Metida a esperta, a elite é burra
Do AMGóes (*) - Lembro-me de que, nos anos 1960, época do pré-golpe, referíamo-nos à elite brasileira como
retrógrada e reacionária, afora outros cognomes pejorativos apropriados à
liberação de nossa jovem insatisfação e revolta com o cerco que seus esclerosados barões
promoveram para impedir as reformas postuladas pelo presidente João Goulart.
No processo de persuasão
popular que levou matronas da alta sociedade em passeata pelas alamedas
dos Jardins paulistanos, quando muito em seus carrões rabos-de-peixe pela
Avenida Paulista, a elite lambeu os beiços ao manipular a classe média-média (e
também a média-baixa), arrebanhando
milhões de adeptos a ‘sua’ causa nos mais remotos recantos do país.
De repente, os que pichamos muros em Palmeira dos Índios, na
madrugada de 12 para 13 de março de 1964, concitando a população a solidarizar-se
com o ‘novo tempo’ das ‘Reformas de Base’, encaminhadas ao Congresso pelo
governo federal, assistimos atônitos e sem rumo à ferocidade de outrora
cândidas senhoras e seus maridos boas-praças nas marchas ‘com Deus, pela
democracia’. Oportuno salientar que as proposituras reformistas eram apenas um
freio conjuntural de arrumação, nada ‘revolucionário’. Conquanto nacionalista,
o presidente Goulart integrava uma estrutura dita burguesa de latifúndio nos
Pampas, do Rio Grande ao Uruguai.
No agreste alagoano, funcionários do Banco do Brasil e servidores públicos de nossas relações, envolvidos
em apaixonados debates socioeconômicos, nos limites da percepção provinciana de
que dispúnhamos, face aos exíguos canais de comunicação eletrônica e veículos
impressos, experimentávamos verdadeiros orgasmos ideológicos quando nos
chegavam, embora com atraso, jornais de
linha editorial ‘progressista’, como ‘Correio da Manhã’(que mudou de lado na
hora ‘H’) e ‘Última Hora’, empastelado por apopléticos ‘rebeldes de primeiro de
abril’.
Jango, um pacifista, sem o perfil caudilhesco de eminentes
gaúchos da História, tanto remota quanto contemporânea, rejeitou qualquer ação emergencial de
resistência, por contrário ao
previsível sacrifício de compatriotas. A
decisão do presidente não teria sido pertinente para o cunhado e
correligionário, deputado federal do Rio
de Janeiro, Leonel Brizola, líder do governo deposto, que tencionava resistir.
Ex-governador do Rio Grande do Sul, Brizola garantira em 1961, pela ‘Cadeia da
Legalidade’, a posse de Goulart na presidência, após a tumultuada renúncia de
Jânio Quadros, impedindo tentativa golpista, depois consumada em 1964.
Entremeando cânticos
sacros, Hino Nacional e dobrados militares, transmitidos pelas rádios à exaustão, em apoio aos ‘salvadores da pátria’
que (falaciosamente) livraram o Brasil de uma ‘república comuno-sindicalista
financiada por Moscou, Pequim e Havana’, a elite não deu trégua aos supostos
subversivos, isto é, nós, do outro lado, que sonhávamos com os explorados joões-da-silva livres em nova ordem de
bem-estar social.
Afinal, defendíamos um governo eleito pelo voto popular,
pois, à luz da Constituição de 1945,o ‘vice’(caso de Goulart) fora escolhido
independentemente do titular que renunciou.
Todavia, o que adveio foi perseguição, cadeia e porrada
em nosso lombo, além de cova rasa para eventuais inconformados com o golpe e
dispostos ao confronto armado.
Livre da ‘ameaça de cubanização’(era esse o termo corrente,
que fazia piedosas filhas-de-maria se diluirem em frêmitos de incontinência
urinária, isto é, traduzindo para o ‘lulês’ dos pobres, empaparem de mijo suas
indefectíveis ‘roupas de baixo’, tal o pavor histérico provocado pelos
‘comunistas ateus e antropofágicos’, comedores de criancinhas indefesas, como reverberava a ‘direitona’, dos púlpitos eclesiais aos convescotes em suas
associações corporativas, de milicos ou paisanos.
Naquele tempo, sacerdotes pedófilos e/ou defloradores de
virgens(mais ou menos) convictas nas sacristias ou alcovas bentas de casas
paroquiais, nem pensar! Isto é, concretamente já existiam, todo mundo sabia. Mas,
se alguém ousasse denunciar, correria o risco da excomunhão, passaporte
compulsório outorgado ao ‘caluniador’ no rumo do fogo do inferno, que nem Dante
Alighieri ousaria descrever.
A elite se fartou sob os favores dos generais de plantão, tudo
em nome de uma civilização ocidental, cristã, verde-amarela e fiel ao ‘Big
Brother’ do hemisfério norte. A cor
púrpura passou a identificar os
perigosos ’comunas’, serviçais do ‘coisa ruim’. Concomitantemente, homéricas falcatruas eram
promovidas com o dinheiro público, maquiando-se operações bancárias autorizadas
através de bilhetes em papel de embrulho
pelos chefões, embora, na propaganda,
além da subversão, ‘eles’ estavam atentos a qualquer indício de
corrupção. “Pra frente, Brasil! Ame-e ou deixe-o!”
Pois meteram a mão na cumbuca e rasparam o fundo do tacho. Em
Alagoas, cujos governantes,
historicamente, sempre andaram de pires na mão,
o Produban, banco estadual de fomento à produção local(majoritariamente
açucareira), liberou centenas de milhões com hipotecas juridicamente
inexequíveis. Na prática, os ‘promitentes
devedores’(é este o título pomposo dos tomadores de empréstimos bancários)
ofereceram, como garantia do financiamento,
o mais profundo subsolo de sua propriedade rural. Como não há incidência
de jazidas petrolíferas no ‘pós’ ou
‘pré’-sal alagoano, deram uma ‘volta’
descomunal nas obrigações celebradas. O Produban foi à lona e, depois de anos
de luta inglória para viabilizá-lo(militei adoidado nesse esforço em vão), foi
solenemente ‘deletado’ pelo governo privatista de FHC.
Agora, retomada a autoestima brasileira, pelas políticas de
inclusão social do governo Lula, em que, ‘como nunca, na história deste país’,
os mais ricos ganharam tanto e os mais pobres subiram o elevador, na direção da
classe ‘C’, a elite joga pesado, na tentativa de desqualificar os
eleitores(principalmente do norte/nordeste) que elegeram Dilma Rousseff primeira mulher presidente da República.
Na realidade, a elite, ‘decrépita e reacionária’, como a
intitulávamos mais de meio século atrás, já se esfarela, a começar pela fragilidade de
seus bastiões político-partidários, haja vista o dilema tucano em assumir, sem mínima competência para tal, o papel de ‘oposição’ que lhe cabe, como
perdedor em três consecutivos processos eleitorais.
A deletéria elite brasileira, embora metida a esperta e conceitualmente
mal-intencionada, é burra para entender que não dispõe de exclusividade, como
pensa, sobre o bolo da riqueza do mundo.
Séculos afora, os fatos comprovam que o caminho indutor da interação pacífica
no planeta leva-nos, necessariamente, à perene repactuação dos contratos sociais.
Luís XVI, para quem o Estado(francês) era unicamente ele, acabou sem a cabeça coroada, por obra da
afiadíssima engenhoca do doutor Guilhotin.
(*) Originalmente publicado na 'Tribuna do Sertão'-Palmeira dos Índios(AL), em 14.11.2010.
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