História
A ditadura, insegura, tinha medo
do ex-presidente deposto em 1964
Os militares temiam a volta de Jango por causa de seus contatos no exílio, mostrou reportagem publicada em 2009
Gilberto Nascimento
Dick DeMarsico / Livraria do Congresso Americano
Em março de 2009, CartaCapital revelou documentos mostrando documentos que comprovavam o receio dos militares de que o ex-presidente João Goulart, então no exílio, voltasse ao País em 1976. Confira a reportagem publicada à época e assinada pelo repórter Gilberto Nascimento:
No exílio, o ex-presidente João Goulart, deposto no golpe de 1964, tentava unir as tendências de esquerda e criar um terceiro partido político no País (havia apenas a Arena e o MDB na época). Jango buscava meios de resistir ao regime e pensava em propor um programa político “menos radical” para conseguir voltar ao Brasil. Com esse objetivo, contatava outros exilados, como o ex-governador Miguel Arraes, Darcy Ribeiro, Luiz Carlos Prestes, e líderes políticos do Exterior.
Os contatos incomodavam os militares brasileiros, que monitoravam seus passos 24 horas por dia, como comprovam os documentos inéditos do Serviço Nacional de Informações (SNI) e de outros órgãos militares, obtidos por CartaCapital. A ditadura não queria o seu retorno.
Num documento de 10 de setembro de 1976, três meses antes da morte de Jango, o então ministro do Exército, Sylvio Frota, transmitiu uma ordem, por meio de telegrama, para que Jango fosse preso caso ingressasse no País. “João Goulart deverá ser imediatamente preso e conduzido ao quartel da PM onde ficará em rigorosa incomunicabilidade à disposição da Polícia Federal”, determinou.
Havia uma expectativa naquele momento de que Jango pudesse retornar ao Brasil para depor num processo em que era acusado de peculato. Após o golpe, o ex-presidente foi indiciado na Justiça Militar por suspeitas de corrupção e subversão. A Justiça de Brasília, então, publicou um edital de convocação para interrogá-lo na 4ª Vara Criminal da Capital Federal, ao considerá-lo “em lugar incerto e não sabido”.
Num informe do SNI para o então presidente Ernesto Geisel, em 5 de dezembro de 1975, afirmava-se que os processos por subversão contra Jango poderiam ser usados “como uma arma contra a vinda do nominado que, em caso de desembarque em solo brasileiro, terá, fatalmente, sua prisão preventiva decretada”. Os militares se mostravam surpresos pelo fato de Jango ter sido convocado por edital para depor.
“Não resta dúvida de que o edital de intimação do Sr. Goulart para vir depor no Brasil é uma forma que poderá levar ao seu retorno sob a proteção da Justiça Brasileira e poderá fazer parte de um esquema que, ultimamente, vem procurando proteger personagens da década 54-64 (Juscelino, Lott, Machado Lopes etc) – responsáveis por todos os descalabros que assolaram o País nos últimos anos.” A partir daí, os militares concluíam que a vinda de Jango “provocará reações de toda a sorte, tanto internas como externas e estas, particularmente, se vier a ter prisão preventiva decretada”.
A ditadura tinha detalhes de todos os contatos de Jango. Em outro informe de 27 de agosto de 1975, o SNI relatou que Jango dava "apoio ao PCB" (Partido Comunista Brasileiro) e mantinha "contatos políticos com brasileiros subversivos e asilados no Exterior, tais como Ribeiro Dantas, Almiro Afonso, Heron de Alencar, Marcio moreira Alves, Cândido da Costa Aragão, Miguel Arraes, Josué de Castro, Darcy Ribeiro, Benedito Cerqueira, Luiz Carlos Prestes e Apolônio de Carvalho".
Com Arraes, o ex-presidente teve um encontro em Paris, em 22 de setembro de 1973. Também Manteve uma troca de correpondências e conversas ao telefone. Tudo monitorado pelos órgão de repressão. Jango era vigiado, entre outros, por um espião infiltrado em seu apartamento em Montevidéu e na fazenda no departamento de Maldonado, identificado como “agente B”, conforme revelou CartaCapital na edição de 18 de março.000
Várias cartas de Jango enviadas a Arraes jamais chegaram às mãos do ex-governador pernanbucano. Foram interceptadas por agentes. No relatório do SNI de 28 de janeiro de 1974, também encaminhado a Geisel, há relatos sobre o encontro de Jango com Arraes em Paris, opiniões dos dois líderes exilados, um documento “analítico” elaborado por Arraes sobre o momento político e uma carta do ex-governador pernambucano ao ex-presidente.
Nessa correspondência, Arraes mostrava-se entusiasmado pelo fato de Jango ter conseguido "a aprovação de todas as tendências da esquerda brasileira espalhadas pela Europa". "Isso ocorreu depois da conversa que mantive com ele e na qual se mostrou disposto a adotar um programa mínimo não radical. Mostrei-lhe a inconveniência de voltar ao País sem esse programa, que seria, pelo menos, concordante com as posições que defendeu no governo , e que decorrem da orientação nacionalista de Vargas. Se não houver condições de defender pelo menos isso, não há condições para um retorno ou para uma permanência no País, caso regresse", dizia Arraes.
Em razão dos planos de retorno e das "ligações perigosas" no Exterior, Jango passou a correr riscos. Por meio do ex-deputado Neiva Moreira, Arraes, então exilado na Argélia, lhe mandou, no início de 1976, um recado: um agente secreto argelino lhe revelara que o nome do ex-presidente brasileiro constava de uma lista de figuras a serem eliminadas pela Operação Condor - uma aliança política e militar entre as ditaduras da América do Sul.
Em dezembro daquele ano, Jango morreu. Oficialmente, teve um ataque cardíaco, aos 57 anos, na cidade de Mercedes, na Argentina. Hoje, após a abertura de parte dos documentos sobre Jango entregues pelo governo brasileiro a seus familiares, crescem as suspeitas de que o ex-presidente possa ter sido envenenado a partir de uma troca dos frascos de remédio que tomava para o coração por produtos químicos letais. A denúncia de que ele morreu por envenenamento é feita pelo ex-agente uruguaio Mário Neiva Barreiro, preso desde 2003 por tráfico de armas, no presídio de segurança máxima de Charqueadas, no Rio Grand e do Sul.
Em depoimento à Polícia Federal, no ano passado, Barreiro disse ter participado de uma reunião no Uruguai, em setembro de 1976, que te0ve a participação do então delegado do Dops paulista Sérgio Paranhos Fleury (morto em 1979). Naquele momento, Fleury teria dito que o então presidente Geisel “não quer mais saber do retorno dele (Jango)” e ordenado “para pôr um fim nele”. Essa suposta ordem ocorreu no mesmo momento em que Sylvio Frota determinou a prisão do ex-presidente, caso ele entrasse no Brasil.
Ainda segundo o relato de Barreiro, Fleury disse que Geisel comentara que ele “sabia o que tinha que ser feito”. Na mesma reunião, fora decidido que a morte de Jango “seria feita pelo serviço secreto uruguaio através da troca de medicamentos de efeito antagônico”. Para essa operação, conforme o espião, foi indicado o médico legista uruguaio Carlos Milles Golugoss, codinome Capitão Adones, morto tempos depois. Golugoss havia feito curso com agentes da CIA para se especializar na utilização de venenos. Seu nome é citado eminvestigações sobre a morte de outros militantes de esquerda sul-americanos.
Outra coincidência que intriga a família é o fato de Jango, pouco antes de morrer, ter abdicado de sua condição de asilado político no Uruguai. O governo daquele país teria sugerido essa renúncia, com a promessa de lhe conceder a condição de residente. Ao menos outros três exilados mortos em Buenos Aires no mesmo ano também haviam renunciado ao asilo político na Argentina.
Depois de receber pedidos de ajuda de familiares de Jango, o ouvidor nacional da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Fermino Fecchio, prometeu cobrar dos “poderes públicos” uma investigação do caso e também apurar se estaria ocorrendo “negligência e omissão”. “O Poder Público brasileiro tem de responder. O País é signatário de tratados internacionais de proteção aos direitos humanos e tem de prestar contas desses compromissos assumidos perante a comunidade internacional”, sustenta o ouvidor. A família torce para que essa disposição se transforme realmente numa apuração isenta.
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