domingo, 12 de maio de 2013


O significado de ‘fazer mais’ no embate político atual sobre políticas públicas

                                            Francisco Fonseca (*)

“Rendimentos do trabalho explicam 58% da queda do índice de Gini entre 2001 e 2008, sendo 19% dela explicada por aumentos dos benefícios da previdência social e 13% pelo Bolsa Família. Cada ponto percentual de redução do Gini pelas vias da previdência custou 352% mais que o obtido pelas vias do Bolsa Família. Note que todas essas transferências cresceram no período. Ou seja, a desigualdade poderia ter caído ainda mais se fizéssemos a opção preferencial pelos pobres pelas vias do Bolsa Família”. [“A Década Inclusiva (2001-2011): Desigualdade, Pobreza e Políticas de Renda”, Comunicados do IPEA, Nº 155, Brasília, IPEA, 25 de setembro de 2012, grifos nossos].

O atual e precipitado debate sucessório – precipitação cujas raízes estão na emenda da reeleição, verdadeiro golpe branco na democracia brasileira desferido pelo Governo FHC – sobre “fazer mais”, “ir além do que já se fez” nas políticas públicas, parte de uma base comparativa significativa: o país ostenta índices sociais progressivamente positivos, cujos impactos são sentidos no cotidiano do cidadão pobre.

Deve-se ressaltar que os avanços sociais que vêm ocorrendo no Brasil, parte deles introduzidos pela Constituição de 1988 e aprofundados sobretudo a partir do Governo Lula, são insofismáveis, uma vez que, por um lado deram sequência à efetivação da lógica dos sistemas de seguridade (Sistema Único de Saúde, Sistema Único de Assistência Social, Fundef/Fundeb, Sistema Único de Segurança Pública – este, na lógica maior da segurança como “defesa social”, Leis Nacionais voltadas a políticas setoriais, em diversas áreas) e, por outro lado, inauguraram, no Governo Lula, um inédito processo de transferência de renda por meio de diversos mecanismos: particularmente o Programa Bolsa Família, mas também a ampla concessão de crédito, a valorização inédita do poder de compra do salário mínimo e da cesta básica, acesso às universidades – privadas e públicas, com expansão destas últimas –, entre outras políticas exitosas.

Todos esses avanços – sem desconsiderar seus problemas e contradições –, que têm promovido significativa mobilidade social no Brasil, se juntam à ativação da economia mesmo em tempos de crise internacional, o que é demonstrado pela imensa formalização do trabalho, pelo intenso consumo interno e por grandiosas políticas públicas, tais como os Programas “Luz para Todos” e “Minha Casa, Minha Vida”, esta no contexto dos Planos de Aceleração do Crescimento, entre outras.

Pode-se dizer que, de maneira progressiva, o país tem caminhado rumo à efetivação de um Welfare State, na medida em que a Seguridade Social combina ações preventivas e compensatórias (casos dos seguros) e focalizadas e universalizantes (casos respectivamente de bolsas de transferência de renda e dos direitos como saúde, educação etc), em que a previdência social, a saúde, o seguro desemprego, a transferência de renda e o poder de compra (por meio da empregabilidade, do aumento da massa salarial, da concessão de crédito e da capacidade de consumo) são seus sustentáculos.

Tem-se, portanto, uma nova realidade social, gestada fundamentalmente há pouco mais de dez anos – com fios condutores em 1988 –, mas que contrasta vigorosamente com a grotesca interpretação manipulatória da mídia e de outros setores conservadores, e mesmo com o frágil discurso dos partidos de oposição acerca desses fenômenos: cada qual a seu modo procura sistematicamente negá-los, diminuí-los ou desacreditá-los, em vez de apontar seus limites e alcances.

Pode-se dizer, portanto, que o gasto social total vem sendo ampliado, notadamente desde os Governos Lula, mas que, quando cotejado com a dimensão histórica da desigualdade brasileira ainda está aquém das necessidades de um país que pretende simultaneamente extinguir a miséria e consolidar um Estado de Bem Estar Social.

Por outro lado, a contraface das políticas públicas sociais exitosas está no gasto financeiro com a dívida pública interna. Segundo Eduardo Fagnani:

“A agenda brasileira para o futuro, definitivamente, não é aquela que os organismos internacionais querem impor ao mundo. Nosso desafio central é consolidar as conquistas de 1988, bem como os avanços e convergências obtidos recentemente. Isso depende de uma duríssima corrida de superação de obstáculos. Um deles é a redução das despesas financeiras, o maior item do gasto público. Somos líderes mundiais em taxa real de juros e vice-líderes no ranking de maiores pagadores de juros em proporção do PIB. Se Macunaíma vivesse hoje, certamente diria: ‘Ou o Brasil acaba com os juros, ou os juros acabam com o Brasil!’”. “As lições do Desenvolvimento Social Recente no Brasil”. Le Monde Diplomatique Brasil, 01 de dezembro de 2011.



O gasto apenas com o serviço da dívida pública, isto é, seus juros – sem, portanto, diminuir o principal –, atinge mais de 200 bilhões de reais ao ano, cifra incrivelmente alarmente, mesmo se levarmos em consideração a melhoria no seu perfil nos Governos Lula, assim como sua melhor posição relativa perante outros países, por dois motivos: a) cerca de 80% deste valor pertence a 20.000 proprietários distintos que, dessa forma, se beneficiam vigorosamente da alta dos juros; b) o Programa Bolsa Família, política pública exitosa e recomendada por instituições internacionais como a Unesco, que paga benefícios de cerca de 300,00 reais por família (teto), sendo o valor médio metade disso, representa apenas cerca de 0,4% do PIB, embora atinja cerca de 13 milhões de famílias (número em ascensão em razão do Programa Brasil Carinhoso). 

Em outras palavras, deve-se considerar que “é possível fazer mais”, “ir além” nas políticas públicas ao se inverter a equação entre gasto social e, no interior deste, o percentual de transferência de renda em relação ao PIB, e gasto financeiro com o pagamento de juros da dívida interna. 

Mesmo não sendo tomada de decisão simples, que dependa apenas da vontade política, o fato é que o enfrentamento aos poderes privados constituídos é tarefa fundamental e urgente de governos comprometidos com a democracia, notadamente a democracia de caráter popular e social, sem a qual a própria democracia política (dissensos, conflitos, circulação do poder etc) torna-se mera formalidade. Deve-se ressaltar, nesse sentido, que a democracia perdeu seu sentido exclusivamente político (as “regras do jogo” no dizer de Norberto Bobbio), tornando-se simultaneamente política e social, no final do século XIX, quando as primeiras reformas sociais foram implementadas na Europa. O Brasil somente agora está conseguindo consolidar o que é, portanto, uma experiência histórica. 

Para tanto, deve-se de fato “fazer mais” do ponto de vista fiscal, tributário e orçamentário – sem o que as políticas públicas como um todo e as sociais em particular tornam-se apêndices –, o que implica fundamentalmente enfrentar os grandes poderes constituídos. Esses podem ser sintetizados da seguinte forma: os aludidos detentores da dívida pública; o sistema financeiro como um todo, notadamente os bancos; os setores do capital que se beneficiam de dinheiro público sem contrapartida ao desenvolvimento social do país (agronegócio, grandes tomadores de empréstimos do BNDES e da CEF, entre outros); a grande mídia, como empresa e como “aparelho privado de hegemonia”, sempre a serviço do conservadorismo e da reação aos direitos sociais e políticos das classes populares; as grandes empreiteiras, com seus contratos bilionários e bastidores ocultos; o sistema político, fortemente “privatizado”, por meio do financiamento privado legal e sobretudo ilegal proveniente das grandes empresas. 

Embora a lista seja maior do que essa, e haja poderes intermediários, seu enfrentamento inteligente e politicamente hábil poderá “fazer mais” do que se fez na última década. Esse enfrentamento pode ocorrer, entre outras formas, com o apoio aos movimentos sociais, por meio de canais institucionais de participação política e com a ampliação “radical” da transparência de forma a, progressivamente, alterar as “regras do jogo”.

“Fazer mais”, portanto, implica a alteração do cerne fiscal/tributário/orçamentário – cujos números acerca dos juros da dívida pública contrastam incrivelmente com os da transferência de renda, como vimos –, e da maneira como o “jogo político” se desenvolve, o que leva à necessidade de reforma política: enfrentamento da privatização da vida política, do sistema midiático oligopolizado e oligarquizado, entre outras reformas que objetivem “radicalizar” a democracia.

(*) Francisco Fonseca, cientista político e historiador, é professor de Ciência Política no curso de Administração Pública e Governo na FGV/SP. É autor de “O Consenso Forjado – a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil” (São Paulo, Editora Hucitec, 2005) e organizador, em coautoria, do livro “Controle Social da Administração Pública – cenário, avanços e dilemas no Brasil” (São Paulo, Editora Unesp, 2010), entre outros livros e artigos.

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