sexta-feira, 23 de janeiro de 2015


O  que  sai  no  jornal é o  


“racionamento dos fatos”


Fernando Brito 
           
Do AMgóes - A síndrome de vira-latas de nossos comuns mortais induze-os a assistir enlevados, vez por outra, na TV, à entronização de monarcas da embolorada realeza europeia, bem assim a se deleitar com cenas do nascimento, por exemplo, de bisnetos da longeva soberana do reino Unido("...que gracinhas!!!"). Todos, entretanto, torcem o nariz diante de cena como a da foto abaixo, da 3ª posse consecutiva do indígena Evo Morales na Bolívia,  eleito  em votações democráticas pela esmagadora maioria de sua gente(Um índio a se 'perpetuar' no poder? Como pode? Não é possível!)...                          


evo
Uma amiga me conta que a mãe telefonou para saber como ela tinha ficado “durante o apagão”.
- Mãe, aqui não teve apagão!
- Mas como, minha filha, deu no jornal!
- Mas não teve. E aí, teve?
- Não. Aqui não faltou luz, nem lá na sua tia fulana que falou comigo agora, lá de Florianópolis.
– Pra você, mãe, aprender a não  acreditar em tudo o que sai no jornal…
Detalhe: esta amiga é jornalista.
Como é jornalista(dos melhores) o veterano Luciano Martins Costa, que publica, no Observatório da Imprensa, uma trágica crônica sobre a forma e a escala de destaque do que sai nos jornais brasileiros.
Que me consegue traduzir o nojo com que li a chamada “Dom Evo I”, na manchete de O Globo, um deboche contra a autenticidade de um índio, Evo Morales, assumir a presidência do país segundo a tradição de seu povo – e seu povo é a imensa maioria(mais de 80%) do povo boliviano.
E que registra, com explicitude, o tratamento esquizóide com que se analisa a política econômica.
O que é “bom”, é Levy. O que é “ruim”,mesmo sendo bom,  é Dilma.
Quem sai no retrato
Luciano Martins Costa - OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA
Os jornais dessa quinta-feira (22/1) refletem uma circunstância corriqueira na relação da imprensa com o poder político e reproduzem o estado de guerra que domina o ambiente midiático. As manchetes e outros títulos de destaque nas primeiras páginas procuram exacerbar as dificuldades da economia nacional, ao mesmo tempo em que tentam colocar o problema de abastecimento de água em São Paulo na conta das mudanças climáticas.
O conjunto de notícias e opiniões que os diários apresentam como a síntese do período induz o leitor a acreditar que o Brasil é um comboio em direção ao abismo, e que o condutor, o ministro da Fazenda Joaquim Levy, está tomando as providências para reduzir a velocidade e desviá-lo de volta para o trilho do desenvolvimento. A presidente da República, responsável pela estratégia que o ministro deve administrar, é citada quase exclusivamente no meio de declarações sobre o escândalo da Petrobras.
Há espaço, ainda, para a fotografia do presidente reeleito da Bolívia, Evo Morales, envergando a bata tradicional na cerimônia indígena que antecede sua posse. Com exceção do Estado de S. Paulo, os jornais expõem na primeira página a imagem de Morales junto a xamãs nativos, acompanhada de textos que mal dissimulam o preconceito. No Globo, o título do conjunto é: “Dom Evo I”. Na Folha de S.Paulo, o título chega próximo da zombaria: “Pelos poderes de Evo”, diz o jornal paulista.
A imprensa não suporta essa coisa de indígena fora de reservas, ocupando palácio de governo e resolvendo problemas centenários de seus países.
Como se vê, há uma série de elementos a serem observados nas escolhas dos editores. Um dos aspectos mais interessantes é o posicionamento que a imprensa faz dos principais protagonistas da cena pública.
Evo Morales, que vai para seu terceiro mandato com um histórico de êxitos na recuperação da economia e da autoestima dos bolivianos, é retratado como uma aberração excêntrica, numa América Latina cuja elite se imagina europeia. A presidente do Brasil vira personagem secundária na crônica do poder. Por outro lado, o governador de São Paulo, responsável direto pela crise que ameaça o bem-estar de milhões de cidadãos, é retirado de cena quando deveria estar respondendo perguntas incômodas, porém cruciais.
Racionamento de fato
Se a imprensa aprova as medidas anunciadas pelo governo federal, o destaque vai para o ministro da Fazenda. Se a imprensa se vê na contingência de reconhecer o descalabro na gestão dos recursos hídricos e no sistema de distribuição de energia em território paulista, o foco vai para auxiliares do segundo ou terceiro escalão. O governador Geraldo Alckmin aparece apenas para criticar a empresa responsável pela gestão da energia, AES Eletropaulo, numa clara manobra para criar um novo foco de atenção e desviar do Palácio dos Bandeirantes o olhar crítico do público.
O isolamento da presidenta Dilma Rousseff no noticiário sobre medidas econômicas (que a imprensa apoia) vem acompanhado de comentários que amplificam supostas reações de dirigentes de seu partido às medidas anunciadas pelo ministro da Fazenda. Assim, o leitor é induzido a pensar que Joaquim Levy conduz a economia à revelia da presidenta e contra a orientação do partido que a reconduziu ao poder.
No caso paulista, quem vai para a frente da batalha comunicacional é o presidente da Sabesp, Jerson Kelman, que em artigo na Folha de S.Paulo tenta convencer o cidadão de que não há racionamento de água, mas pode vir a acontecer. Aproveita para reconhecer que a principal causa da crise hídrica é a fartura de vazamentos na tubulação. São 64 mil quilômetros de tubos enterrados sob o asfalto da região metropolitana, uma extensão correspondente a uma volta e meia em torno do planeta.
O presidente da Sabesp só não explica por que seu chefe, o governador Geraldo Alckmin, não exigiu que a empresa corrigisse essa deficiência desde a primeira vez que ocupou o Palácio dos Bandeirantes, em 2001. E a Folha de S.Paulo esquece que publicou no dia 12 de outubro de 2003, um domingo (ver aqui), uma reportagem na qual alertava para o fato, se nada for feito para reduzir as perdas, de a região metropolitana só ter água até o ano de 2010.
Nada foi feito. Tudo que sai dos mananciais do sistema Cantareira se perde nos vazamentos. A Sabesp raciona a água, a imprensa faz o racionamento dos fatos.

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