domingo, 5 de janeiro de 2014

Snowden e Dreyfus: o papel dos jornais


Alberto Dines                   
As libações – ou o relax – da véspera abafaram a repercussão entre nós do corajoso editorial do jornalThe New York Times de quinta-feira (2/1, ver aqui), no qual pede clemência ao governo Obama para Edward Snowden, o denunciador do gigantesco sistema de espionagem ilegal operado pela NSA. Em jogada ensaiada, o britânico The Guardian saiu no mesmo dia na mesma direção.
No momento em que profetas e lobistas garantem o fim dos jornais impressos e sua substituição por algo assemelhado às redes sociais, dois dos dez mais respeitados diários do mundo levantam-se para protestar contra uma flagrante injustiça e o cruel desterro imposto ao espião consciencioso e arrependido.
Sem recorrer à exaltação nem à indignação, mostraram que Snowden cometeu infrações enquanto prestador de serviços ao governo, porém ao mesmo tempo revelou a milhões de cidadãos americanos – o país inteiro – como suas comunicações pessoais são monitoradas, devassadas e suas privacidades profanadas.
Os dois times de editorialistas recusaram a retórica, o objetivo era apelar para o bom senso – anglo-saxões costumam ser ponderados. Poderiam ter lembrado que o absurdo “justiçamento” de Snowden ocorre 114 anos depois da publicação da mais curta e mais famosa manchete de todos os tempos – “J’Accuse”, Eu Acuso – tirada de um panfleto do romancista Émile Zola em que denuncia o complô do exército e governo franceses para incriminar como traidor o capitão Alfred Dreyfus. A histórica denúncia foi publicada no L’Aurore, de Paris, em 13 de janeiro de 1898; os editoriais em favor de Snowden saíram em 2 de janeiro.
Calor e frio
Quando descobriu a formidável intrusão na vida dos americanos, Snowden tomou a iniciativa de alertar dois de seus superiores. Nada fizeram. O direito à privacidade de milhões de americanos estava sendo flagrantemente violado, a única defesa seria apelar ao direito à informação: fazer a denúncia através da imprensa mundial. Recorreu ao Guardian e ao Washington Post, os ingleses levaram a melhor. A bomba repercutiu nos quatro cantos do globo – inclusive no Brasil – convertendo a NSA no inimigo público nº1.
Embora desapaixonado, o editorial do New York Times é arrasador. Acusa frontalmente a NSA de exceder deliberadamente todos os limites impostos pela legislação e violar os sistemas básicos de criptografia da internet. Acusa o diretor dos serviços de espionagem James Clapper de mentir ao Congresso. E confronta a histeria da legião de acusadores de Snowden que não conseguiram incriminá-lo como responsável pela suposta vulnerabilidade da vigilância antiterrorista: a maioria dos programas de vigilância delatados funcionariam com a mesma eficácia se tivessem sua abrangência reduzida e fossem submetidos a uma severa supervisão externa.
É possível que a esta altura os assessores do presidente Barack Obama já tenham começado a preparar as alternativas para interromper a cruzada difamatória contra Snowden e permitir sua volta para casa a fim enfrentar um tribunal justo e imparcial.
O ano de 2014 começou auspiciosamente para os jornais impressos liberais, responsáveis. A mesma garra que tirou Dreyfus do tórrido desterro na Ilha do Diabo está pronta para tirar Snowden do gelado e perverso exílio em Moscou.
Em tempo
O jornalismo dos feriados impediu que jornalões & jornalecos mencionassem este editorial do NYTimes – estava na edição online desde quarta-feira (1/1). Mesmo assim, na sexta (3/1), apenas o Estado de S.Paulo o reproduziu na íntegra (ver aqui). Honra ao mérito.
Pena que o tradutor(a) tenha adulterado o tom simpático a Snowden usando a expressão do título “whistle-blower” (literalmente “apitador”, ou figuradamente “denunciador”) para dedo-duro.
Snowden jamais dedurou alguém. O que fez com uma bravura incomparável foi denunciar um perverso sistema de deduragem institucional.

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