A boa consciência faz
a esquerda dormir
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Jean Bricmont (*) |
A queda do comunismo provocou um grande número de efeitos colaterais, em particular na maneira de pensar da esquerda. Enquanto existia, o comunismo forçava tanto seus partidários quanto seus adversários a refletir politicamente, quer dizer, a propor programas a curto e longo prazo, a fixar prioridades e a avaliar as correlações de força.
A filosofia moral subjacente, “científica” ou “materialista”, consistia em inserir as tragédias e os crimes, grandes ou pequenos, na cadeia de causas e consequências, e em pensar que a condição humana só podia ser melhorada por mudanças nas estruturas socioeconômicas. Além de estar presente nos comunistas, essa maneira de pensar se encontrava também nos social-democratas, quando eles realmente o eram, assim como na maior parte dos movimentos anticolonialistas. Toda a elaboração do direito internacional e a maioria dos esforços na busca pela paz eram ligadas a essa filosofia.
A atitude oposta, que poderíamos chamar de religiosa e que era muito forte tanto nos “novos filósofos” quanto no discurso do ex-presidente dos Estados Unidos George W. Bush, consistia em ver o mal e o bem como existindo “em si”, quer dizer, independentemente das circunstâncias históricas dadas. Os “malvados” – Adolf Hitler, Joseph Stalin, Osama bin Laden, Slobodan Milosevic, Saddam Hussein etc. – são demônios que saem de uma caixa, consequências sem causa. Para combater o mal, há uma única solução: mobilizar o bem, armá-lo, tirá-lo de sua letargia e lançá-lo ao ataque. É a filosofia da boa consciência perpétua e da guerra sem fim. A reação aos atentados de 11 de setembro de 2001 e às suas continuações ilustra a diferença entre as duas filosofias. Aqueles que, minoritários no Ocidente, procuravam entender “por que eles nos odeiam” foram considerados apóstatas por aqueles que “entendiam” a reação norte-americana (dois países invadidos, um conflito interminável, dezenas, talvez centenas, de milhares de mortos). Estes últimos são frequentemente os mesmos que “entendem” a reação israelense quando três de seus soldados são capturados. Mas seria preciso então “entender” da mesma forma a vontade dos soviéticos, desde 1945, de fazer do Leste Europeu uma zona tampão depois dos milhões de mortos em consequência da Segunda Guerra Mundial. “Entender” também a reação chinesa de isolamento, na época maoísta, resultado das Guerras do Ópio, das múltiplas humilhações da China pelas potências ocidentais e da invasão japonesa. E “entender”, enfim, a reação do mundo árabe à traição franco-britânica na época do fim do Império Turco em 1918, da criação de Israel em 1948 e do apoio ocidental constante a esse Estado, inclusive durante as cinco guerras árabe-israelenses.
Todos os seres humanos têm medos irracionais e, quando atacados, reações excessivas, entre as quais desejos de vingança. Mas a violência contrarrevolucionária, a opressão das classes dominantes e as invasões estrangeiras precedem e engendram a violência revolucionária, e não o contrário. O caso do regime de Pol Pot, no Camboja, é sem dúvida o exemplo preferido dos intelectuais pró-Ocidente. Mas como imaginar que esse regime poderia chegar ao poder sem os bombardeios sobre o Camboja, o golpe de Estado de março de 1970 contra o príncipe Norodom Sihanouk e a desestabilização desse Estado pelos norte-americanos?
Desprezo pela História
Longe de admitir o que o precede, o discurso dominante sobre os países do Sul combina a estigmatização e o chamado à intervenção. A estigmatização baseia-se, em geral, nos direitos humanos, na democracia e, com relação ao islã, no direito das mulheres. Nos Estados onde existem ditaduras, faz-se destas a principal fonte de todos os problemas. No caso contrário, suas eleições nunca são transparentes o suficiente, sua imprensa nunca é pluralista o suficiente, suas minorias nunca estão protegidas o suficiente, suas mulheres nunca são livres o suficiente.
Esse discurso despreza a história. As sociedades ocidentais só se tornaram mais respeitadoras dos direitos humanos depois de um longo período de acumulação econômica e de evolução cultural, ambas acompanhadas da violência mais brutal (colonialismo, exploração operária, guerras mundiais). É irrealista exigir que países que há apenas sessenta anos viviam sob o jugo colonial ou feudal atinjam subitamente as normas de respeito aos direitos humanos existentes em nossos países (e ainda assim em tempos de paz; em tempos de guerra, vejam-se Guantánamo ou o destino que Israel reserva às populações palestinas e libanesas).
Outra objeção é ainda mais séria. O discurso sobre os direitos humanos coloca sempre a tônica nos direitos políticos e individuais ao mesmo tempo que ignora os direitos econômicos e sociais, que entretanto participam igualmente da Declaração Universal. Para ilustrar esse problema, citemos os economistas Jean Drèze e Amartya Sen. Eles calcularam que, partindo de uma base similar, a China e a Índia seguiram caminhos de desenvolvimento diferentes e que a diferença entre seus sistemas sociais (em matéria de cuidados com a saúde, por exemplo) tinha provocado 3,9 milhões de mortes suplementares por ano na Índia.
Comparações semelhantes podem ser feitas hoje entre Cuba e o resto da América Latina. Em nome de quais organizações não governamentais ocidentais como os Repórteres sem Fronteiras, cujos membros gozam em geral de dois tipos de direitos (políticos e sociais), decidem qual deles é prioritário?
Enfim, imaginemos por um instante os Estados Unidos e a Europa sem o fluxo constante de matéria-prima, a mão de obra imigrante, os bens manufaturados produzidos por trabalhadores com salários de miséria, os fluxos financeiros indo do Sul para o Norte (reembolso das “dívidas”, fuga de capitais) e mesmo sem a matéria cinzenta que vem remediar o naufrágio de nosso sistema educativo e de saúde. O que aconteceria com esses magníficos sucessos que nossas economias supostamente constituem? Elas estão, por enquanto, drogadas pelo imperialismo; mas essa droga provavelmente não será fornecida eternamente nas condições atuais.
Diante da instrumentalização dos direitos humanos, o pensamento crítico ou de esquerda está extraordinariamente fraco, em particular quando se trata de se opor às guerras norte-americanas na Iugoslávia, no Afeganistão e no Iraque, todas justificadas pela defesa das minorias, das mulheres ou da democracia. Essa fraqueza reflete talvez o mal-estar sentido por muitos “ex” (comunistas, trotskistas, maoístas), pelo fato de que os direitos individuais e políticos tenham sido, durante o período “leninista”, mandados para o espaço. Mas de nada serve substituir uma cegueira por outra.
Fora do espaço e do tempo
Uma boa ilustração dessa fraqueza da esquerda é a ideologia do “nem-nem” que dominou os tímidos protestos contra os conflitos recentes: nem Milosevic nem a Otan; nem Bush nem Saddam; ou ainda nem Ehud Olmert nem o Hamas. Existem diversas falsas simetrias. Em primeiro lugar, em todas essas guerras, existe um agressor e um agredido. Colocar ambos no mesmo plano é abandonar qualquer noção de soberania nacional. Depois, o poder e a capacidade prejudicial das duas partes não são comparáveis. Os Estados Unidos e seu poderio militar são os pilares da ordem mundial na qual vivemos. São os Estados Unidos, e não os países já citados, a quem as forças progressistas afrontam e continuarão a afrontar durante a maior parte dos conflitos.
Enfim, o “nem-nem” age como se estivéssemos situados acima do conflito corpo a corpo, fora do espaço e do tempo, enquanto vivemos, trabalhamos e pagamos nossos impostos nos países agressores ou nos de seus aliados (a postura “nem Bush nem Saddam” tinha um sentido completamente diferente para os iraquianos, que foram forçados a viver os dois regimes). Em vez de partilhar a visão que o Ocidente tem do resto do mundo, a esquerda ocidental poderia se esforçar para fazer os “ocidentais” entenderem a visão que o resto do mundo tem deles, e lutar contra tudo o que reforça um sentimento de superioridade e de pureza moral.
Se o século XX não foi o do socialismo, foi o da descolonização, que permitiu que centenas de milhões de pessoas escapassem de uma forma extrema de opressão. Pode-se imaginar que o século que começa será o do fim da hegemonia norte-americana. Um “outro mundo” se tornará então realmente possível, e, quando nossas economias estiverem privadas dos benefícios provenientes da posição dominante dos Estados Unidos no sistema mundial, rediscutiremos talvez seriamente a questão do socialismo.
(*) Jean Bricmont é professor de física teórica na Universidade de Louvain, Bélgica, autor de Imperialisme humanitaire (Bruxelas, Ed. Aden, 2005) e organizador, com Julie Franck, do Cahier de
'l´Herne' sobre Noam Chomsky.
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sábado, 24 de janeiro de 2015
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