Sejamos sinceros, Israel não quer a
paz
José Antonio Lima
Quem
acompanha minimamente o noticiário internacional e já ouviu falar do conflito
entre Israel e os palestinos conhece a versão segundo a qual a culpa pela
violência é das duas partes. Esta explicação já foi verdadeira, como comprovam
os abusos cometidos de parte a parte ao longo do último século, mas a cada nova
crise ela se enfraquece. O passar do tempo tem tornado óbvia a responsabilidade
maior de Israel pela perpetuação da tragédia. A atual ofensiva, aberta em 8 de
julho com o início da operação Protective Edge (Borda Protetora), escancara a
intenção israelense de, custe o que custar, levantar barreiras à formação
do Estado palestino.
O Hamas,
alvo da atual operação militar israelense, tem suas mãos repletas de sangue. O
grupo realizou inúmeros ataques em Israel ao longo de sua história e,
recentemente, se notabilizou pelo lançamento indiscriminado de foguetes contra
alvos civis. Em seus documentos oficiais o Hamas se revela antissemita e prega
a destruição de Israel. Diante desses fatos, a simples existência desta facção
militante causa engulhos em muitos israelenses, mas o caminho para a paz passa,
necessariamente, pelo Hamas. Como afirmava Moshe Dayan, histórico líder
político e militar de Israel, a paz não se faz com amigos, mas com os inimigos.
Há pelo menos dois anos, analistas avaliam que o Hamas pode estar
moderando suas posições, ainda que por meio de canais informais, como declarações
públicas, e não por documentos oficiais. Entrevistas recentes de Khaled
Meshaal, o líder do Hamas, exilado no Catar, dão força a essa possibilidade. No
domingo 27, Meshaal foi o entrevistado do programa Face The Nation,
da rede de tevê norte-americana CBS. Ele negou o antissemitismo e se disse
pronto para coexistir com os judeus. Questionado repetidas vezes pelo
entrevistador sobre a possibilidade de reconhecer a existência de Israel,
afirmou: "Quando tivermos o Estado palestino, então o Estado palestino vai
decidir as suas políticas. O povo palestino poderá dar sua opinião quando tiver
seu próprio Estado, sem ocupação". Diante do histórico do Hamas é
compreensível a desconfiança sobre a sinceridade de seu líder, mas, existisse
hoje em Israel um governo disposto a lutar pela resolução do conflito, ele se
agarraria à frase com força, porque, ao cogitar a possibilidade do
reconhecimento de Israel, Meshaal provavelmente fez o maior aceno à paz por
parte do Hamas.
O
encerramento da questão palestina, no entanto, não é intenção do governo
israelense. Isso fica claro quando se percebe que as hostilidades atuais foram
provocadas deliberadamente por Israel.
Uma guerra provocada
Em abril deste ano, o Hamas e o Fatah, grupo secular que controla
a Cisjordânia, assim como a Organização para a Libertação da Palestina e a
Autoridade Palestina, entidades reconhecidas internacionalmente, chegaram a um
histórico acordo para formar um governo de coalizão. Os dois grupos estavam
divididos desde 2007, quando uma guerra civil palestina eclodiu após o Hamas
ganhar as eleições parlamentares de 2006 e ser proibido de assumir o governo
por Israel e pelas potências ocidentais. No acerto deste ano, o Hamas mostrou o
desespero provocado pelo isolamento em que se encontra. O grupo abriu mão
daquela vitória eleitoral e entregou a autoridade sobre os palestinos
integralmente nas mãos de Mahmoud Abbas, o chefe da OLP e da AP. Em troca, o
novo governo passaria a pagar os salários dos 43 mil funcionários da
administração criada pelo Hamas e Israel e o Egito aliviariam o bloqueio
terrestre, aéreo e naval responsável por transformar a Faixa de Gaza em um
gueto no qual cerca de 1,7 milhão de pessoas vivem em condições precárias. Como
afirmou Nathan Thrall, analista do International Crisis Group, no jornal The
New York Times, Israel dinamitou o acordo de coalizão ao não abrir as
fronteiras e impedir o pagamento dos salários. Antes, o governo de Benjamin
Netanyahu afirmou que jamais negociaria com o
Hamas, atacou a Faixa de Gaza e manteve a construção
de assentamentos na Cisjordânia.
Apesar
das ações de Israel, havia uma grande pressão dos Estados Unidos e da
União Europeia para que o governo israelense negociasse seriamente. Em
junho, veio a tábua de salvação para Netanyahu.
No dia 12
daquele mês, três adolescentes israelenses, Naftali Fraenkel, Gilad Shaer
e Eyal Yifrah, desapareceram em Gush Etzion, assentamento na
Cisjordânia. Logo após o sequestro havia indicações de que os três
tinham sido assassinatos. O carro usado no crime foi encontrado, com marcas
de sangue e buracos de balas. Mais importante, a polícia israelense tinha
a gravação de uma ligação feita por um dos garotos ao serviço de emergência,
no qual ficava claro que ele tinha sido baleado.
O governo
de Israel, no entanto, proibiu a divulgação do áudio por parte das autoridades
policiais e da imprensa. Ao mesmo tempo, iniciou uma campanha intitulada
"tragam nossos garotos de volta", apoiada por parte da imprensa,
que aderiu mesmo sabendo do conteúdo da gravação. Netanyahu também anunciou,
sem provas, que o sequestro teria sido realizado pelo Hamas. Na
"busca" pelos garotos, Israel cercou a cidade de Hebron, demoliu
residências, prendeu centenas de palestinos, dezenas
deles integrantes do Hamas, e matou cerca de dez pessoas.
O resultado do estratagema foi uma impressionante onda de xenofobia anti-árabe em
Israel, que culminou com o brutal assassinato
de Mohamed Abu Khdeir, adolescente de 17 anos queimado vivo por
extremistas israelenses. O plano do governo Netanyahu parece ter servido também
para, como cogitou o jornalista israelense Raviv Drucker, galvanizar o sentimento
anti-Hamas em Israel e gerar apoio à ofensiva contra o grupo militante na Faixa
de Gaza. Em retaliação aos atos de Israel na Cisjordânia, o Hamas voltou a
lançar foguetes contra alvos israelenses. Assim começou a operação Borda
Protetora. Hoje, o apoio a ela é tão firme que a revelação, feita pelo
chefe de polícia de Israel, Mickey Rosenfield, a Jon Donnison, da BBC, de que
o Hamas não foi responsável pelo sequestro, teve repercussão mínima em
Israel.
Israel não quer a paz
A operação atual é a terceira de Israel desde 2008 e segue um
comportamento batizado com o tétrico nome de "cortar a grama". De
tempos em tempos, Israel ataca a região, matando pessoas e destruindo a
infraestrutura do Hamas, de forma a aleijar temporariamente o grupo palestino.
Por trás das operações regulares está, como explica Zack Beauchamp em análise
no site norte-americano Vox, o entendimento de que Israel
não poderá destruir por completo o Hamas. Como a grama, a facção palestina vai
voltar a crescer até ser "aparada" novamente.
Há outros
dois motivos para Israel não realizar uma ação decisiva contra o Hamas. Em
primeiro lugar, o grupo é mais moderado que as outras várias facções
atuantes na Faixa de Gaza. Assim, manter o Hamas como principal adversário é
importante para não piorar a situação. Em segundo lugar, o Hamas, com seu
radicalismo, fornece os pretextos perfeitos para Israel não contribuir para o
avanço das negociações com os palestinos. Quando o grupo não gera essas
justificativas, o governo israelense as fabrica.
O "corte de grama" é parte central do objetivo do
governo de Netanyahu e da coalizão de direita e extrema-direita que ele lidera:
manter o impasse atual para sempre, sem anexar por completo
os territórios palestinos e, muito menos, sem contribuir para a criação de
um Estado palestino. A intenção é antiga e antecede a chegada de Netanyahu
ao poder. Como lembrou Mouin Rabbani em recente artigo no London
Review of Books, em 2004, um ano antes de o governo de Ariel Sharon
desocupar a Faixa de Gaza, Dov Weisglass, conselheiro do então premier, afirmou
ao jornal Haaretz que o intuito da saída da Faixa de
Gaza era "congelar o processo de paz". "Quando você congela esse
processo, você previne o estabelecimento de um Estado palestino, e previne a
discussão sobre os refugiados, as fronteiras e Jerusalém",
afirmou Weisglass. "Efetivamente, todo este pacote chamado Estado
palestino, com tudo o que ele implica, foi removido indefinidamente de nossa
agenda".
Até 2009,
Netanyahu era, assim como seu partido, o Likud, contra a chamada solução de
dois Estados – Israel e Palestina. Naquele ano, sob pressão de um Barack Obama
recém-empossado, Bibi fez um famoso discurso na Universidade Bar Ilan no
qual se disse favorável a um Estado palestino, desde que desmilitarizado.
No último 12 de julho, Netanyahu aparentemente reverteu sua posição, ao afirmar
em uma entrevista coletiva que jamais aceitará um Estado palestino
completamente soberano. As declarações parecem semelhantes, mas a segunda
carrega um peso significativo pois rechaça de antemão a demanda palestina
por um país próprio.
Há um
componente ideológico na recusa de Netanyahu a um Estado Palestino, mas a
questão estratégica é mais decisiva. Conceder soberania aos palestinos na
Cisjordânia seria abrir a possibilidade de a maior cidade israelense, Tel Aviv,
ficar a menos de 20 quilômetros de um exército adversário que teria, também,
capacidade para dividir o estreito Estado de Israel ao meio. Barrar a fundação
da Palestina é, aos olhos de Netanyahu, garantir a sobrevivência de Israel.
Se o objetivo implica em um sofrimento acintoso para os palestinos, isso
não diz respeito a Israel, acredita o premier.
Esta
forma de pensar é amplamente popular hoje em Israel. Após o fracasso do
processo de paz da década de 1990, que culminou com a segunda intifada (2000 a
2005) e uma série de atentados terroristas em cidades israelenses, a direita e
a extrema-direita se fortaleceram. Questionar a ocupação da Cisjordânia e a
violência empregada contra a Faixa de Gaza se tornaram causas praticamente perdidas,
para não dizer perigosas a seus defensores.
Apesar de ter conseguido convencer boa parte da população, o
expediente usado por Netanyahu é perigoso para Israel, pois o status quo não
poderá ser sustentado por muito tempo. George Friedman, da Stratfor, afirma que
é muito mais fácil vislumbrar episódios prejudiciais a Israel no futuro do
Oriente Médio do que favoráveis. Assim, um acordo arriscado com os palestinos,
mesmo inviável politicamente, seria prudente pensando no futuro. Netanyahu e
muitos outros líderes não raciocinam desta forma. Como afirmou o ex-líder do
Shin Bet Abraham Shalom no documentário The Gatekeepers, as forças
de segurança israelenses não têm estratégia, apenas tática.
Hoje, Israel possui acordos de paz com a Jordânia e o Egito. Se fizesse
o mesmo com os palestinos, poderia garantir sua segurança no longo prazo. A
opção por manter uma ocupação ilegal e draconiana, impondo um sofrimento
desumano a quatro gerações de palestinos, só faz fomentar o ódio em
suas fronteiras. Mais que isso, ao acumular atrocidades impressionantes
para "cortar a grama" na Faixa de Gaza e manter o status quo, Israel
se isola internacionalmente e coloca em risco sua própria legitimidade. A magistral força militar e a
habilidosa classe política parecem estar alimentando o sonho de uma segurança
eterna para Israel. Se os israelenses não entenderem a realidade, vão sair do
sonho diretamente para um pesadelo. Talvez mais rápido do que imaginam.