Teve Copa. E teve relincho no Itaquerão
Ao ser xingada, Dilma não se tornou alvo da insatisfação, legítima ou não. Tornou-se alvo de quem perdeu a vergonha de fazer em público o que faz todo dia no sofá: relinchar
Matheus Pichonelli
O brasileiro médio saiu do armário. Na abertura do maior evento da história do País, teve a chance de mostrar em rede mundial sua maior 'virtude' e não decepcionou: sabendo que seria visto e ouvido, fez exatamente o que faz em seu sofá diante da tevê e sem o menor pudor: RELINCHOU. E relinchou alto, como quem enfia o sorvete na testa.
Não, não me refiro às vaias contra a presidenta Dilma Rousseff. Me refiro aos xingamentos intercalados entre gritos de 'brasileiros com muito orgulho e muito amor'. Confortáveis nas cadeiras padrão-Fifa, bem vestidos e bem almoçados, os representantes da brasilidade 'média' não hesitaram em mandar em coro um “Ei, Dilma, vai tomar no cu”. O alvo do azedume, vale lembrar, era simplesmente a maior autoridade do País. E a autoridade, quando dá a cara ao tapa, como fez, não está imune a críticas ou vaias, merecidas ou não. Mas, ao ser xingada, Dilma não se tornou apenas alvo de uma 'insatisfação'. Tornou-se alvo da ignorância, do desrespeito e da arrogância.
Ignorância porque, se você perguntar aos probos embandeirados os motivos da bronca, duvido que soubessem responder além das quatro linhas do campo: “roubalheira”, “corrupção”, “vai para Cuba”, “metrô”, “legado”, “tem que sentar o cacete”, “impostos”. É a reação do cidadão Teletubbie, já descrito neste espaço: o cidadão que associa signos e produz emoções a partir de cores, bandeiras e frases feitas, mas é incapaz de ligar os pontos e elaborar qualquer relação entre alhos e bugalhos. Por isso, quando estimulado por uma imagem no telão (o poder?), RELINCHA. Pudera: aprendeu em casa e nas escolas de ponta que xingar político era exercício de cidadania, ainda que reclame por acordar cedo no domingo para votar a cada dois anos.
Mas autômato não vê fato nem vê argumento: apenas xinga quando sensibilizado, principalmente quando se sente confortável ao lado de tantos autômatos. (Não deixa de ser curioso: no tete-a-tete e em reuniões do condomínio, o rebelde de arquibancada chama bandido de doutor). O lapso entre os pontos chega ao absurdo de associar a crise do metrô à esfera federal, e não a uma quadrilha que transformou, nos últimos 20 anos, o sistema de transporte público de São Paulo em pula-pula de quermesse, com direito a cartel, propina, chefe de tribunal de contas enchendo as burras e secretário de primeiro escalão fingindo que o assunto não é com ele.
A arrogância escancarada é filha da ignorância: a ignorância de quem vive em um país imaginário cujas mazelas são exteriores a ele, seu corpo e seus amigos e familiares. De corpo imune em corpo imune, criamos um país sentado no sofá (ou na arquibancada) à espera de milagres de tudo o que vem de fora. Por isso malha o professor, o porteiro, o policial e o político que ele despreza.
São os eternos rebeldes contentes. Os descontentes, fora do estádio, não deixaram por menos: quem propunha o boicote ao Mundial escancarava, sem querer, tudo o que sabia sobre a população mais surrada do País (nada) ao impor o que era bom para a tosse: desligar a tevê ou torcer para a Croácia. É uma atitude sintomática: o detentor da luz e da consciência vai até à comunidade dizer o que o morador de lá deve fazer para não ser um autômato. “Se o Brasil ganha, ganha a propaganda nacionalista. Mas eu acho que o Brasil vai ganhar porque a Copa está comprada. A reeleição da Dilma está no pé do Neymar”, disse à Folha de S.Paulo, durante o jogo, uma atriz de 26 anos que teve a bondade de sair de casa para catequizar os nativos.
Curiosa essa forma de conscientização: é mais ou menos como fazíamos no computador ao guiar os lemmings, aqueles bichinhos que não sabiam o que queriam nem para onde iam e dependiam da mão destra do jogador para não cair em abismos nem bater a cabeça na parede. Não, minha cara. A alienação que você jura combater não é resultado de propaganda nem do futebol. E, sim, é possível ser consciente e se rebelar com o que deve ser questionado antes, durante e depois de 90 minutos de jogo. Para quem levanta cedo no dia seguinte às partidas, a vida segue, talvez com mais cor, talvez com menos disposição. Mas segue. Seria melhor se seguisse sem levar nas costas as botas de uma velha pedagogia: a pedagogia do subestimado, a mesma que espalha relincho quando confunde indignação com arrogância. O autômato, pode acreditar, está do lado oposto do seu espelho.
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