UPP no Rio: PM atua como “guarda da propriedade de escravos”
“Quando há uma violação policial grave, a população parte para a revolta”
Por Tatiana Merlino e Caio Castor, do Rio de Janeiro, especial para o Viomundo
“No início das UPPs, havia uma expectativa grande por parte da população. Mesmo com a desconfiança em relação à polícia, havia expectativa, achavam que seria uma experiência diferente dentro das comunidades”.
Porém, explica ele, com as repetidas ações violentas cometidas pelas forças policiais instaladas nas favelas, as esperanças foram diminuindo, “e cada comunidade onde se instala uma UPP já tem a experiência das outras”.
Essa tomada de consciência tem resultado na impaciência da comunidade, que segundo Campos, não espera mais melhorias por parte da ação da polícia. “Então, quando existe uma violação grave, ela parte para a revolta aberta. E está muito certa. A única maneira de começar a varrer essa situação é através do levante, da revolta”.
Viomundo — Como você tem visto as mortes ocorridas nas comunidades onde há UPPs?
A situação geral não é novidade. O que tem sido novidade, de um tempo para cá, é a reação da comunidade, que tem sido cada vez mais veemente. A a novidade está na revolta, na reação da população.
Sobre a violência, ela é inerente à instituição policial e já era praticada quando não havia esse tipo de policiamento militar, quando não existia UPP.
Outro aspecto é que a violência é inerente à ocupação em si, que traz um elemento de tensão mais permanente entre polícia e comunidade. Com os policiais permanentemente na comunidade, as ocasiões para ocorrer atritos entre polícia e população são muito maiores.
A polícia começa a interferir no dia a dia da comunidade, em coisas míninas, em pessoas fazendo uma festa, em amigos sentados conversando. Qualquer coisa vira motivo para o policial abordar, de forma truculenta, agressiva, muitas vezes buscando, através da agressividade, ter algum tipo de ganho.
Quando as UPPs foram instaladas, não tínhamos ilusão que aquilo poderia dar certo. Alguns setores de direitos humanos achavam que era bom esperar para ver no que ia dar, mas, para nós, a situação estava dada.
Por mais que dissessem que seriam novos policiais, quem os formaria? Os próprios policiais da PM que já existiam, que tinham toda essa prática de violação, de desprezo pelo direito das pessoas das favelas, e de organização de grupos criminosos dentro da instituição policial. Eu não tinha esperança de que desse certo.
As primeiras denúncias de violações fomos nós, da Rede, que veiculamos. Havia muito medo nas pessoas de fazerem denúncias, mas rapidamente a situação começou a degringolar e a violência ficou cada vez mais explícita.
Mesmo na Rocinha vários casos graves já tinham acontecido, mas o caso Amarildo revelou um quadro que já existia.
Viomundo – Qual sua avaliação sobre o uso de Exército na segurança pública?
É algo que até algum tempo atrás era condenado dentro do próprio Exército. Numa entrevista publicada no jornal “Folha de S. Paulo”, no dia 22 de abril, o comandante da operação na Maré, Roberto Escoto, que atuou no Haiti, respondeu a essa mesma pergunta que você fez da seguinte forma: “as Forças Armadas estão preparadas pra esse tipo de operacão”.
Quer dizer, a doutrina do Exército se tornar polícia vem sendo cultivada e ganhando espaço nas Forças Armadas. Ele faz uma transposição do conflito armado internacional para o nacional, a partir do momento em que tropas vão atuar na situação interna do país.
O comandante também disse que nosso soldado não é apenas treinado para matar, que a missão não é eliminar o inimigo, é sempre prendê-lo. Isso não existe, a função do Exército não é essa, prender, é defender fronteiras. Se assume aqui que o Exército está se tornando mais uma polícia, o que significa um desvirtuamento total das funções constitucionais das Forças Armadas, embora não seja muito desvirtuamento da história das Forças Armadas.
Elas sempre tiveram um papel muito mais de combater o dito inimigo interno, que são os setores explorados, reprimidos que se rebelam contra a ordem, do que atuar na defesa do Estado contra ações externas.
Ao se solidificar essa concepção dentro das Forças Armadas, significa que elas vão passar a ter o mesmo tipo de procedimento da polícia e aparentemente aprenderam a fazer a mesma coisa que a polícia.
Estamos vendo o Exército assumir as mesmas práticas de uma polícia extremamente hostil à população, acostumada a torturar, a matar, forjar supostos confrontos para justificar homicídio. Isso é muito grave. É um agravamento da situação de militarização que estamos vendo.
Viomundo — O que acha desse modelo de Unidade de Polícia Pacificadora?
Por mais que haja boas intenções, essa instituição policial que existe no Brasil é irreformável. Surgiu com um objetivo hostil à maioria da população, como uma guarda de propriedade de escravos e continua sendo assim.
É uma força hostil aos mais pobres, se aprofundou na ditadura nesse caráter e desde então não sofreu nenhum tipo de limpeza ou investigação para tirar os elementos criminosos que vêm, ao longo desses anos, matando e torturando. Nunca houve esforço do próprio Estado para expurgar esses elementos. Nem vou entrar na teoria de que a existência da polícia em si já é uma contradição.
Mas, mesmo do ponto de vista de uma instituição policial que deveria funcionar segundo a teoria do Direito burguês, como funciona em alguns países da Europa, a polícia do Brasil não tem condições.
O segundo elemento é que a abordagem militar do problema da segurança é completamente falida, está demonstrada a nível internacional que é falida. A própria ONU reconhece que a guerra às drogas, inaugurada nos Estados Unidos nos anos 70 do século passado é um fracasso.
Tratar o problema das drogas como um problema militar, como um problema que tem de ser enfrentado pela força, pela criminalização, é algo que fracassou.
Só tem multiplicado grupos criminosos, inclusive dentro do Estado, que se beneficiam da ilegalidade das drogas, que passa a ser um negócio muito lucrativo, que tem gerado um comércio muito pior, o das armas de infantaria de fuzil, metralhadora, granada, que normalmente não circulariam no meio urbano, civil.
Está demonstrado que o caminho militar é um fracasso. E a UPP é mais um passo no caminho militar, na ocupação militar, no enfrentamento militar. Mas dizem que agora é diferente: “vamos substituir o confronto para uma ocupação permanente”.
Mas continua sendo a lógica da força das armas. E qual era a teoria por trás disso? Uma presença permanente e ostensiva militar, seja da polícia ou do Exercito, na favelas que seria tão grande que levaria o tráfico a recuar completamente, a não mais exibir armas ou buscar defender seu território de forma armada. Mas isso não está acontecendo.
A gente vê que em comunidades ditas pacificadas tem havido confronto. Vê também a volta das armas por parte de traficantes, inclusive porque dentro das próprias UPPs aquele tipo de relação entre polícia e tráfico já se restabeleceu. A relação do arrego, em que uma parte do lucro das drogas acaba com a polícia. E como é que nessa economia é dividido esse lucro? Na base da demonstração de força.
Viomundo — E no caso da Maré, como está vendo a ocupação militar lá?
A cada experiência de ocupação, o tempo que passa para os problemas acontecerem tem sido menor. No Alemão, depois da ocupação do Exército, demorou um pouco para ocorrerem violações graves.
Na Maré, aconteceu muito rápido. Em uma semana de ocupação militar já houve conflito com mortes, já tem havido denúncia de violação, tem havido a volta da atuação do traficante de forma armada mesmo com aquela quantidade de tropas.
No início das UPPs, havia uma expectativa grande por parte da população. Mesmo com a desconfiança em relação à polícia, havia expectativa, achavam que seria uma experiência diferente dentro das comunidades. Nós, que trabalhamos com visão crítica, encontramos dificuldades para falar nas comunidades sobre possíveis violações que pudessem ocorrer nas UPPs.
As expectativas positivas foram diminuindo e cada comunidade onde se instala uma UPP já tem a experiência das outras e as condições para haver uma boa relação inicial entre forças ocupantes e moradores é cada vez menor. E cada vez essa situação fica mais frágil.
As próprias forças policiais parecem já ter abandonado a vontade de fazer qualquer tipo de encenação de que estão ali com outro tipo de policiamento. Estão assumindo cada vez mais o tipo de atuação que a polícia sempre teve: desrespeitosa, com abordagens agressivas e violentas.
Viomundo — Tivemos dificuldade de conversar com moradores da Maré, pois eles estavam com medo de dar entrevistas. A que isso pode ser atribuído?
Se você for hoje no Cantagalo, vai encontrar muita gente querendo falar, denunciar abusos policiais, violações, porque já passaram pela experiência, a situação já se definiu, chegaram à conclusão que a situação não mudou e sabem o que tem de ser feito.
Na Maré, existe uma indefinição grande porque a ocupação é recente. Uma amiga me disse que assim que o Exército entrou a Maré virou terra de ninguém. O equilíbrio que existia lá entre as facções de tráfico foi rompido.
As facções que não se atacavam há muito tempo começaram a se atacar, porque, sentiram, primeiro, que polícia não estava disposta a evitar esses confrontos, se mantendo à parte e deixando que o confronto acontecesse.
Na primeira ocupação, ocorrida antes de o Exército entrar, a polícia ficou somente na periferia da Maré, não ficou lá dentro fazendo patrulhamento de saturação, como dizem que o Exército está fazendo agora.
Então se criou uma situação de terra de ninguém e a possibilidade de confronto entre traficantes aumentou. Foi uma semana de pavor. Não se sabia de onde poderia surgir o problema.E com a entrada do Exército, voltou a ter indefinição.
Como está muito indefinido, as pessoas ficam recuadas, com medo tanto das forças ocupantes quanto do tráfico. A suposta situação de tranquilidade que a ocupação estabeleceria não tem ocorrido. Pelo contrário, as pessoas ficam com muito medo, muito recuadas.
Viomundo — Que tipo de relatos de abuso que ocorrem?
Abordagens repetidas: a casa de uma pessoa é revistada mais de uma vez, o que não tem sentido. Na primeira vez, o morador até deixa entrar. No dia da ocupação nós acompanhamos algumas operações.
Talvez por conta da nossa presença, eles tenham pedido para entrar nas casas. Os policiais estavam com uma lista de domicílios para revistar. Aparentemente, quando não tem ninguém fiscalizando, a situação não é assim.
Há relatos de arrombamentos de domicílios, de inúmeras entradas numa mesma casa, o que passa a ser uma coisa agressiva. Há, também, arrombamentos de carro, coisa que não ocorria antes da ocupação. Há abordagens aleatórias e repetidas sobre os jovens. Se estão circulando, são abordados. Os casos mais graves são os que envolveram mortes.
No próprio dia da ocupação houve uma morte que foi esse acidente no final do dia, e aparentemente dois grupos de jovens consumidores de drogas de comunidades diferentes se encontraram e se hostilizaram. No meio disso, houve uma morte, um rapaz que foi assassinado, aparentemente não por policiais, mas por outra situação. Mas a intervenção policial, brutal, só piorou a situação.
Também levaram um monte de criancinhas para a delegacia. Tem vídeos de crianças muito pequenas sendo conduzidas para um caminhão, de mãos dadas. A polícia cercando e os parentes desesperados. Foram todos levados para a delegacia e só foram soltos por conta da atuação de advogados voluntários e da OAB.
Viomundo — O que você vê de perspectiva para a situação da Maré?
Acho que a situação vai piorar. A violência não é permanente. Há períodos de calmaria, como existia antes, sem UPP. São os períodos de acordos entre a polícia e o tráfico, quando há divisão de lucros, quando não há muito problema. E continuam havendo violações, mas de menor agressividade. Isso pode vir a acontecer, mas na Maré pode ter ou não período de calmaria.
Porém, a médio prazo e no conjunto da situação, a perspectiva é piorar cada vez mais. A compreensão disso é que tem levado a população a se tornar cada vez mais impaciente. Ela não espera mais melhorias por parte da ação da polícia, então, quando existe uma violacão grave, ela parte para a revolta aberta. E está muito certa.
A única maneira de começar a varrer essa situação é através do levante, da revolta. Espero que cada vez mais organizada. Mas mesmo que não seja organizada, faz parte da maneira de as pessoas gritarem que não aguentam mais verem seus direitos serem desrespeitados.
Viomundo — A vida nas comunidades melhorou ou piorou com a chegada das UPPs?
Não sei dizer se melhorou ou piorou. Diria que, num geral, não houve modificação substancial. O que houve, e na minha opinião talvez seja positivo, é que o confronto entre população e Estado se torna mais direto. Os limites do Estado ficaram mais claros.
O Estado, com a estrutura e orientação que tem, é incapaz de responder aos interesses da maioria. Isso tem ficado mais claro para a população.
Essa situação, que num primeiro momento leva à desilusão, pode ser o início de uma movimentação social importante no caso das comunidades.
Nesse aspecto, a UPP pode ter significado algo positivo, não pelas políticas em si, não pelos objetivos que tem se programado, mas por ter deixado clara uma realidade que até então estava meio encoberta.
A questão era sempre que o Estado não estava presente e que por isso o traficante dominava. Como vão dizer isso agora? Com qual desculpa? Existe tráfico e ação do tráfico.
Existe apesar da presença dos militares, apesar da presença do Estado. Assim, fica claro que o problema do tráfico surgiu de dentro do Estado e não de fora, como as versões oficiais tendem a colocar.
Viomundo — O que você defende para reformar a instituição? Você defende a desmilitarização da PM?
A instituição PM tem que acabar, não tem mais jeito. Ela surgiu de maneira errada, piorou e está numa situação que não permite reforma.
As poucas vozes que se levantam para pedir reforma dentro da PM são logo marginalizadas e não têm condições de travar uma luta, uma mudança interna. Inclusive, a própria condição da Polícia Militar de tratar segurança sob um aspecto militar está errada em si mesmo. Não é assim que se trata.
O primeiro passo é acabar com a PM. Depois se discutir o que é uma organização da sociedade para gerir sua segurança.
O abandono do enfoque militar da questão de segurança é o que vai permitir que surja a discussão de outra forma de organização coletiva da segurança que não passe por uma polícia totalmente separada da população, especializada, do jeito que existe hoje, e traz no seu germe a tendência de se tornar uma corporação hostil à sociedade, nesse descontrole tão grande.
Mas o primeiro passo é abandonar uma visão militarizada da segurança, de que através do aprofundamento do aspecto punitivo criminal, das leis, se vai resolver o problema. Isso não tem dado certo em lugar nenhum. Isso envolve muita luta social, porque o interesse em militarizar a questão da segurança não é simples. Há muitos interesses por trás.
Viomundo — E como funciona a chegada do capital privado na sequência da instalação da UPP nas favelas?
Ele chega mais rápido que qualquer outra coisa. Acompanhei mais de uma instalação de UPP e é algo bizarro. Entra a polícia e junto vem as equipes da Sky, empresas de telefonia, exatamente no mesmo dia em que a polícia entra.
No próprio dia, nem a Companhia Municipal de Limpeza Urbana entra. As empresas que querem acabar com a dita informalidade e implantar um mercado com mais formalidade entram na hora.
Por aí dá para ver o peso que as coisas têm, de se usar a ocupação militar no sentido de aprofundar relações de mercado e formalizar as relações dentro da favela. Isso é muito maior do que se diz abertamente, que o objetivo seria levar serviços públicos pra dentro da comunidade. O que foi feito de serviço público em qualquer comunidade ocupada foi muito pouco.
O que mais tem avançado dentro das favelas não é a melhoria na educação e na saúde. São as relações de mercado cada vez mais duras, o encarecimento de aluguéis.
Isso tem gerado situações de crise habitacional no Rio de Janeiro que pareciam superadas. A própria ocupação do terreno da Oi foi sintoma disso. Grande parte dos ocupantes era de moradores de favelas que não conseguiam mais arcar com o preço dos aluguéis.
Nenhum comentário:
Postar um comentário