Os BRICS e o parlamentarismo de mercado
Construindo um novo polo de liderança mundial, os BRICS podem reverter a destruição do mundo do trabalho hoje operada pelo parlamentarismo de mercado...
A devastação do mundo do trabalho pelo desemprego e a supressão de direitos é a tônica do nosso tempo.
Ela se dissemina globalmente como a contrapartida social mais perversa da era de livre mobilidade dos capitais.
Sob o impulso desse arrastão capitalista, invade o metabolismo das economias pelo canal do comércio exterior; internaliza padrões de competitividade derivados das novas cadeias de produção mundial; flexibiliza custos e dissolve garantias; instala a precariedade na existência assalariada.
Uma a uma as tábuas de chão firme duramente impostas ao capitalismo por sucessivas gerações de lutas operárias, governos populares e levantes nacionais são arrancadas com as consequências sabidas.
É como se uma gigantesca engrenagem cuidasse de tomar de volta tudo aquilo que transgrediu os limites da democracia política formal em direção a uma verdadeira democracia econômica e social.
Instala-se nesse oco um outro paradigma de eficiência feito de desigualdade ascendente.
A expansão estrutural do capital financeiro, cuja supremacia e crescente mobilidade determinam a desregulação em série dos mercados impondo constrangimentos à soberania democrática das nações, desbrava e legitima esse processo.
Não há economicismo nessa constatação.
A política contribuiu de maneira inestimável para o modo como essa lógica se impôs.
Erros e derrotas acumulados pela esquerda mundial desde os anos 70, sobretudo a colonização de seu arcabouço programático pelos valores e interditos neoliberais, alargaram os vertedouros de uma desregulação financeira cuja dominância se tornou ubíqua e impera em todas as esferas da vida humana.
A queda do Muro de Berlim, em 1989, consagraria aquilo que os mais apressados se atreveriam a denominar de ‘fim da historia’.
Não era.
Mas os sinais vitais nunca se mostraram tão frágeis para inaugurar o passo seguinte da humanidade.
Não por acaso, o colapso neoliberal em 2008 configurou-se, ineditamente, como uma ruptura capitalista desprovida de força social capaz de transformá-la em mudança de época.
O que se paga hoje em perdas e danos sociais é a fatura desse vazio.
Dito de outra forma, a desordem econômica neoliberal continua sendo administrada pela ordem política neoliberal.
‘Isso é a treva!’, resumiu em uma entrevista a Carta Maior a economista Maria da Conceição Tavares.
Não se trata apenas da metáfora dos nossos dias.
A mais-valia absoluta, na verdade, está de volta a uma Europa que agoniza sob os escombros daquele que já foi o Estado do Bem Estar Social mais avançado da história.
Políticas de corte salarial puro e simples, ou o seu congelamento associado à ampliação da jornada de trabalho, são implantadas sob a guarda do euro, em nome de uma bizarrice, ‘a contração expansiva’ que promete empregos e crescimento ao que sobrar da sociedade.
Estoques épicos de desemprego atingem 50% da juventude europeia nesse revival da aurora selvagem do capitalismo.
No total, 24% da população do continente não tem renda para sustentar suas necessidades básicas, entre as quais, alimentar-se.
Nos EUA, 47,5 milhões vivem com menos de 2 dólares por dia. O salário mínimo hoje é inferior ao vigente sob o governo ultraconservador de Ronald Reagan.
Símbolo do way of life anticomunista dos anos 50/60, a classe média americana amarga 15 anos sem aumento real de salários.
Explica-se a hesitação do Fed em subir a taxa de juro em meio a ‘uma recuperação’ de recheio social tão díspar.
Não é preciso ir mais longe para sentir o sopro gelado da regressão conservadora.
Há 72 anos, no 1º de Maio de 1943, Getúlio Vargas promulgava uma Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT, que agora o parlamentarismo de mercado, liderado pelo business man, Eduardo Cunha, cuida de desmontar.
Aproveita-se a ausência de uma agenda positiva de governo, para desengavetar uma agenda espoliativa da Nação.
Sob Vargas, a CLT consagrou a obrigatoriedade do registro em carteira para o trabalhador, limitou a jornada a oito horas, garantiu a estabilidade após dez anos na mesma empresa e oficializou o salário mínimo, instituído em 1936.
Esta semana, a treva mencionada por Conceição instalou-se no Congresso Nacional para fazer aquilo que FHC tentou e não conseguiu em 2001: enfiar o punhal nas costas da CLT, introduzindo no mercado brasileiro a terceirização em massa do trabalho, em todos os setores e em qualquer função, pavimentando demissões, arrocho e precarização das relações laborais em pleno retrocesso econômico.
A inevitabilidade da solução conservadora é martelada diuturnamente pelo aparato emissor.
O Brasil precisa, dizem os editoriais em festa, desmantelar a couraça do ‘atraso lulopetista’ materializada no quase pleno emprego, nos ganhos reais de salário, no seguro desemprego e demais interditos ao exercício da exploração nua e crua do trabalho pelo capital.
Quando todos os ‘insumos’ são livremente negociados e fatiados em escala global, não tem sentido manter a rigidez das relações de trabalho, diz o jornal da família Frias.
Trata-se, em síntese, de regredir a família assalariada à condição exclusiva de ‘insumo’, como aliás Marx antecipou.
Ajuda nesse sentido trazer a crise para dentro do país e, com ela, os ajustes retardados desde 2008 pelo intervencionismo estatal do lulopetismo.
É o que está sendo feito agora sob aplausos das federações empresariais ao seu CEO no Congresso.
Um governo desguarnecido em duas frentes estratégicas – a da comunicação e a da politização da luta pelo desenvolvimento-- ademais de acuado por escândalos meticulosamente midiatizados, e engessado pelo esgotamento de recursos contracíclicos, rende-se assim às prescrições do mercado.
Antes que a descrença transforme o campo progressista em um cemitério de prostração e autoflagelo é preciso enfatizar as determinações globais dessa encruzilhada para que se possa vislumbrar a luz do longo amanhecer pós-neoliberal.
O que se sublinha como determinações globais não deprecia a urgência da autocrítica petista, nem autoriza a protelação dos enfrentamentos que cobram da esquerda brasileira o desassombro de uma frente ampla progressista para terem viabilidade.
É imperioso, porém, interligar essa resistência a de outros povos e nações para que ela seja viável e o mantra mercadista não nos ensurdeça.
Faz parte da travessia a sedimentação de instituições cooperativas que devolvam aos Estados e nações o poder de frear a mobilidade extorsiva dos capitais, resgatando a margem de manobra sobre variáveis cruciais do desenvolvimento, como as políticas monetária, a fiscal, a cambial e a trabalhista.
O longo amanhecer de uma nova ordem mundial passa pelo desdobramento dos Brics em novos organismos de cooperação que preencham a lacuna criada com a destruição dos acordos de Bretton Woods, nos anos 70.
A libertação dos demônios reprimidos em 1944, impôs à luta pelo desenvolvimento uma camisa de força de indiferenciação regressiva entre a hegemonia dos mercados financeiros, o sistema político, a ordem jurídica e a gestão econômica.
É na esteira desse arrastão capitalista, repita-se, que se viola a urna, a democracia e a soberania indissociável da luta pelo desenvolvimento.
Essa é a importância dos instrumentos de cooperação financeira oficializados na VI Cúpula de Chefes de Estado e de Governos do BRICS, que se estendeu entre Fortaleza e Brasília, em julho do ano passado.
O fundo de reservas contingente – para acudir nações sob o assalto especulativo das fugas de capitais, por exemplo-- terá valor inicial de US$ 100 bilhões (US$ 41 bilhões da China; Brasil, Rússia e Índia, com US$ 18 bilhões cada; e a África do Sul, com US$ 5 bilhões).
O Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) começa com um fundo de US$ 50 bilhões, subscrito em partes iguais pelos cinco integrantes dos BRICS.
A ideia é que possa operar globalmente financiando projetos de infraestrutura em todo o mundo pobre e em desenvolvimento. Seria, assim, a principal ferramenta de influência geopolítica dos BRICS na construção de um novo polo de liderança mundial.
Se o fundo de reservas guarda semelhanças com a função original do FMI imaginada em 1944, o NBD seria a contraface progressista do Banco Mundial.
Bretton Woods foi uma tentativa de erigir uma institucionalidade global, erguendo amortecedores que diluíssem a repetição das causas das duas guerras mundiais --entre elas, a desordem espoliativa das nações pelos mercados desregulados.
As sementes criadas agora pelos Brics tem a firme determinação de avançar nesse caminho e ir além dele.
Trata-se de promover um aggiornamento necessário da fronteira da soberania em nosso tempo, que se desloca de Estados isolados para um núcleo de economias afins, capaz de reunir a escala financeira e geopolítica adequada à regulação de um espaço econômico que permita planejar o desenvolvimento no século XXI.
Sem isso fenece a busca do pleno emprego, torna-se errático o investimento de longo prazo e impossível a coordenação entre as moedas –com ajustes cambiais periódicos-- para evitar crises de balanço de pagamentos e guerras protecionistas.
É no escopo dessa armadura que será possível reverter, de fato, a destruição do mundo do trabalho hoje operada com notável desembaraço pelo parlamentarismo de mercado, sob a batuta de um personagem clássico destes tempos, o ovacionado Eduardo Cunha.
(*) Joaquim Palhares é diretor de redação da revista Carta Maior.
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