Carta aberta ao papa Francisco
José Ribamar Freire Bessa (*) Portal Terra / Magazine
A Rádio Vaticano com certeza nunca tocou “A Carta” de Waldick Soriano, que figurava nas paradas de sucesso da Rádio Baré, em Manaus, nos anos 1960. Naquele tempo disse o rei do bolero aos seus discípulos: “Irmãos, sigam-me aqueles que dentre vós sofrem com dor de corno”. Embora desconhecida por cardeais, essa epístola cantada, nada canônica, repleta de queixumes e gemidos de amor, foi a inspiradora da missiva abaixo, que nunca será lida pelo seu destinatário.
No blog Taqui Pra Ti
Manaus, 4 de agosto de 2013
Ao Papa Francisco
Saudações!
Escrevo esta carta, mas não repare os senões, para dizer o que sinto com o desempenho de Vossa Santidade na Jornada Mundial da Juventude. Sinto-me estimulado por V.S. que em entrevista dentro do avião, na viagem de volta para a Itália, declarou:
- Eu gosto quando alguém me diz: ‘eu não estou de acordo’. Esse sim é um verdadeiro colaborador.
Conte comigo, Sumo Pontífice. Este vosso humilde servo quer colaborar, até porque tem sérias restrições a essa visita ao Brasil tão paparicada e incensada pelo turíbulo da mídia que trombeteou o tempo todo: “Ah, que belo”. Lembro aqui as palavras de V.S.: “Aqueles que dizem ‘Ah, que belo, que belo’ e depois dizem o contrário por trás, isso não ajuda”.
Desejoso de ajudar V.S., manifestei desacordo público no Taquiprati. Minha voz dissonante foi incompreendida e censurada por amigos, alunos, familiares, não escapou nem meu dileto sobrinho, conhecido como Pão Molhado, que não ouviu o Papa dizer aos jovens em Copacabana: “Não sejam covardes, metam-se, saiam para a vida. Saiam às ruas como fez Jesus”. Meu sobrinho, hoje poderoso analista do Seguro Social na Agência da Previdência Social de Maués (AM), foi mais papista do que o papa:
- Cala a boca, tio! Respeita o Papa! Vós sois ateu? – me disse, conjugando um verbo que coloca no mesmo saco três coisas tão diferentes como fé, religião e Igreja.
Esse aí não é o Pãozinho Molhado do titio, lá do bairro de Aparecida. Esse aí não é aquele menino que embalei na rede durante toda a infância, a quem fiz dormir cantando “Vento que balança as palmas do coqueiro”. Esse é o Pane Tutto Bagnato que puxa o saco do Papa e só não excomunga o tio porque não tem poder para isso. De qualquer forma, não hesitou em me impor aquela punição do Direito Canônico aplicada ao teólogo Leonardo Boff pelo Vaticano: o “silêncio obsequioso”.
Calei, engasgado, sobretudo diante do discurso de Boff e Frei Beto, a quem admiro e que fazem minha cabeça. Para eles, V.S. representa uma revolução na Igreja. É um discurso esperançoso. Mas o que foi dito por V.S. me faz temer pela expectativa criada.Fiquei mudo uma semana. Agora, estimulado por V.S., rompo o “silêncio obsequioso” para manifestar desapontamento quanto ao tratamento dado a índios, mulheres, gays, divorciados, movimento carismático e à própria teologia da libertação. Francamente, Santidade, quanta decepção!
Na organização das cenas da Via Sacra em Copacabana tinha tudo: cantor, artista global de telenovela, Ana Maria Braga de lençol branco e cabelo arrepiado e até o Louro José. Só não havia índios, eles que foram crucificados em toda a América, aos milhares, segundo Las Casas. Os organizadores da Jornada apagaram os índios até da encenação da primeira missa, desconsiderando relato de Frei Henrique e o quadro de Victor Meirelles. Sequer um ator fantasiado de índio apareceu naquele momento.
No outro dia, fora desse contexto, os Pataxó conseguiram furar o bloqueio e dar um cocar a V.S., mas foram folclorizados. Nenhuma palavrinha de V.S. em defesa da terra invadida, das culturas subterrâneas, das línguas silenciadas. O segmento mais injustiçado da sociedade brasileira e talvez o mais generoso merecia uma palavrinha do Papa, no mínimo para pagar a dívida histórica com eles contraída pela Santa Madre Igreja. Nada. Suspeito que a Igreja saiu perdendo com a ausência dos índios.
E as mulheres? O discurso de V.S. aqui está empapado de contradição. Reconhece num primeiro momento que “a mulher na igreja é mais importante que os bispos e os padres”, mas logo em seguida, perguntado sobre a ordenação de mulheres sacerdotes, como já fazem os anglicanos, nega tal importância: “Mulheres não podem celebrar missa. Essa porta está fechada. João Paulo afirmou isso como uma formulação definitiva”. Missa só pode ser celebrada por machos.
Quanto aos gays, pelo menos V.S. não agiu como César (Antônio Fagundes) quando descobriu que seu filho Félix (Mateus Solano) corria na floresta. Nem como o pastor Feliciano que quer curá-los. Felizmente o discurso homofóbico da carta do cardeal Bergoglio às freiras carmelitas não foi reiterado aqui. Já é um pequeno avanço: “se uma pessoa é gay, quem sou eu, por caridade, para julgá-la?“. Mas união homoafetiva nem pensar:“a posição é a da igreja. Sou filho da igreja”.
A posição da Igreja é a de que o homossexual deve ser acolhido com respeito e compaixão, desde que permaneça celibatário, dentro do armário. Nada de casamento. O padre Beto da Diocese de Bauru, excomungado por defender união gay, permanece excomungado. Gays são como os leprosos do Evangelho: aceita-se por misericórdia e não por reconhecimento da alteridade. Waldick Soriano parece mais cristão: “Espero que um dia / tudo se consiga / e a quem ama não seja negado / o direito de ser amado”.
A teologia da libertação, um raio luminoso na Igreja da América Latina, foi considerada por V.S. como “uma doença infantil já superada“. O movimento conservador de Renovação Carismática como “uma graça para a Igreja”. Os divorciados “podem até comungar desde que não se casem outra vez”. A anunciada ‘revolução na Igreja’ que abre esperanças para muitos setores marginalizados acaba diluída nesse discurso que até o momento não renova, embora tenha sido tão exaltado pela mídia.
A cobertura jornalística foi um oba-oba desinformativo, uma agressão à inteligência e ao senso crítico das pessoas. A TV Globo levou horas elogiando a humildade do Papa, só porque V.S. disse: “Rezem por mim”, o que equivale a considerarem alguém bondoso por desejar “Bom Dia”.
O discurso sobre a pobreza foi simpático, mas a contradição é que a Jornada consumiu R$ 109 milhões em recursos públicos, e o Campo da Fé, mergulhado em lama, sequer foi usado. Louvo as palavras de V.S. sobre a prisão do Monsenhor Nunzio Scarano, que levou num jatinho para a Suíça 20 milhões de euros (58 milhões de reais), assim aprecio a luta de V.S, contra a rede de corrupção no Vaticano.
Creio na sinceridade do despojamento de V.S., mas se posso discordar digo que o que está em discussão não é a pobreza do Papa, mas a da Igreja, como instituição. Simpática também foi a menção à “água no feijon que chegou mais um”. Quando for ao Vaticano, pedirei que botem água no minestrone. Espero reciprocidade. Do sempre seu Taquiprati.
P.S. Espero que essa carta seja lida ao menos pelo alto funcionário do Seguro Social na Agência da Previdência Social de Maués (AM). Taquiprati, Pão Molhado! Ecco anche per te, Pane Tutto Bagnato!
(*) José Ribamar Freire Bessa é Graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1969). Especializado em Sociologie du Développement pelo IRFED, França (1971-72). Cursou o doutorado em Historia na École Des Hautes Études en Sciences Sociales, EHESS, França (1980-83). Obteve o título de Doutor em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2003). Foi professor no Programa de Maestria da Universidad Nacional de Educación, em Lima, da Faculdade de Educação da PUC-Peru e da Universidad Particular Ricardo Palma (1974-1976), bem como da Universidade Federal do Amazonas (1977-1986). Ministrou módulos em cursos de pós-graduação de várias universidades públicas: UFAM, UFAC, UFRr, UFF, UFG. Professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio), orienta pesquisas de doutorado e mestrado. Professor da Faculdade de Educação da UERJ, coordena o Programa de Estudos dos Povos Indigenas.
José Ribamar Freire Bessa
A Rádio Vaticano com certeza nunca tocou “A Carta” de Waldick Soriano, que figurava nas paradas de sucesso da Rádio Baré, em Manaus, nos anos 1960. Naquele tempo disse o rei do bolero aos seus discípulos: “Irmãos, sigam-me aqueles que dentre vós sofrem com dor de corno”. Embora desconhecida por cardeais, essa epístola cantada, nada canônica, repleta de queixumes e gemidos de amor, foi a inspiradora da missiva abaixo, que nunca será lida pelo seu destinatário.
No blog Taqui Pra Ti
Manaus, 4 de agosto de 2013
Ao Papa Francisco
Saudações!
Escrevo esta carta, mas não repare os senões, para dizer o que sinto com o desempenho de Vossa Santidade na Jornada Mundial da Juventude. Sinto-me estimulado por V.S. que em entrevista dentro do avião, na viagem de volta para a Itália, declarou:
- Eu gosto quando alguém me diz: ‘eu não estou de acordo’. Esse sim é um verdadeiro colaborador.
Conte comigo, Sumo Pontífice. Este vosso humilde servo quer colaborar, até porque tem sérias restrições a essa visita ao Brasil tão paparicada e incensada pelo turíbulo da mídia que trombeteou o tempo todo: “Ah, que belo”. Lembro aqui as palavras de V.S.: “Aqueles que dizem ‘Ah, que belo, que belo’ e depois dizem o contrário por trás, isso não ajuda”.
Desejoso de ajudar V.S., manifestei desacordo público no Taquiprati. Minha voz dissonante foi incompreendida e censurada por amigos, alunos, familiares, não escapou nem meu dileto sobrinho, conhecido como Pão Molhado, que não ouviu o Papa dizer aos jovens em Copacabana: “Não sejam covardes, metam-se, saiam para a vida. Saiam às ruas como fez Jesus”. Meu sobrinho, hoje poderoso analista do Seguro Social na Agência da Previdência Social de Maués (AM), foi mais papista do que o papa:
- Cala a boca, tio! Respeita o Papa! Vós sois ateu? – me disse, conjugando um verbo que coloca no mesmo saco três coisas tão diferentes como fé, religião e Igreja.
Esse aí não é o Pãozinho Molhado do titio, lá do bairro de Aparecida. Esse aí não é aquele menino que embalei na rede durante toda a infância, a quem fiz dormir cantando “Vento que balança as palmas do coqueiro”. Esse é o Pane Tutto Bagnato que puxa o saco do Papa e só não excomunga o tio porque não tem poder para isso. De qualquer forma, não hesitou em me impor aquela punição do Direito Canônico aplicada ao teólogo Leonardo Boff pelo Vaticano: o “silêncio obsequioso”.
Calei, engasgado, sobretudo diante do discurso de Boff e Frei Beto, a quem admiro e que fazem minha cabeça. Para eles, V.S. representa uma revolução na Igreja. É um discurso esperançoso. Mas o que foi dito por V.S. me faz temer pela expectativa criada.Fiquei mudo uma semana. Agora, estimulado por V.S., rompo o “silêncio obsequioso” para manifestar desapontamento quanto ao tratamento dado a índios, mulheres, gays, divorciados, movimento carismático e à própria teologia da libertação. Francamente, Santidade, quanta decepção!
Na organização das cenas da Via Sacra em Copacabana tinha tudo: cantor, artista global de telenovela, Ana Maria Braga de lençol branco e cabelo arrepiado e até o Louro José. Só não havia índios, eles que foram crucificados em toda a América, aos milhares, segundo Las Casas. Os organizadores da Jornada apagaram os índios até da encenação da primeira missa, desconsiderando relato de Frei Henrique e o quadro de Victor Meirelles. Sequer um ator fantasiado de índio apareceu naquele momento.
No outro dia, fora desse contexto, os Pataxó conseguiram furar o bloqueio e dar um cocar a V.S., mas foram folclorizados. Nenhuma palavrinha de V.S. em defesa da terra invadida, das culturas subterrâneas, das línguas silenciadas. O segmento mais injustiçado da sociedade brasileira e talvez o mais generoso merecia uma palavrinha do Papa, no mínimo para pagar a dívida histórica com eles contraída pela Santa Madre Igreja. Nada. Suspeito que a Igreja saiu perdendo com a ausência dos índios.
E as mulheres? O discurso de V.S. aqui está empapado de contradição. Reconhece num primeiro momento que “a mulher na igreja é mais importante que os bispos e os padres”, mas logo em seguida, perguntado sobre a ordenação de mulheres sacerdotes, como já fazem os anglicanos, nega tal importância: “Mulheres não podem celebrar missa. Essa porta está fechada. João Paulo afirmou isso como uma formulação definitiva”. Missa só pode ser celebrada por machos.
Quanto aos gays, pelo menos V.S. não agiu como César (Antônio Fagundes) quando descobriu que seu filho Félix (Mateus Solano) corria na floresta. Nem como o pastor Feliciano que quer curá-los. Felizmente o discurso homofóbico da carta do cardeal Bergoglio às freiras carmelitas não foi reiterado aqui. Já é um pequeno avanço: “se uma pessoa é gay, quem sou eu, por caridade, para julgá-la?“. Mas união homoafetiva nem pensar:“a posição é a da igreja. Sou filho da igreja”.
A posição da Igreja é a de que o homossexual deve ser acolhido com respeito e compaixão, desde que permaneça celibatário, dentro do armário. Nada de casamento. O padre Beto da Diocese de Bauru, excomungado por defender união gay, permanece excomungado. Gays são como os leprosos do Evangelho: aceita-se por misericórdia e não por reconhecimento da alteridade. Waldick Soriano parece mais cristão: “Espero que um dia / tudo se consiga / e a quem ama não seja negado / o direito de ser amado”.
A teologia da libertação, um raio luminoso na Igreja da América Latina, foi considerada por V.S. como “uma doença infantil já superada“. O movimento conservador de Renovação Carismática como “uma graça para a Igreja”. Os divorciados “podem até comungar desde que não se casem outra vez”. A anunciada ‘revolução na Igreja’ que abre esperanças para muitos setores marginalizados acaba diluída nesse discurso que até o momento não renova, embora tenha sido tão exaltado pela mídia.
A cobertura jornalística foi um oba-oba desinformativo, uma agressão à inteligência e ao senso crítico das pessoas. A TV Globo levou horas elogiando a humildade do Papa, só porque V.S. disse: “Rezem por mim”, o que equivale a considerarem alguém bondoso por desejar “Bom Dia”.
O discurso sobre a pobreza foi simpático, mas a contradição é que a Jornada consumiu R$ 109 milhões em recursos públicos, e o Campo da Fé, mergulhado em lama, sequer foi usado. Louvo as palavras de V.S. sobre a prisão do Monsenhor Nunzio Scarano, que levou num jatinho para a Suíça 20 milhões de euros (58 milhões de reais), assim aprecio a luta de V.S, contra a rede de corrupção no Vaticano.
Creio na sinceridade do despojamento de V.S., mas se posso discordar digo que o que está em discussão não é a pobreza do Papa, mas a da Igreja, como instituição. Simpática também foi a menção à “água no feijon que chegou mais um”. Quando for ao Vaticano, pedirei que botem água no minestrone. Espero reciprocidade. Do sempre seu Taquiprati.
P.S. Espero que essa carta seja lida ao menos pelo alto funcionário do Seguro Social na Agência da Previdência Social de Maués (AM). Taquiprati, Pão Molhado! Ecco anche per te, Pane Tutto Bagnato!
(*) José Ribamar Freire Bessa é Graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1969). Especializado em Sociologie du Développement pelo IRFED, França (1971-72). Cursou o doutorado em Historia na École Des Hautes Études en Sciences Sociales, EHESS, França (1980-83). Obteve o título de Doutor em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2003). Foi professor no Programa de Maestria da Universidad Nacional de Educación, em Lima, da Faculdade de Educação da PUC-Peru e da Universidad Particular Ricardo Palma (1974-1976), bem como da Universidade Federal do Amazonas (1977-1986). Ministrou módulos em cursos de pós-graduação de várias universidades públicas: UFAM, UFAC, UFRr, UFF, UFG. Professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio), orienta pesquisas de doutorado e mestrado. Professor da Faculdade de Educação da UERJ, coordena o Programa de Estudos dos Povos Indigenas.
José Ribamar Freire Bessa
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