitir ações que constrangem a maioria da população. O conhecido e histórico oportunismo de certos grupos sociais – trabalhadores em transportes, especialmente de massas, e empregados em saúde pública – e de rótulos partidários sem energia própria podem, parasitando a inércia das instituições legítimas e com divulgação garantida, persuadir a maioria não organizada dos cidadãos que são eles os minoritários. Imprensados entre a balbúrdia com proteção jornalística e o silêncio governamental, ficam os trabalhadores em dúvida sobre se a melhoria em suas condições de vida não constitui imerecida exceção num país aparentemente em ruínas.

Quem conhece o todo e não compartilha informação com os beneficiados comete grave erro de propaganda política. Faz parte da obrigação governamental não apenas fazer, mas fazer saber. Em 27 de maio último, por exemplo, o Senado aprovou proposta tornando legal a expropriação de empresas que explorem trabalho escravo. Não há em nenhum lugar do mundo legislação semelhante. Tal como o programa bolsa-família, essa legislação será em breve copiada por outros países, pois o trabalho escravo não é monopólio de países pobres. Contudo, notícia de tal importância foi relegada a páginas remotas dos diários ou nem mesmo registrada. Do mesmo modo, o imenso planejamento das benfeitorias que serão deixadas pela Copa de futebol, muitas das quais já operando, foi até aqui esmagado por uma das mais estúpidas campanhas jamais patrocinada pelo conservadorismo oposicionista e uisquerdóides de todos os tempos. Pois vai ter Copa, sim, assegurada pela maioria real do país e apesar do paralisante acidente vascular do governo.

Minorias têm direitos, mas não podem ter o poder de subjugar a maioria. Tratá-la como maioria é traição institucional e política. A população trabalhadora tem direito a exigir transportes suficientes e em boas condições, mas previamente tem o direito constitucional de ir e vir. Conta-se que, na China pré-conquista do poder, o Partido Comunista organizava greve de bondes fazendo os transportes rodarem gratuitamente. Não li que jamais os incendiasse e obrigasse os trabalhadores seguirem a pé para suas casas. Já no Chile, o primeiro ato da derrubada de Salvador Allende desenrolou-se com uma paralisação de transportes seguida de um lock-out do comércio de alimentos. Não conheço tratado de política em que tais movimentos prenunciem avanços democráticos. Conheço histórias em que os desfechos foram tiranias longevas.

Há razão para a ansiedade de parte da população e para o desejo de mudança. Já não é tão claro, apesar de destemidos intérpretes e fora os itens costumeiros de melhor transporte, saúde, educação e segurança, o que deseja a significativa maioria da população. Pelo que costuma responder sobre a difusão da violência, o anarquismo sem rumo dos blaquiblocs e aparentados, esplendidamente repelidos, o que a maioria deseja é mudar a sociedade. É importante que as autoridades meditem sobre isso, não se entreguem às interpretações velhacas e tragam segurança jurídica e existencial à maioria. São pagas para isso.

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