Jornal GGN – Pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o professor Marcos Dantas foi entrevistado pela revista mexicana Zócalo sobre vários aspectos da Copa do Mundo de 2014, em especial na lida com aspectos políticos – como as manifestações – e do ponto de vista gerencial.
Para Dantas, a organização da Copa mostrou falhas na preparação, embora não tenham comprometido o bom andamento do mundial, estavam muito mais relacionadas aos Estados e municípios que em relação ao governo federal.
“É deles (Estados e municípios) a responsabilidade maior pela contratação e execução das obras de mobilidade urbana, assim como pela segurança pública. Por problemas políticos e de gestão, melhor dizendo, falta de competência, não conseguiram fazer as obras a tempo e até cancelaram alguns projetos importantes. Os estados e municípios estavam desaparelhados para realizar as obras que lhe foram exigidas. Não raro faltam tanto burocracia pública, quanto empresa privada de engenharia com capacidade suficiente para sequer elaborar bons projetos”, avalia.
Por outro lado, o pesquisador destaca o que acredita ser o verdadeiro legado da Copa: o fator organização entre as esferas, que devem permanecer em função do andamento de obras importantes que, apesar de não terem sido concluídas para a Copa, serão finalizadas. Dantas avalia o resultado do esforço conjunto como “fundamental para a reconstrução do Estado brasileiro”. Confira a seguir, na íntegra, a entrevista do pesquisador à revista mexicana, concedida quatro dias antes da abertura do mundial, quando ainda pairavam incertezas em relação à segurança do evento.
Zócalo – O Brasil é conhecido como o país do futebol, como você acha que hoje em dia se constitui essa identidade através da mídia?
Marcos Dantas – Você me fez pensar sobre algo que não frequenta as minhas preocupações profissionais, embora eu adore futebol como entretenimento e, nessas horas, me comporte como qualquer outro torcedor. O futebol, realmente, tornou-se parte integrante da identidade nacional. Somos cinco vezes campeões do mundo, somos o país do Pelé, etc. Quase todo brasileiro joga ou já jogou futebol em algum momento de lazer, fins de semana etc. Mas o que é o futebol brasileiro, hoje? Nossos melhores jogadores estão no exterior, quase todos na Europa. O futebol que se joga aqui é muito ruim, o melhor futebol brasileiro a gente vê na Espanha, na Inglaterra, na Alemanha, com as camisas do Barcelona, do Chelsea, do Bayern... E a mídia, sem dúvida, ajuda nisso, seja promovendo uma ideia de sucesso relacionada a "ir para o exterior", seja nos fornecendo as imagens desse sucesso ao nos mostrar, pela televisão, os jogos de times com jogadores brasileiros, no exterior. Nossas crianças começam a crescer torcendo por esses times, pois neles estão (com razão) os seus ídolos: nos dias atuais, Neymar, David Luiz... A mídia, em suma, constitui um processo de produção de uma identidade "globalizada", na qual o lugar do Brasil é o de exportador de talentos, o sucesso só é sucesso se você consegue um lugar lá fora. E essa imagem passa a valer para todos os setores. Observo a você que talvez eu possa pensar assim porque, pela minha idade, sou de uma geração que, realmente, tinha um certo desprezo por fazer carreira no exterior (e todos os nossos grandes craques raramente saíam do país). No máximo, íamos para Estados Unidos ou Europa visando concluir a formação acadêmica e logo voltar para o Brasil, aqui buscando construir tanto a vida, como o próprio País.
Zócalo – O país realiza seu mais grande evento esportivo dos últimos anos, desde sua perspectiva, quais são os principais desafios para os organizadores?
Dantas – O maior desafio para os organizadores é... organização (rsss..) O Brasil é um país grande, complexo e com muitas diferenças comportamentais e até mesmo culturais entre suas várias regiões. Além disso, nos anos 1980-1990, o Brasil passou por um lamentável processo de desmonte do Estado, da sua capacidade de planejamento, da sua competência gerencial e de engenharia. Nos estados (somos uma federação, como você sabe) e municípios, esses problemas podem ser ainda mais graves do que no Governo Federal. Se você ler com atenção o próprio noticiário jornalístico sobre as obras para a Copa, vai perceber que grande parte dos problemas está nos estados e municípios. É deles a responsabilidade maior pela contratação e execução das obras de mobilidade urbana, assim como pela segurança pública. Por problemas políticos e de gestão, melhor dizendo, falta de competência, não conseguiram fazer as obras a tempo e até cancelaram alguns projetos importantes. Os estados e municípios estavam desaparelhados para realizar as obras que lhe foram exigidas. Não raro faltam tanto burocracia pública, quanto empresa privada de engenharia com capacidade suficiente para sequer elaborar bons projetos. Por outro lado, eu começo a acreditar que este será o grande legado desta Copa: as estruturas sociotécnicas que precisaram ser criadas ou fortalecidas (funcionalismo especializado, empresas de engenharia ou arquitetura, escolas etc.) vão prosseguir trabalhando até porque muitas obras importantes chegaram num estágio que não poderão deixar de serem concluídas. Vão ser concluídas com atraso em relação à Copa, mas vão ser concluídas. A Copa vai acabar se revelando um vetor fundamental de reconstrução do Estado brasileiro.
Zócalo – Esta Copa do Mundo começa com grandes protestos(do AMgóes - a revista aqui embarcou na 'onda' do PiG), qual significado tem esses acontecimentos em termos sociais e políticos para o Brasil? O movimento é legitimo?
Dantas – Publiquei recentemente um artigo no boletim "Carta Maior" que oferece a minha explicação para os acontecimentos: "McMundo vs. Jihad na Copa". Gosto dessa metáfora cunhada pelo cientista político estadunidense Benjamin Barber. A Copa, como todo espetáculo dessas proporções, mobiliza o imaginário social. A FIFA está preocupada tão somente com o lado "McMundo" da sociedade "globalizada": a Copa, hoje em dia, é um espetáculo feito para vender cervejas, automóveis, pacotes turísticos, serviços bancários e, claro, Coca-Cola. O "padrão FIFA" é o padrão MacDonald, é o padrão "shopping center". Durante a Copa das Confederações, qualquer observador um pouco mais atento e minimamente crítico, podia perceber que, nas telas das televisões, quando eram mostradas imagens das arquibancadas das novas "arenas", os rostos que apareciam, os rostos dos torcedores, não eram os do povo brasileiro, mas apenas os de sua parcela de pele clara e renda mais alta. Os mestiços escuros, os mulatos, os negros, os caboclos sumiram das arquibancadas dessas "arenas". E são esses os verdadeiros torcedores! Ficou muito claro que a FIFA expulsou o povo dos estádios. Por outro lado, isso se deu justamente num momento em que, graças a um amplo conjunto de políticas econômicas e sociais, o povo – o povo de verdade - vinha melhorando de vida, a renda subia, milhões de pessoas estavam e estão comprando eletrodomésticos, automóveis, até viajando de avião nas suas férias. Sim, o Brasil viveu um fenômeno socio-cultural muito interessante nestes últimos anos que os analistas definem como "ascensão da classe C". Eu tenho a impressão que essa "classe C", justo no seu momento de consagração, se sentiu excluída da festa. Acho que o Governo Dilma falhou feio ao não perceber a dimensão simbólica envolvida na Copa, ao aceitar as exigências descabidas da FIFA e acreditar que tudo se justificaria pelos investimentos que fez - e fez mesmo! - em obras de infra-estrutura e melhoria urbana.
Se permite estender-me um pouco mais, penso que esta situação de desconforto passou a ser explorada politicamente, ou seja, passou a ser potencializada, por todas as forças de oposição ao atual governo. A começar pela mídia que se declara, oficialmente, oposicionista. Tudo que é ruim é noticiado, nada que é bom é publicado. Os partidos de centro-direita e direita fazem o que podem para estimular a insatisfação. Os partidos de extrema-esquerda, com alguma inserção, como é natural, em segmentos trabalhadores, também, sempre que podem, promovem greves e manifestações. Assim, até porque há um real bloqueio a qualquer notícia "positiva", cria-se um clima de aparente insatisfação majoritariamente generalizada, o que não é verdadeiro. Existe uma "maioria silenciosa" que parece sentir-se inibida de se manifestar. Esta maioria aparece nas pesquisas que continuam colocando Dilma na liderança da corrida eleitoral.
Boa parte desse clima tem a ver com as eleições. Não importa se a Seleção vai ganhar, ou não, isto é do jogo. Mas se a Copa transcorrer sem grandes problemas e acabar revelando-se um razoável (ou estrondoso) sucesso, vai ficar muito difícil derrotar a presidente Dilma em outubro. Eu realmente estou convencido de que a Oposição deseja o fracasso da Copa. É triste, mas é fato.
Zócalo – Outro tema são as greves que estão acontecendo, como é o caso dos metroviários. Isso afeta de alguma forma o andamento da copa do mundo?
Dantas – Certamente, paralisar o metrô em dia de jogo vai criar um grande problema. Acho que tem dois lados oportunistas aí. O sindicato dos metroviários de São Paulo que, se eu não estiver enganado, é comandado pelo PSTU e PSOL, decidiu fazer greve nas vésperas da Copa, acreditando que, assim, pode aumentar o seu poder de barganha e obter um aumento _MUITO ACIMA_ dos indicadores inflacionários. O governador Alckmin, do PSDB, endurece as negociações, até demite grevistas, assim apenas contribuindo para maior radicalização. No ano passado, diante de uma manifestação de pouco mais de 2 mil pessoas, iguais a tantas outras que acontecem toda hora nas principais cidades brasileiras, o mesmo governador comandou violenta e descabida repressão policial que desencadearia toda aquela jornada de protestos de junho. Espero que, até quinta-feira, o bom senso ilumine os dois lados.
Zócalo – O Brasil tem um monopólio da televisão. Como são manejadas as informações sobre os protestos sociais no contexto da Copa? E a imprensa?
Dantas – De fato, no Brasil existe um oligopólio informacional comandado por quatro grandes conglomerados: Globo, Abril, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo. Essas organizações agendam o que a sociedade brasileira deve saber e sobre o que deve pensar. Definem o que os teóricos do jornalismo chamam de "agendamento" (ou "agenda setting"). A_Veja_ apura uma matéria e, no fim de semana, quando vai para as bancas, o _Globo_ e a _Folha_ também publicam a mesma matéria, citando a _Veja_. Jornalistas da _Folha_ e do _Estado_ trabalham nos noticiários dos canais da Globo, na televisão paga. Há uma total simbiose. Ninguém acha isso escandaloso! Os meios não costumavam dar grande importância para manifestações populares até o ano passado. Em geral, bloqueavam a divulgação desse tipo de informação. Súbito, passaram a dar grande destaque. É parte da estratégia de disseminar a insatisfação. O que acaba, claro, consolidando a idéia de que estamos todos insatisfeitos.
Zócalo – Finalmente está o tema da seguridade. Você acha que está garantida a seguridade dos jogos e dos turistas na Copa?
Dantas – Moro no Rio de Janeiro. Nada melhor para um carioca, do ponto de vista da tranquilidade e segurança, do que um grande evento... (rsss...) Desde a Rio92 até a recente visita do Papa Francisco, passando pelos Jogos Panamericanos, além de outros eventos, aqui se realizam grandes festas sem que ocorra nenhum problema mais grave. Todo dia de Ano Novo, entre 2 a 3 milhões de pessoas se reúnem na praia de Copacabana e nada acontece, além de muita festa. O Brasil não é uma Síria ou Afeganistão, nem mesmo (me desculpe) um México. Não temos aqui terroristas e grupos armados. Existem bairros violentos, geralmente nas periferias das maiores cidades, distantes até das regiões turísticas. Mas é violência de pequenos bandidos locais, nada tão organizado como Michoacán, Zeta ou Sinaloa... No Rio, havia uma situação mais problemática, devido a uma maior imbricação entre as "favelas" e o "asfalto", os bairros pobres e os bairros de classe média. Nos últimos anos, o governo estadual, com apoio federal, implementou uma razoavelmente bem sucedida política de pacificação dos territórios pobres, deles expulsando os grupos armados. Essa política é conhecida por UPP (iniciais de Unidades de Polícia Pacificadora). Hoje em dia, nas "favelas" vizinhas aos bairros mais ricos da cidade (Zona Sul e Barra da Tijuca), é perfeitamente possível fazermos um bom programa de fim de semana (ir a uma roda de samba, por exemplo), e até mesmo se hospedar em albergues e hostels, sem sentimento de risco ou hostilidade. Tem muito turista jovem fazendo isso e, nesta Copa, já tem muito "favelado" ganhando um bom dinheiro alugando quarto ou servindo almoço para estrangeiros. Como acontece em qualquer grande cidade do mundo, inclusive Paris ou Nova York, problemas como roubo de carteira de dinheiro, passaporte ou máquina fotográfica sempre podem acontecer. Qualquer turista deve estar atento a isso (eu, por exemplo, quando viajo para o exterior, coloco dinheiro e passaporte numa "pochete" interna, dentro das calças, e seguro bem a máquina fotográfica). Estou, realmente, muito tranquilo quanto à segurança, seja no Rio, seja em outras cidades. Evidentemente, estou descartando qualquer hipótese de sermos atacados pelo terrorismo internacional. O Brasil, até onde eu saiba, não é alvo. Mas disto, minha cara, nem a maior potência do mundo está livre... (rsss...)
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