Joaquim Barbosa e o preconceito involuntário
Eduardo Guimarães BLOG DA CIDADANIA
Há muito quero escrever sobre isso, mas vinha adiando porque não quero posar de juiz da moral alheia – até porque, muitas vezes ninguém precisa fazer nada contra algo que está errado porque, de tão errado, atrai reações óbvias e previsíveis. E consequências.
Preocupa-me, porém, uma coisa: já escrevi sobre esse problema outras vezes. Em 25 de agosto do ano passado, escrevi a crônica “A ‘redenção’ de Joaquim Barbosa”, na qual previ o que sobreviria com alguém que sempre foi rejeitado pelas elites, mas que se tornara útil.
Eis o trecho final do post:
“(…) Joaquim Barbosa é um vencedor. Sua trajetória, antes empanada por acusações de cunho racial na mídia, não encontra mais óbices. A postura que adotou no julgamento do mensalão quebrou as resistências que a cor de sua pele sempre lhe gerou entre uma elite que agora o idolatra e defende, ao menos enquanto lhe for útil.”
No post, discorri sobre a linda trajetória de vida de Barbosa. Impressiona a tenacidade de alguém que teve uma origem tão desvantajosa – nasceu pobre e com cor da pele que, neste país, historicamente é alvejada pelo preconceito – e, assim mesmo, chegou a tão alto cargo da República.
Barbosa é culto, inteligente, superou barreiras inimagináveis e, graças a Lula, teve sua trajetória épica compensada. Acredito que, se não fosse Lula, não lhe reconheceriam os méritos.
Antes combatido pela mídia, com seu desempenho no julgamento do mensalão tornou-se um instrumento poderosíssimo de combate político, mesmo que não queira – e eu acho que, no mínimo, aceita ser instrumentalizado.
A mídia se aproveita, pois, de um fato doloroso sobre o nosso país. O preconceito é tão maior do que pensamos, por aqui, que todos somos ameaçados por ele – se não como seu alvo, de o usarmos sem que percebamos.
Quero, pois, oferecer a minha opinião sobre as críticas que Barbosa recebe – muitas das quais, compartilho.
A cor da pele dele jamais deve ser lembrada. Nem diretamente, nem por alusões. Mas não só.
É preciso verificar, ao criticá-lo por suas posições políticas e ideológicas e por sua personalidade, digamos, mercurial, se não se está incorrendo em uma crítica – e críticas podem ser feitas por representações literárias e imagéticas – que pode dar curso a interpretações racistas.
Há um sem-número de estereótipos que os opressores dos afrodescendentes usam há séculos – e até hoje. Alguns são mais perigosos do que parecem. Assim, nada, absolutamente nada que lembre a cor da pele de Barbosa deve ser usado em uma crítica a ele.
Muitos têm repreensões de cunho político e comportamental a fazer a vários ministros do STF – só para ficarmos no foco da questão. Por que não fazemos críticas a um Marco Aurélio Mello, a um Ricardo Lewandowski ou a um Luiz Fux – todos sempre muito criticados por seus adversários políticos ou ideológicos – que lembrem a cor de suas peles?
Não vou dar exemplo algum do que pode ser considerado racismo ao criticar Joaquim Barbosa. Só penso que, se fosse feito algo assim por um adversário de posições políticas, talvez eu não fosse tão generoso quanto seria com alguém que estivesse mais próximo de mim.
E não adianta quem diverge de mim, política ou ideologicamente – ou que, simplesmente, não vai com a minha cara –, acusar-me de hipócrita. Duvido de que se você tiver um amigo ou companheiro de luta envolvido em uma conduta que possa ser interpretada como racismo investirá contra ele com o mesmo ímpeto com que investiria se fosse um adversário.
Que ninguém que diverge ou que não gosta de mim ouse ser tão hipócrita. Mas, como não posso controlar a hipocrisia alheia, o jeito será ignorar, se alguém for tão cara-de-pau.
O que me resta dizer é que o preconceito se entranhou tanto entre os brasileiros que até os alvos de preconceito fogem de assumir a característica física ou comportamental que os distingue de forma injusta e dolorosa.
Quantos homossexuais deixam de assumir a própria homossexualidade por medo da reação preconceituosa da sociedade? Quantas pessoas mestiças não rejeitam que um documento de identidade as descreva como “pardas” e se autodeclaram “brancas”?
Se os próprios alvos do preconceito acabam colaborando para ele – de uma forma, é preciso dizer, absolutamente compreensível –, que dizer de quem nunca sofreu preconceito pela cor da pele, pela orientação sexual, pela crença religiosa etc.?
Alguém que não sabe o que é ser alvo de racismo talvez tenha dificuldade de entender como alguém que tem uma característica alvo de preconceito se sente quando tal característica é lembrada de forma pejorativa ou mesmo “de brincadeira”.
Nessa questão do racismo, a receita para não incorrer nele, voluntária ou involuntariamente, é nunca, jamais, em tempo algum criticar alguém de alguma mínima forma que lembre a cor de sua pele ou qualquer traço físico. Há que pensar muito ao criticar um alvo de preconceito.
O fato é um só: não importa o que alguém, amigo ou inimigo, tem por fora, na pele, nos traços físicos. Para criticá-lo, o que vale são as suas condutas, o que tem por dentro, na mente, na alma e no coração. É simples assim.
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