Os 50 anos do Golpe e os desafios da Comissão Nacional da Verdade
Maurício Santoro (*) ÚLTIMO SEGUNDO
Há lacunas significativas que a comissão pode ajudar a preencher, como localizar os restos mortais dos guerrilheiros executados no Araguaia
Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) encerrará as atividades e publicará seu relatório final, em que listará com conclusões e recomendações para reformas em instituições e políticas públicas.
Isso acontecerá em meio ao 50º aniversário do golpe de 1964, data simbólica que pode ser um marco dos processos de verdade, memória e justiça no Brasil, funcionando como catalisadora para demandas e protestos. Nesse contexto, a comissão tem quatro desafios principais para responder satisfatoriamente as demandas longamente reprimidas dos brasileiros por conhecer seu passado - o início de seus trabalhos da CNV foi o catalisador de um intenso ciclo de formação de mais de setenta iniciativas semelhantes no âmbito de estados, municípios, universidades, sindicatos, seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil, entre outros.
O primeiro desafio da CNV é apresentar em seu relatório uma síntese abrangente dos casos-chave de violações de direitos humanos durante a ditadura. Comissões da Verdade sempre trabalham com prazos curtos e não é viável que realizem levantamentos exaustivos de todas ou mesmo da maioria das atrocidades, mas é crucial que lancem novas luzes para as histórias paradigmáticas, que definam o perfil da repressão política e ofereçam avanços para o esclarecimento de circunstâncias obscuras envolvendo torturas, mortes e desaparecimentos forçados.
No caso brasileiro, há lacunas significativas que a comissão pode ajudar a preencher, como localizar os restos mortais dos guerrilheiros executados no Araguaia, registrar a real dimensão da violência do regime autoritário contra os povos indígenas e identificar os responsáveis por crimes como os assassinatos do jornalista Vladimir Herzog e do ex-deputado Rubens Paiva. As atividades da CNV têm o potencial para mudar nossa compreensão da história recente do Brasil, como a exumação dos restos do ex-presidente João Goulart e Juscelino Kubitschek, para esclarecer as suspeitas de que tenham sido assassinados em operações coordenadas pelo governo militar.
Outro desafio para a CNV é superar a desconfiança de muitos sobreviventes e parentes de vítimas da ditadura, que por vezes a consideram como mero paliativo, criada como prêmio de consolação pela não-realização de processos judiciais contra torturadores. Temores reforçados pela incapacidade da Comissão em tomar posição contra a Lei de Anistia de 1979, apesar da sentença de 2010 da Corte Interamericana de Direitos Humanos que ordena o governo brasileiro a declará-la nula e inválida, a exemplo do que esse tribunal internacional decretou para outros países latino-americanos, como Peru e El Salvador.
Dentro do mesmo espírito, também é preciso nessa reta final melhorar a comunicação com as organizações da sociedade civil, divulgando com antecedência a agenda da CNV, incorporando críticas e sugestões dos movimentos sociais, informando em detalhes sobre suas atividades e abrindo um canal eficaz para receber contribuições e denúncias. Os trabalhos e resultados alcançados por Comissões estaduais da Verdade, como as do Rio de Janeiro e de São Paulo, são experiências importantes que podem servir de referência para a instituição nacional.
O que resta da ditadura
A terceira grande tarefa da CNV é garantir que seu relatório final contenha fortes recomendações para reforma das instituições públicas, de modo a assegurar que não se repitam as atrocidades documentadas em seu trabalho. Isso significa combater também as muitas permanências do regime autoritário no Estado brasileiro, em particular na atuação das forças de segurança – seus treinamentos, práticas e valores.
A persistência da tortura nas operações policiais e nas prisões é particularmente preocupante, bem como a manutenção do desaparecimento forçado de suspeitos, em plena democracia. O tema da desmilitarização da polícia, reforçado pelos protestos iniciados em junho deste ano, é outro exemplo da força dessa agenda na política contemporânea.
Um tema associado a essa demanda é a necessidade de reforma na educação sobre como lidar com o período ditatorial, construindo bons currículos escolares para abordar a época. É legítimo que escolas, instalações públicas, turmas de cadetes em academias militares, sejam batizadas com o nome de generais que comandaram o aparato repressivo?
Como quarto e último desafio, a CNV precisa impulsionar políticas para a memória: a construção de museus e monumentos – como o Memorial da Resistência, erguido em São Paulo nas antigas instalações do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops) e projetos para criar instalações semelhantes em ex-centros de tortura, como a Casa da Morte (Petrópolis, Rio de Janeiro), ou pendurar placas em locais que foram emblemáticos da repressão política, como ruas e praças nos quais houve desaparecimentos forçados e execuções extrajudiciais. A CNV também pode propor estabelecimento de dias específicos dedicados para a reflexão, a exemplo do que a Argentina faz com o 24 de março, aniversário de seu golpe de 1976.
A justiça de transição não se encerrará quando a CNV terminar suas atividades, mas um relatório final bem fundamentado poderá ajudar bastante nas etapas seguintes, como servir de base para futuros processos judiciais e funcionar como referência para movimentos sociais, organizações da sociedade civil ou simplesmente para pessoas interessadas em saber mais a respeito do longo, demasiado longo, caminho para a consolidação dos direitos humanos no Brasil.
(*) Mauricio Santoro é diretor da Anistia Internacional no Brasil.
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