Obama ousará atacar a Síria?
Isolado dentro e fora de seu país, presidente dos Estados Unidos apega-se à proposta russa de submeter as armas químicas sírias ao controle internacional para se livrar da crise que ele mesmo provocou.
Baby Siqueira Abrão BRASIL DE FATO
Numa jogada de mestre, a diplomacia russa ofereceu aos Estados Unidos a saída de uma empreitada perigosa ao propor que as armas químicas da Síria fiquem sob controle da comunidade internacional até que sejam destruídas. Em troca, Barack Obama desiste do plano de atacar militarmente o país árabe.
Ban Ki-moon, secretário-geral da ONU, não perdeu tempo para dar o fato como consumado: afirmou que encaminhará rapidamente ao Conselho de Segurança da organização uma proposta no sentido de que essas armas sejam armazenadas e eliminadas com segurança no interior da Síria, sob supervisão de países-membros ainda não definidos.
John Kerry, secretário de Estado dos EUA, topou o acordo na hora, embora logo depois Washington tenha afirmado que ele tomou uma decisão "retórica" e que a Casa Branca ainda avalia a proposta. Mais tarde, porém, Obama declarou à rede de televisão CNN que a proposta russa é “potencialmente positiva” e será levada a sério. Num tom muito diferente da agressividade mostrada semanas atrás, quando acusou o governo Assad de ser o responsável pelo suposto ataque com gás sarin perto de Damasco, ele agora afirma preferir “esgotar esforços diplomáticos” para lidar com a questão das armas químicas da Síria a realizar uma intervenção militar. E capitalizou a sugestão russa, dizendo que ela só foi possível porque os Estados Unidos pressionaram a Síria com a ameaça de um ataque aéreo.
Na verdade, a proposta russa ofereceu aos Estados Unidos uma saída honrosa, diplomática, para a sinuca de bico em que Obama havia se colocado ao estabelecer o uso de armas químicas como "linha vermelha" para um ataque militar à Síria. Isso deixou Obama completamente isolado dentro e fora de seu país. Na Europa, apenas o presidente francês François Hollande concordou com a decisão. No Oriente Médio, houve o apoio previsível da Arábia Saudita e de Israel, cujo lobby guiou Obama para a declaração de guerra – lembremos que os sionistas controlam o governo dos EUA, tanto nas questões de política externa como interna. Além disso, 70% da população de Israel apoia a guerra contra a Síria, desde que seus soldados não precisem participar dela.
O gás sarin: uma tragédia anunciada
A considerar os fatos levantados por Ibrahim al-Amin, editor-chefe do jornal libanês Al-Akhbar (http://english.al-akhbar.com/content/full-story-why-obama-backed-down-syria), foi encenada na Síria uma farsa que incluiu a “operação conjunta entre sauditas e israelenses”, cujo resultado foi o “massacre químico” em Ghouta, nos arredores de Damasco, a capital do país. O início de tudo, diz Amin, se deu quando “estadunidenses e europeus começaram a negociar com russos e iranianos uma saída política [para a Síria], depois do fracasso em remover o governo pela força. A única condição do Ocidente era que Assad não fosse parte da solução”.
Como a Síria não aceitou essa condição – até porque vinha retomando posições em mãos dos oposicionistas e ganhando a guerra –, os países ocidentais decidiram pôr em prática um “plano B”, que consistia em aumentar o apoio militar à oposição e reorganizar os grupos armados que lutam contra o governo Assad. O objetivo, segundo Amin, era lançar grandes ofensivas no norte e no sul do país, além de obrigar os soldados do Hezbollah a “voltar para casa” e de oferecer aos soldados do exército sírio “incentivos mais atraentes” – em outras palavras, mais dinheiro – para que desertassem.
Só que o governo sírio vinha retomando áreas cada vez mais extensas. E derrotou rapidamente a oposição no norte do país, quando os mercenários tentaram entrar em Latakia. Nesse momento os países ocidentais perceberam que só um ataque militar de peso, vindo de Washington, deteria Assad. Mas precisavam de uma justificativa forte para levar os Estados Unidos a intervir militarmente na Síria. Essa justificativa foi o ataque químico em Ghouta, preparado, de acordo com Amin, pelos serviços de inteligência israelenses e sauditas. Faz sentido: declarações dadas por oposicionistas de Ghouta ao repórter jordaniano Yahya Ababneh e publicadas pela jornalista Dale Gavlak, da AP, no portal Mint Press (http://www.mintpressnews.com/witnesses-of-gas-attack-say-saudis-supplied...) — e solenemente ignoradas pela mídia corporativa ocidental – responsabilizaram a Arábia Saudita pela entrega das armas químicas aos extremistas, sem explicações adequadas sobre como usá-las – o que provocou baixas entre os opositores.
“Menos de uma hora depois do ataque”, escreve Amin, “a campanha orquestrada pela mídia para culpar Assad já estava em pleno andamento, seguida por condenações e ameaças dos governos ocidentais”. Washington então enviou emissários à Rússia e ao Irã, para “dar aos dois países a oportunidade de abandonar Assad antes que os mísseis [dos EUA] atingissem a Síria”. Mas nem Rússia, nem Irã, nem Síria cederam. A Síria prometeu lutar contra a provável invasão dos EUA, e foi respaldada por seus aliados.
Os estadunidenses responderam a isso enviando mais navios de guerra para o Mediterrâneo e aumentando o número de aviões em suas bases ao redor da Síria. Nem isso demoveu Rússia e Irã. Ambos até alertaram Washington de que o propalado “ataque limitado” poderia se transformar numa guerra bem mais ampla e prolongada, com consequências imprevisíveis. Bem prática, a China fez as contas e demonstrou que a economia mundial, em particular a dos Estados Unidos, afundaria com o ataque, e que o preço do barril do óleo subiria no mínimo dez dólares. Rússia, Irã, Síria e o Hezbollah puseram suas tropas em alerta máximo, preparando-as para o confronto militar. A China condenou veementemente a ameaça estadunidense e enviou um navio de guerra para o Mediterrâneo pouco depois de a Rússia fazer o mesmo.
O cenário de guerra estava armado.
O mundo contra o império
Washington, porém, não contava com a deserção de antigos aliados. Primeiro foi o Reino Unido, cuja população forçou o Parlamento a opor-se à intervenção militar à Síria, tirando da jogada o primeiro-ministro David Cameron. O papa Francisco apelou para uma solução negociada e propôs um dia mundial de jejum e orações. Ativistas de todo o mundo foram às ruas, em 31 de agosto, para protestar contra os Estados Unidos. Áustria e Suíça avisaram que não apoiariam o ataque. Nas redes sociais, a mobilização contra os Estados Unidos ainda é intensa. E neste final de semana a Alemanha anunciou que está fora dos planos de intervenção militar.
Isolado, Barack Obama tentou, durante a reunião do G20, conquistar aliados para a intervenção militar na Síria. O máximo que conseguiu foi a condenação ao uso do gás sarin e a promessa de ação contra os responsáveis – desde que se saiba quem são eles. A verdade é que ninguém acreditou na versão estadunidense dos fatos. Os Estados Unidos perderam credibilidade diante da comunidade internacional depois da farsa do ataque ao World Trade Center e da denúncia falsa de armas de destruição em massa no Iraque. Colin Powell chegou ao cúmulo de fazer essa denúncia oficialmente, na ONU, num desrespeito total aos países-membros.
John Kerry recentemente fez o mesmo, anunciando "provas" da responsabilidade do governo sírio no ataque com gás sarin, mas recusando-se a mostrá-las. Foi desmascarado por seu colega russo, que exigiu as provas e obteve apenas “informações sem datas, sem indicação de locais, inaceitáveis”. Exatamente como fez Collin Powell nas acusações ao Iraque, como Koffi Annan relata em seu livro “Intervenções”, lançado recentemente pela Companhia das Letras.
Mais: a França, que até então se mantinha ao lado dos Estados Unidos, anunciou, durante o G20, que aguardaria as conclusões dos trabalhos da Comissão de Investigação das Nações Unidas sobre o uso de gás sarin em Ghouta antes de participar de alguma ação militar contra a Síria. Sabe-se que a comissão tem provas de que o ataque com o gás proibido foi executado pelos oposicionistas. Na primeira investigação, cerca de dois meses atrás, Carla del Ponte, membro da comissão, adiantou que os oposicionistas tinham armas químicas e que as haviam utilizado. A ONU desautorizou e declaração de Carla, que, entretanto, não fez nenhum desmentido. Agora ela também chegou a dizer que tudo levava a crer que o governo Assad não era o responsável pelo ataque de 21 de agosto. A comissão ainda estuda as evidências coletadas em campo e obtidas de outras fontes, como as fotos de satélite obtidas pela Rússia e documentos militares do governo Assad.
Tudo isso deixou Obama muito nervoso no G20. Ele até perdeu a compostura e ofendeu Vladimir Putin, presidente russo, numa explosão de raiva inexplicável para o presidente da única grande potência militar do planeta. Putin permaneceu calmo e em silêncio, o que irritou Obama ainda mais. Ele se levantou, irado, e saiu, deixando péssima impressão. Na prática, conseguiu unir o mundo contra os Estados Unidos. Mais do que isso, conseguiu reunir a sociedade civil e grande parte dos governos do planeta em torno da solidariedade total ao povo sírio. Um tiro no pé, enfim.
Pentágono: a Casa Branca não entende nada de guerra
Dentro de casa a situação de Obama não é melhor. Uma pesquisa mostrou que a maioria do povo estadunidense está contra mais uma guerra, e diversas manifestações em todo o país, nos últimos dias, deixaram muito clara essa oposição. Os veteranos, individualmente e em suas associações, opuseram-se com veemência ao ataque, e no Pentágono quase todos os oficiais – dos mais graduados aos que ocupam cargos burocráticos – criticaram a decisão de Obama.
O general da reserva Robert H. Scales, ex-comandante da U.S. Army College, revelou, em artigo a The Washington Post (http://www.washingtonpost.com/opinions/us-military-planners-dont-support...), depois de ouvir um sem-número de oficiais e funcionários do Pentágono: "Eles se envergonham por estar sendo associados ao amadorismo das tentativas do governo Obama de executar um plano que faça algum sentido. Ninguém, na Casa Branca, tem experiência em guerra ou entende o que ela é. No mínimo, esse caminho para a guerra viola todos os princípios de uma guerra, incluindo o elemento surpresa, o apoio das massas e o estabelecimento de um objetivo claramente definido".
Acuado, Obama decidiu obedecer à Constituição de seu país e consultar o Congresso sobre a intervenção militar. Sob intensa pressão dos lobbies sionistas – que querem anexar o Golã e dividir a Síria em duas regiões distintas, plano muito antigo e pensado para todo o Oriente Médio, dentro da máxima “dividir para dominar” –, a tendência [e dar carta branca ao presidente. Mas os parlamentares, de folga até 9 de setembro, só analisariam o assunto na volta ao batente. Apesar da pressão sionista, muitos já revelavam seu voto contrário à guerra, em consequência de outra pressão pesada: a dos eleitores, que encheram as caixas postais eletrônicas de seus representantes com mensagens a favor de uma solução negociada, além de telefonemas, cartas e petições com o mesmo objetivo. Com a proposta russa, a apreciação da matéria pela Câmara, que aconteceria amanhã, dia 11, foi adiada. Nenhuma data foi marcada até agora.
No domingo, dia 8, a verdade começou a vir à tona. A estratégia visa preparar caminho para a mudança de planos em relação ao ataque à Síria. O chefe de gabinete da Casa Branca, Dennis McDonough, admitiu que o governo não tem “provas confiáveis”, nem “irrefutáveis”, de que Bashar Assad tenha ordenado o ataque com gás sarin. A conclusão de que o culpado é ele baseia-se apenas no “senso comum” e em vídeos da internet – preparados, segundo alguns, antes mesmo que o ataque tivesse sido feito, com cenas falsas.
A freira carmelita Agnes Maria da Cruz, madre superiora do monastério de Saint James, na Síria, não tem dúvidas. Ela estava em Damasco em 21 de agosto, data do ataque, e afirmou, em entrevista a Gideon Levy, do jornal israelense Haaretz(http://www.haaretz.com/news/features/.premium-1.544616#), que correu ao local e somente viu 50 soldados do exército sírio intoxicados. Eles foram internados, e alguns faleceram. Madre Agnes Maria informou que a população civil de Goutha já tinha abandonado a área e que, hoje, o local abriga 20 mil soldados jordanianos. “Onde arranjaram todos aqueles corpos de crianças? E por que as cenas mostravam médicos e pessoas circulando sem máscaras contra gases e sem nenhum outro tipo de proteção num local que supostamente sofrera um ataque químico?” Só há uma resposta a essas perguntas, segundo a irmã Agnes Maria: as cenas exibidas na internet não foram gravadas em Goutha. Ela denunciou ainda que os oposicionistas são, na verdade, estrangeiros (incluindo chechenos, “os mais cruéis”) e extremistas islâmicos a soldo dos sauditas, sob o comando da Al Qaeda – que, como se sabe, foi criada pela CIA para combater os soviéticos que haviam invadido o Afeganistão entre as décadas de 1970 e 1980.
Obama desafiará o AIPAC?
Enquanto o mundo procura uma saída diplomática, o AIPAC, American Israel Public Affairs Committee, considerado um dos mais poderosos lobbies sionistas nos Estados Unidos, mobiliza 250 voluntários para visitar os congressistas estadunidenses a fim de convencê-los a apoiar a guerra contra a Síria. Afinal, há muito em jogo: a anexação de Golã, onde se situa a nascente do rio Jordão (a água é estratégica para Israel) e uma grande reserva de gás, já negociada com parceiros internacionais; o gás da costa síria e de toda a região do Mediterrâneo, até a Grécia, e o controle da distribuição do petróleo do Oriente Médio para a Europa e para o mundo, por meio de um oleoduto que deve passar pelo território sírio.
Com métodos nada ortodoxos e nada novos – na verdade, usados desde a recomendação da partilha da Palestina, em 1947, como documentou Michael Cohen em Palestine and the Great Powers –, o AIPAC invariavelmente consegue o que deseja. Recente artigo de Jeff Klein no portal Counterpunch (http://www.counterpunch.org/2013/05/31/how-aipac-rules/) resume esses métodos: “O AIPAC representa o poder de uma máquina política bem financiada e voltada para um só objetivo. Eles são rápidos na punição de legisladores recalcitrantes – e na recompensa ao bom comportamento dos que seguem suas diretrizes, com dólares e apoio a campanhas, ofertados por seus muitos membros e ricos doadores”. Quanto aos congressistas, “pagam um preço pequeno ou nulo por bater bola com o AIPAC e arriscam uma oposição sem nenhuma compensação se não fizerem isso”.
A questão é: caso o Congresso, sob a pressão dos lobbies sionistas, dê sinal verde para a guerra com a Síria, Obama será capaz de desafiá-lo?
A conferir.
Seja como for, impossível deixar de destacar a vitória política da opinião pública internacional. Os Estados Unidos, seus neoconservadores, lobbies e sócios da indústria da guerra saem do episódio enfraquecidos, ao passo que o restante do mundo se fortalece ao conseguir barrar a ação militar da nação mais poderosa do planeta. A força bruta não foi capaz de vencer a força da opinião pública mundial. E essa é, sem dúvida, a lição mais valiosa de todo o affair à Síria.
(*) Baby Siqueira Abrão é correspondente do 'Brasil de Fato' sobre o Oriente Médio.
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