Seleção Brasileira, uma
vítima da nossa guerra fria tardia
Sergio Saraiva, em seu blog
Caía a tarde feito um viaduto.
Lembrei-me desse verso de Aldir Blanc olhando para o estado de ânimo da nossa seleção na derrota para a Alemanha. A imagem de uma estrutura que se colapsa sob um peso para o qual não estava preparada nem era de sua responsabilidade suportar.
Não está sendo fácil, mesmo para os mais experimentados comentaristas esportivos, explicar o “apagão” da seleção brasileira de futebol nesta Copa do Mundo do Brasil. E que o assunto seja, nos nossos jornais, tão comentado nas colunas de política quanto nas sobre futebol é sintomático da dificuldade que nossos cronistas esportivos terão para fazer um diagnóstico, se é que um dia o farão.
Falam dos jogadores, falam do esquema tático escolhido pela nossa comissão técnica. Não, isso explicaria as derrotas de 2006 e 2010, mas não a de 2014.
Em 2006, claramente tínhamos uma seleção motivada para tudo, desde que esse tudo não incluísse jogar futebol. Com jogadores bacantes acima dos 100 kg de massa corpórea e outros veteranos com interesses outros, que iam das cartas de vinhos finos ao automobilismo, nossa seleção foi a mais completa tradução do termo “blasé”.
Já em 2010, estávamos, sim, emparedados pelo esquema tático 4-4-2. Quatro zagueiros, quatro volantes e dois meias de contenção. Éramos a seleção da retranca carrancuda e furibunda.
Em uma pecamos pela falta na outra pelo excesso. Mas não hoje.
Nossos jogadores não são piores que os de nenhuma seleção, nem foram convocados deixando de fora grandes craques, como outras vezes aconteceu. Ainda que façamos restrições a um ou outro nome, dois vindos de longos períodos de pouca ou nenhuma atividade, quem é o grande jogador que ficou fora?
Quem é o grande craque que não temos? Robben e Van Persie? O que fizeram contra Costa Rica e Argentina? Messi? Desequilibrou mesmo os jogos? Que grande nome da seleção alemã era conhecido da torcida brasileira antes do início do mundial?
Paramos de gerar craques? Não, formamos e os desgastamos como perdulários, tal a nossa fartura. Estamos realmente carentes de Kaká, Ronaldo, Ronaldinho Gaucho e Robinho, entre outros? E se fossemos a Argentina? Basta recordar a “musiquinha”, ainda citam Maradona e Caniggia.
O que nos faltou foi o craque? É possível formar-se uma fantástica seleção com jogadores de países que não se classificaram. Mas mesmo assim, não temos somente Neymar e mais dez. Temos uma seleção na sua maioria formada por talentos valorizados e atuantes no futebol europeu.
Seria, então, o esquema tático superado?
Não, não vimos uma Holanda de 1974 onde posições se alternavam em campo como imagens se alternam em um caleidoscópio, levando os adversários a uma fatal confusão mental. Não vimos um Barcelona, a melhor síntese entre o futebol e o balé clássico.
O que vimos de Holanda e Alemanha, nossos dois carrascos? Equipes essencialmente defensivas que descem em contra-ataque pelas laterais e cruzam a bola para a entrada da grande área. Algo revolucionário? Não, o exemplo acabado do “jogo feio” que tanto abominamos. É com eles que devemos aprender?
Mas, então, por que nossos jogadores pareciam chutar de canela e estar perdidos em campo? Arrisco-me a dizer que isso é consequência e não causa. Arrisco-me a dizer que a causa está na resposta de por que desabaram em prantos. Tentavam se desvencilhar com as lágrimas do enorme peso que carregavam sobre as costas.
São jogadores de futebol, estão preparados para lidar com a pressão e a cobrança por resultados esportivos. Mas não estavam preparados para suportar a tremenda pressão política que foi colocada sobre eles. Não tinham o ferramental emocional necessário para lidar com tamanhas questões extra-campo.
Não lembro-me de nenhuma outra Copa onde a pressão política tenha influído tanto. Talvez 1978, mas não afirmo com certeza. As pressões extra-campo colocadas sobre nossos atletas estão mais para certas olimpíadas. Mais precisamente para as de Berlim de 1936 e para as de Moscou em 1976 e as de Los Angeles em 1984.
Três eventos mais políticos que esportivos. Na primeira tratava-se de provar a superioridade ariana, nas outras duas, tratava-se de provar a superioridade dos modelos comunista e capitalista, cada uma a seu tempo.
Nesta Copa do Mundo, o mesmo clima de tensão política, tratava-se de derrubar o governo. Não era uma Copa, era uma revolução. E assim tinha sido desde a Copa das Confederações, no ano anterior, disputada sob protestos violentos na porta dos estádios a ponto da FIFA cogitar um plano B. O mesmo era prometido para esta Copa.
Qual foi a campanha levada a efeito pela nossa grande mídia e por grupos de extrema direita e extrema esquerda? Do terrorismo da Veja, basta lembrar a capa dos estádios só prontos em 2038. A Folha de São Paulo criou o serviço “protestômetro” para facilitar a vida dos “protesteiros” e manteve a editoria “A Copa como ela é”, inicialmente, para divulgar, mais do que para noticiar, os tais “protestos contra a Copa”.
Era outra a intenção do candidato que entrou no STF com ação para liberar os protestos dentro dos estádios? Quantas vezes as palavras caos e vergonha foram associadas à Copa?
Nas vésperas da Copa comentei:
“Essa campanha de desconstrução já não pode ser encarada como parte da estratégia eleitoral do nosso maior partido de oposição – a grande mídia. Passou a ser um dado sociológico. Foi capaz de modificar a auto-imagem do brasileiro. O brasileiro passou de um povo alegre, hospitaleiro, festeiro e laissez faire para um povo capaz de ameaçar turistas estrangeiros como fossemos um terrorista do oriente médio. Carrancudo a ponto de não participar da própria festa pela qual esperou mais de meio século. Oportunista a ponto de agredir um símbolo como a seleção brasileira de futebol para chamar atenção para suas reivindicações salariais e intolerante e violento a ponto de linchar meninos carentes e senhoras emocionalmente desajustadas”.
Vivíamos uma era de absurdos.
Tudo era permitido sob o manto do #nãovaitercopa, de greves abusivas a linchamentos, passando por passeatas violentas, ocupações e até ataques de índios. Sem falar no ônibus da seleção cercado e apedrejado. Uma cena desse nefasto oportunismo ao qual estavam sendo levados os que tinham uma causa justa a defender, mas também os que defendem causas inconfessáveis.
E, em meio a tudo isso, a convocação e preparação de uma equipe para disputar um torneio de alto nível. Como isolar aquelas pessoas, protagonistas involuntários desses conflitos políticos?
Não houve como e a pressão e a apreensão se instalaram em seus corações e mentes. Era, nossa seleção, em última instância, a responsável por faltar escola para nossas crianças e nossos doentes morrerem no chão dos hospitais "deitados em cima de um paninho".
Por fim, a Copa começou e, do nada, nossa brasilidade falou mais alto. Tudo se inverteu, era a Copa das Copas, tudo funcionava como no primeiro mundo, dos aeroportos ao transporte público e à segurança. A festa estava nas ruas. Nossos jogadores passaram a ser os cavaleiros da República, não houve candidato que não envergasse a camiseta amarela em público. A boca que antes escarrava era a mesma que agora trazia beijos e juras de amor.
Ocorre que o amor que substituiu a agressão era um amor doentio, contaminado pelo sentimento de culpa. E esse tipo de amor cobra a submissão incondicional do objeto amado. E aí veio a obrigação de ganhar a Copa, a derrota não era a contra-face da vitória, era o opróbio nacional. E o Hino gritado a capela era um aviso muito claro da torcida, mas não exatamente do povo, para a seleção. E da seleção respondendo à torcida que a havia entendido e aceito o compromisso. Entendido e aceito, mas não suportado.
Esgotados emocionalmente por tal redemoinho de paixão política, o colapso, a derrota e o choro de alívio foram as consequências.
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