sexta-feira, 7 de novembro de 2014

"A revoada  dos

passaralhos"  e

o jornalismo por      

trás do véu 

Jornal GGN - "Demissões em massa nos grandes jornais acontecem de forma sucessiva e tornam os jornalistas mais inseguros, vulneráveis, explorados – e com menor liberdade de expressão". É esse o mote da reportagem "A revoada dos passaralhos", publicada com exclusividade no porta da Agência Pública. A matéria foi feita em julho e concorreu a prêmios de Jornalismo. Nesta sexta-feira (7), ela foi lembrada em função de demissão de dezenas de jornalistas na Folha de S. Paulo, no dia anterior. Profissionais como Fernando Rodrigues e Eliane Cantanhêde foram desligados após décadas de contribuição. O GGN reproduz o especial a seguir.           
Da Agência 
O maior orgulho de Vera Saavedra Durão foi ver a filha virar jornalista. Isso porque ela própria, Vera, dedicou 35 anos à profissão, com a garra de quem cumpre uma missão. “Você quer que as informações sejam publicadas da melhor forma possível, que aquilo ali venha a público. A gente se entrega”, diz Vera. “Se minha filha seguiu o mesmo caminho é sinal de que ela viu valor nisso”.
A jornalista, hoje com 65 anos, abraçou a reportagem com a mesma paixão que lutou contra a ditadura, como militante da Vanguarda Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), onde foi companheira de Dilma Rousseff. Ficou dois anos na prisão; quando saiu, atuou como repórter de Economia nos então principais jornais do país – O Globo, Jornal do Brasil, Gazeta Mercantil, Folha de S. Paulo.
Em 2000, fez parte da equipe que fundou o jornal Valor Econômico, onde ficou por 13 anos. “No início eu cobria muito tudo, o empenho era muito grande para manter o jornal, com furos, afinal ele precisava se firmar. A gente fazia muita coisa”, lembra Vera, que traz dessa época a lembrança de uma úlcera duodenal sangrante, que surgiu quando fazia uma cobertura particularmente tensa para o Valor. “Perdi dois litros de sangue, e eu nem sabia, até que caí desmaiada. Eu me alienei tanto naquela cobertura, me estressei muito”, conta a jornalista, respeitada por sua competência e dedicação pelos colegas e fontes.
No dia 24 de maio passado, Vera foi demitida sumariamente, junto com mais de 20 colegas do Valor, jornal que pertence ao Grupo Folha e às Organizações Globo. “Fui apanhada de surpresa, não podia imaginar que eu podia entrar numa lista negra, para ser cortada de uma maneira tão brusca”. A surpresa foi ainda maior porque acabara de vir à tona que ela fora alvo de espionagem da empresa Vale S.A., segundo denúncia de um ex-gerente de segurança, caso ainda investigado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro. Mas Vera, que estava de férias, nem chegou conversar com a direção do jornal sobre a denúncia. “O jornal não teve contato comigo sobre isso. Mandei email para a chefia para conversar sobre isso, mas acabou a gente não conversando porque eu fui demitida”, conta.
“Depois de 13 anos trabalhando para engrandecer o jornal achei que teria direito a um período sabático e não a uma demissão”, diz ela. “O meu raciocínio sobre os meus direitos era o da minha classe, que é a dos jornalistas, dos que ‘carregam o piano’, e não dos acionistas, donos do jornal, que querem ver o resultado imediato do nosso trabalho”. Vera lembra de uma fonte empresarial que lhe dissera, em 2005, que merecia um bônus já que por causa de uma série de reportagens suas, o Valor passou a ser lido no Japão. “Eu disse que jornalista não tinha bônus, só ônus”.
Enquanto Vera ainda tenta digerir a demissão na sua casa do Rio de Janeiro, a mil quilômetros dali Flávio José Cardoso, de 51 anos, atende clientes de um belo restaurante à beira mar na ponta de Sambaqui, em Florianópolis. Há quatro anos, ele escrevia os editoriais do jornal mais lido de Santa Catarina, o “Diário Catarinense”, com 40 mil exemplares diários. Hoje, é garçom.

A guinada em sua vida começou em 2010, quando mudou o editor-chefe do jornal. Ele deixou de ser editor de Opinião e foi “promovido” a subeditor de Geral, seção que inclui de polícia a comportamento. “Passei a editar também o caderno Mundo, sozinho. Depois de um tempo, me colocaram para escrever matérias especiais todos os dias”. Além das reportagens e da edição, ele passou a fazer a diagramação, montar tabelas, procurar fotos. Se antes trabalhava das 13h às 19h, passou a ficar no mínimo 12 horas dentro do jornal, todos os dias – e estava sempre atrasado. “O trabalho que estava fazendo era para ser resolvido por oito ou dez pessoas. Entrava às 13h e saía a 1h, 2h da manhã, todos os dias. Não parava para comer; comia um salgado, enquanto digitava”. Isso quando o editor não falava, em alto e bom som para todo mundo ouvir, coisas como “Eu já te expliquei isso. Uma pessoa com um neurônio entende”.

Flávio aguentou a situação por um ano. “Isso leva o indivíduo a um nível de estresse que ele começa a se achar incompetente para executar as tarefas que faz há 20 anos”. Durante esse período, teve lesões nos tendões das mãos e na córnea, porque usa lentes de contato e ficava muito tempo exposto ao computador e ao ar condicionado. “Quando voltei de licença por causa da lesão, o editor-chefe teve a cara de pau de dizer que eu inventei a doença!”. Entrou com um processo contra o Diário. Hoje, embora seja garçom, colabora com uma revista especializada em economia. E não largou o jornalismo – ainda.
As histórias de Vera e Flávio não são exceção entre os jornalistas brasileiros; o que é raro é algum deles vir a público denunciar essa situação. Acúmulo de tarefas, assédio moral, hora extra não-remunerada, insegurança sobre o próprio futuro são males que infestam a indústria das notícias no Brasil. Embora sejam fruto de decisões empresariais que já duram alguns anos, nos últimos meses a situação se agravou com diversos grandes cortes de pessoal – os chamados “passaralhos”.
Uma ave que acaba com tudo
Passaralho é um jargão agressivo para as demissões em massa nos meios de comunicação. Remete a pássaros, revoadas de algo que destrói tudo por onde passa. De março a maio de 2013, eles passaram sobre redações grandes como Estadão, Valor Econômico, Folha de S. Paulo e já sobrevoam a editora Abril, a maior do país, além de atingir a maioria dos jornalistas em redações menores, como Brasil Econômico e Caros Amigos. Isso, somente dentre as empresas sediadas na cidade de São Paulo. No estado inteiro houve demissões no jornal A Tribuna, o maior da região da Baixada Santista, e na Rede Anhanguera de Comunicações (RAC), que domina as regiões ao redor de Campinas, Ribeirão Preto e Piracicaba.
Considerando apenas os jornalistas registrados em carteira e somente na cidade de São Paulo, foram registradas 280 demissões homologadas de janeiro a abril desse ano, 37,9% a mais que no mesmo período de 2012, quando foram registradas 203 homologações por conta de demissões. Ou seja, tudo indica que 2013 será pior que o ano passado, quando mais de 1.230 jornalistas foram demitidos de redações no Brasil. Os motivos, em geral, foram “reestruturações”, que nada mais são que novas formas de organizar o trabalho usando menos pessoas e mais tecnologia.
“É um ponto fora da curva”, diz Paulo Totti, que, com quase 60 anos de jornalismo, também foi vítima do corte no Valor. Totti usa a expressão para explicar que, na indústria do jornalismo, os trabalhadores mais experientes são descartados facilmente e substituído por recém-formados – o oposto do que acontece em outras áreas. “Em nenhum outro ramo da economia se vê atitudes semelhantes. Os administradores têm a preocupação de manter a sua mão-de-obra qualificada”, diz Paulo, que sempre cobriu economia, e com excelência. Em 2006 foi vencedor Prêmio Esso, o mais respeitado do jornalismo brasileiro, com uma série sobre a economia chinesa. Meses antes de ser demitido, havia se oferecido para fazer oficinas com cada uma das editorias do Valor, para ajudá-las a melhorar a qualidade dos textos. “Há, claro, uma certa surpresa, já que a demissão não decorre de uma maior ou menor dedicação ao trabalho. Mesmo um jovem fica meio intranquilo quanto ao seu futuro. Pior: se o cara desempenhar bem suas funções, ele pode ter um aumento de salário, e esse aumento causa a sua demissão”.

Aonde os donos de jornais querem chegar?
Paulo Totti, que no momento considera a única opção que lhe foi dada pelo jornal – virar colaborador freelancer – compartilha um receio que se espalha nas redações com a mesma rapidez que o voo dos passaralhos. “Temo que isso esvazie o conteúdo do jornal. E esse é o sentimento de todo corpo de gente que integra o setor redação em todos os jornais brasileiros”, explica ele. “Não sabemos bem aonde os donos dos jornais querem chegar. A decisão no Valor, por exemplo, partiu da pressão de pessoas que integram o conselho administrativo do jornal, representantes dos acionistas. Nenhum deles tem no seu currículo alguma passagem pelo jornalismo”.
Os cortes de pessoal se devem a um investimento milionário em um serviço de informações financeiras em tempo real, o Valor Pro. Esse investimento começou a ser feito há cerca de três anos, quando os funcionários foram avisados que a redação seria unificada. “Fomos avisados de que nos dois anos seguintes ninguém teria aumento salarial. Ao mesmo tempo, todos teriam que escrever para as três plataformas: tempo real, site e impresso”, diz um jornalista que sobreviveu ao último corte no jornal e que prefere não se identificar. Segundo o repórter, o clima da redação está ruim; além do trauma provocado pelas demissões, sobrou excesso de trabalho para todos. “O site, que antes era cuidado por cada editoria, agora é alimentado por pessoas de um ‘mesão’ digital, que não tem muita familiaridade com alguns assuntos. No impresso, a cada dia está uma briga por espaço e o número de páginas está sendo reduzido”.
Também a Folha de São Paulo anunciou uma reestruturação na última semana, com o fim do caderno “Equilíbrio” e o reagrupamento de outros cadernos em três núcleos de produção. O número de jornalistas demitidos foi de 24(entre os quais os experientes colunistas Fernando Rodrigues e Eliane Cantanhêde,criadora da expressão calhorda 'elite limpinha e cheirosa', direitismo explícito que não a salvou da degola). A direção comunicou à ombudsman, Suzana Singer, que “as redações do futuro deverão ser cada vez mais enxutas, assim como o produto impresso”. Entre os demitidos estão nomes do porte de Andreza Matais, ganhadora do Prêmio Esso de jornalismo 2011 pela série que demonstrou o enriquecimento do então ministro da Fazenda, Antonio Palocci. “Aos que acreditam que o jornalismo de qualidade faz bem à democracia, resta torcer para que a travessia dê certo”, resumiu Suzana Singer, em artigo na Folha.
A Pública falou com um dos jornalistas cortados do Grupo Folha, da área de cultura, que pediu para não ser identificado. “Ao chegar à redação um dos colegas comentou que haveria corte e, cerca de 20 minutos depois, fui chamado para ser avisado de que seria desligado da empresa. A justificativa? Corte de gastos. Tinham de ter uma meta x de gastos, e a minha saída ajudaria a atingir tal meta”.
Eu tenho pena de quem ficou e de quem está entrando no jornalismo”, diz, com certa serenidade, o repórter fotográfico Lula Marques, premiado jornalista da sucursal de Brasília da Folha de São Paulo. No dia 1º de abril, ele acordou comemorando o aniversário de 26 anos de jornal. À tarde, foi comunicado que estava demitido. “Me falaram que eu estava ganhando muito, mais que o editor de fotografia de São Paulo, que meu nome estava na lista há dois anos e que não dava mais para me segurar na empresa”. Desde novembro de 2011 – quando a empresa cortou 10% dos seus jornalistas – os cortes, discretos e sem alardes, são constantes na Folha. Tanto, que Lula diz que já estava preparado. “Saí com um equilíbrio emocional bom, porque já estava me preparando para isso. Nos últimos dois anos, as pessoas que estavam com o salário lá no alto foram todas embora. Sabia que um dia ia chegar minha vez”.
Tensão na Abril
Era sexta-feira, dia 7 de junho, quase no final do expediente, e o clima no prédio da editora Abril S.A, zona oeste de São Paulo, estava pesado por conta dos rumores de um grande corte, previsto desde a  morte do presidente do grupo, Roberto Civita, em 26 de maio. “Olha, está muito tenso e é uma tensão diferente. Eu já vivi outras demissões coletivas, mas antes era assim: os diretores das redações estavam plenamente por dentro de quantas pessoas deveriam ser cortadas de cada revista, enquanto os ‘peões’ estavam morrendo de medo. Agora não, ninguém sabe de nada direito, nem os diretores”, disse à Pública uma jornalista, que também pediu não ser identificada por medo de represálias.
Pouco depois, seis executivos foram demitidos, junto ao anúncio de que o grupo passaria por uma “reestruturação”, com agrupamento de unidades de negócios, reduzidas de dez para cinco. O objetivo, segundo a empresa, era a “racionalização dos recursos”. Há boatos de que 11 revistas deixarão de circular – entre elas nomes lendários como Playboy, Capricho e Contigo. É a senha para o passaralho. “Deve acontecer na próxima semana”, diz a mesma jornalista. “Eu acho que, se na semana que vem já anunciarem qual revista vai ser cortada, o clima vai melhorar. Não saber o que vai acontecer que é estranho. A gente faz piada o tempo todo, tipo, estou me matando pra fazer esse editorial de moda e se a revista acabar amanhã…
Entre os jornalistas, nesse momento o clima é de intranquilidade aguda”, diz Paulo Zocchi, diretor jurídico do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e que trabalha na redação da revista Quatro Rodas, da editora Abril. “Tá todo mundo morrendo de medo. Na minha redação, que é de uma faixa etária um pouco mais velha, tá todo mundo falando: ‘vamos ver se segunda-feira vamos estar aqui’”. A jornada dupla de Paulo – na revista e no sindicato – está ainda mais atribulada desde as últimas demissões. Toda vez que corre um boato de demissão, o sindicato é acionado, e pede uma reunião de emergência na empresa, para negociar.
Foi o que aconteceu em abril, na negociação com o Estado de São Paulo – de desfecho inesperado. O Estadão anunciara a redução da quantidade de cadernos diários para apenas 3, a extinção do caderno Link, sobre tecnologia, e do caderno de Negócios. Ao mesmo tempo, passou a privilegiar as plataformas digitais, com o lançamento do novo aplicativo do Estadão, adaptável a qualquer dispositivo móvel.  Segundo conta Paulo Zocchi, na quinta-feira, dia 4 de abril, ele recebeu uma ligação avisando sobre boatos de demissão em massa no Estadão. “Hoje, a redação tem 250 jornalistas. O boato era de que 100 seriam demitidos na segunda ou na terça-feira da semana seguinte”. O sindicato solicitou uma reunião de emergência com a direção do Estadão, mas o jornal não respondeu e começou a demitir já no dia seguinte, sexta-feira. No total, foram 31 demitidos.
Na sexta-feira, 12 de abril, fizemos uma assembleia na empresa, e desceram 90 pessoas. O objetivo era reverter todas as demissões. Até que uma das trabalhadoras demitidas disse que não queria ser reintegrada”, lembra ele, revelando sua surpresa. No fim da assembleia, em que estavam 14 dos 31 demitidos, nenhum deles queria voltar a trabalhar no Estadão. “As pessoas se sentiram descartadas, afetadas emocionalmente de uma forma tal que elas não queriam voltar”.

Um dos demitidos, repórter com cerca de cinco anos de profissão, não disfarça sua revolta. Segundo ele, os rumores de cortes eram constantes no jornal, espalhando um “clima de terrorismo”: “O jornal esperava que os jornalistas continuassem a manter a quantidade e a qualidade de trabalho com menos pessoas, impossível. Jornalistas acumularam funções e a qualidade, como os leitores puderam observar, caiu”. Ao ser demitido, ele foi procurado por um dos diretores, “para deixar claro que eu não estou sendo demitido pela sua falta de competência, que é uma questão de corte de gastos”, lembra. “Querem que você não se revolte e não sai baixo astral, que saia feliz e tranquilo. Te apoiam, mas dizem: ‘vai lá”.

Como a maioria dos jornalistas demitidos, ele prefere não se identificar publicamente. Quase nenhum dos entrevistados, principalmente os mais novos, quiseram se expor. “Sabe como é, o mercado é muito pequeno e eu posso ter dificuldade para conseguir trabalho”, diz um deles.
Do Sul ao Norte do Brasil
Na ilha de Santa Catarina, o nome do passaralho é mais poético: chamam de “barca”, como aquela, dirigida por Caronte, que levava as almas ao inferno, ou Hades, na mitologia grega. A última barca do Diário Catarinense, o maior jornal do Estado, aconteceu no dia 21 de março e levou cerca de 20 profissionais da redação. Poucas pessoas souberam. A divulgação mais ruidosa do caso foi um e-mail do jornalista Célio Klein anunciando, aliviado, sua demissão após 25 anos de casa. Nela, ele se diz alegre por ter saído do jornal, mas expressa “profundo pesar pela situação”: “É muito grave e difícil não se ver outra saída que não a de abrir mão do trabalho do qual se gosta e ao qual se dedicou a maior parte da vida”. A carta prossegue: “Em uma empresa de comunicação, questionar - alimento do jornalismo - não é permitido. Em uma empresa de comunicação que tem a educação como bandeira, que implica justamente pensar de forma autônoma, pensar não é permitido. Em uma empresa de comunicação que exalta a democracia, vende a diversidade de opiniões, a participação dos leitores como case de ação, de sucesso, divergir não é permitido”.
Semanas depois,  em abril, o jornal “A Crítica”, no Amazonas – um veículo da RCC (Rede Calderaro de Comunicação), que tem filiadas à Rede TV!, ao SBT e à Record. – demitiu aproximadamente 15 pessoas, entre repórteres, editores e fotógrafos do jornal impresso e do site. A repórter especial Elaíze Farias, vencedora do prêmio Imprensa Embratel 2013, foi uma das cortadas. “A justificativa oficial é de que o jornal acabou com esse cargo”, diz ela. “Não sei quais foram os critérios”.
Com quase 20 anos de experiência, Elaíze dedicou metade deste período a produções de reportagens sobre questões sociais e ambientais da região. Ela lembra de uma das últimas reportagens que fez, sobre um casal de índios matis que estava sendo acusado de tentar cometer ‘infanticídio’ contra seu filho doente em Manaus – o que foi completamente desmentido por eles. “Para conseguir entrevistar esse casal, me desloquei de lancha pelo rio Solimões (uma hora) de Tabatinga até outro município, Benjamin Constant, e dali peguei um táxi-lotação (meia hora), viajando pela estrada até Atalaia do Norte, onde os índios matis estavam. Fiz o retorno de carona, na moto de um indígena, porque não havia mais táxi disponível entre Atalaia e Benjamin, até novamente voltar a Tabatinga. E precisava chegar antes das cinco da tarde, pois as lanchas que fazem a travessia do rio em Benjamin operam até neste horário. Ou seja, foi um gasto extra que precisei utilizar. Depois de uma jornada de oito dias, voltei a Manaus. Bom, é assim que se faz jornalismo na Amazônia”.
Para ela a maior preocupação é ter que deixar de realizar reportagens como essa. “Fiquei muito frustrada por, após a minha saída, estes temas terem ficado parados, na minha própria gaveta de pautas. Elas continuam guardadas, para quando eu tiver algum espaço e logística para viabilizar”.

Sobre o silêncio que cerca as demissões, Elaíze diz: “No geral, a notícia das demissões ficaram restritas ao boca-a-boca e às redes sociais – eu, por exemplo, fiz um comunicado pelo Facebook e por e-mail aos meus amigos, companheiros de luta, organizações sociais e fontes”, comenta. “Hoje se fala muito nas crises dos jornais impressos e na sua dificuldade de se adaptar aos novos tempos e às notícias publicadas nos portais de internet. O enigma é: a mídia vai se conseguir se reinventar, se ressignificar, para continuar sobrevivendo? Cabe a todos nós, os que estão dentro e os que estão fora das redações, passar a refletir”, acredita.

Para o pesquisador José Roberto Heloani, da FGV, a esperança é a de que os jornalistas comecem a ter maior consciência e maior interesse nessas questões. “É isso que chamo de luz no fim do túnel. E isso vai fazer com que as pessoas comecem a perceber que a saída não é individual. A saída é coletiva”. Neste ano, em São Paulo, houve pelo menos quatro casos de organização de jornalistas contra demissões: “O Vale” e “Bom Dia”, de São José dos Campos; do “Jornal da Cidade de Jundiaí”; do “Brasil Econômico”; e a dramática greve da pequena redação de “Caros Amigos”, autodenominada “a primeira à esquerda” que terminou com demissões e ações na Justiça (veja box).
O jornalista Audálio Dantas, que presidiu o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo na época do assassinato de Vladimir Herzog e foi o primeiro presidente da Federação Nacional dos Jornalistas, tem uma avaliação mais pessimista. “Por mais que se lute, o panorama dos meios de comunicação concentrado em poucas mãos contribui para que as lutas sejam enfraquecidas”, diz Audálio, que considera a regulação da propriedade dos meios de comunicação essencial no debate sobre o futuro da profissão: “Há a necessidade de se regular, porque nós temos esse fenômeno: o sujeito faz o trabalho para o veículo impresso, a empresa faz uma adaptação do mesmo texto e o trabalho de um profissional é aproveitado em quatro meios”.
Nesse cenário, ele diz, não há mais distinção entre bons profissionais e medianos. “Antes, os grandes jornais tinham esses cuidados de preservar os bons jornalistas. Hoje, não se distingue os profissionais e vão todos no mesmo diapasão”, observa Dantas, que identifica um ciclo vicioso para a profissão: para aproveitar o rendimento máximo – em termos quantitativos – as empresas mantêm o jornalista dentro da redação, fazendo matérias por telefone e por e-mail, o que resulta em um número maior de matérias, mas de pior qualidade.  “A grande vítima, depois do jornalista, é a apuração. A qualidade da informação, que é o que garante historicamente a credibilidade, está prejudicada”.
Para os mais jovens, porém, a sensação é de que as mudanças são ainda mais profundas, como diz o jovem profissional, recém-demitido do Estadão: “A justificativa [de cortes de papel e demissões] é a financeira. Se você acompanha o jornal, deve ter percebido que as editorias enxugaram, algumas sumiram… O jornal inteiro ficou menor. A sensação, dentro e fora da redação é de que o jornal está apenas adiando o seu fim”.
Desrespeito também nas pequenas redações
Tão comum é a precarização do trabalho do jornalista, que ela chega a redações grandes e pequenas, de todos os espectros ideológicos. Em março deste ano, a revista Caros Amigos – na qual trabalharam, no passado, as duas diretoras da Pública – protagonizou uma dramática greve. Os 11 profissionais grevistas abriram uma página no Facebook, que chegou a ter mais de 1500 apoiadores; mas, ao cabo de 3 dias, todos foram demitidos pelo atual proprietário Wagner Nabuco. Os funcionários protestavam contra a ameaça de uma redução de parte da equipe ou redução dos salários. “O dono comunicou que iria fazer um corte de 50% dos custos da redação, o que significaria a demissão de metade da redação”, diz o ex-editor Hamilton Octavio de Souza. Também queriam direitos trabalhistas, como contratação formal no regime CLT. Em entrevista ao portal Sul 21, Nabuco mostrou-se indignado com as reivindicações. “Não tem carteira assinada porque ninguém entrou aqui com essa promessa. Foram crescendo devagar na empresa, muitos começaram como estagiários. A folha de pagamento da redação nunca foi tão alta, era maior que a do departamento comercial. Nunca me falaram que eu era um patrão ruim. Que instrumento eu utilizei para mantê-los acorrentados e explorados ao máximo? Por acaso coloquei um 38 na cabeça de alguém?
Após uma tentativa de negociação, mediada pelo Sindicato dos Jornalistas, os demitidos decidiram entrar com ação judicial contra a empresa. Gabriela Moncau, uma das jornalistas demitidas da Caros Amigos, explica que nove dos onze profissionais desligados da empresa estão se organizando para mover uma ação reivindicando os direitos mínimos trabalhistas, negados no momento da demissão, o que deve ocorrer em breve.

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