Em entrevista ao jornal espanhol EL PAÍS, publicada no último domingo (11), o governador do Rio Grande do Sul, TARSO GENRO, analisa a crise da democracia representativa e defende a necessidade de criar novas formas de participação direta para revitalizar a democracia e evitar que essa crise acabe resultando em saídas autoritárias. “Haverá uma saída para a situação atual; poderá ser uma saída autoritária, uma quebra do Estado democrático ou uma saída para recompor a democracia”.
Joseba Elola – El País
Tarso Genro esboça um sorriso ao fazer esse relato. O ex-ministro da Justiça e da Educação, do governo Lula, de passagem por Lisboa para um seminário sobre participação cidadã, aparece com uma estrela do Partido dos Trabalhadores presa na lapela. O político brasileiro, de 66 anos, é o governador do Rio Grande do Sul desde 2011 e uma referência mundial para os defensores da “tecnopolítica”, da participação dos cidadãos nas decisões mediante tecnologias digitais. Seu compromisso com a voz da cidadania iniciou em 1990, quando era vice-prefeito de Porto Alegre. Naquele ano, colocou em marcha os orçamentos participativos, mediante os quais a população começou a influir na decisão de que rua devia ser asfaltada ou que devia receber postes de iluminação.
O esvaziamento da democracia representativa
Tarso Genro é um homem de discurso apaixonado, Movimenta as mãos enquanto fala, quer convencer. Seus gestos são de alguém que tem claro que o que diz é fruto do puro bom senso. Assume que as democracias parlamentares também têm “sua lógica autoritária e excludente”. E aprofunda sua análise: “A democracia representativa foi se esvaziando até se esvaziar completamente e gerar um afastamento completo entre Estado e sociedade. E a esquerda não se preocupou em renovar profundamente a democracia”.
Foi prefeito de Porto Alegre entre 1993 e 1997, e entre 2001 e 2002. Sua aposta na democracia direta foi crescendo no ritmo das tecnologias digitais. Este respeitado integrante do PT brasileiro, com 53 mil seguidores no Twitter, faz funcionar a pleno vapor seu Gabinete Digital, uma ferramenta que permite aos habitantes do Rio Grande do Sul pronunciarem-se sobre prioridades políticas, controlarem o ritmo das obras, responderem a consultas específicas ou pedirem prestações de contas diretamente ao governador por meio de um portal.
El País: Você considera que a democracia participativa será capaz de frear a crescente insatisfação com a classe política?
Tarso Genro: A questão é mais profunda do que uma insatisfação com a política. O que ocorre, na minha opinião, é que há uma visão consolidada em uma grande parte da população sobre a inutilidade da política. Houve uma captura da política por parte do poder financeiro globalizado. Os governos se movem por uma lógica que obedece a esta captura. Os partidos têm uma margem decisória muito pequena porque a lógica financeira do orçamento foi capturada pelas necessidades do pagamento da dívida. Que papel desempenham os orçamentos participativos neste contexto: eles supõem uma relegitimação permanente do poder político. Hoje a representação política perde seu valor no dia em que os membros de um governo assumem seus cargos e não podem cumprir seus programas. Eu creio que a democracia representativa foi superada na modernidade. A distância entre representante e representado se tornou absoluta. É preciso combinar democracia representativa com democracia direta.
El País: E como se sai desta captura da política por parte dos mercados financeiros?
Tarso Genro: A situação de Portugal é distinta da do Brasil. Em Portugal, a demanda mais radical que se pode fazer, em minha modesta opinião, é articular um bloco político e social que diga: “Não pagaremos esta dívida, queremos reorientá-la, reestruturá-la; queremos separar a dívida verdadeira e justa da dívida injusta e manipulada pelos mercados”.
El País: E como se define que parte dessa dívida é justa?
Tarso Genro: Isso pode ser feito mediante estudos de peritos. Existe uma dívida que é real, contratual; e outra dívida que é uma manipulação dos mercados. Isso envolve uma decisão política. Sem a renegociação dessa dívida não há saída democrática. Em meu país a situação é diferente. Nós temos que desenvolver um modelo de crescimento econômico e social que nos permita libertar-nos progressivamente de uma dívida que absorve 40% da arrecadação. São formas de ruptura com a situação atual que tem que ser negociadas no marco da democracia; se não conseguirmos fazer isso, vamos ter uma série de explosões sociais que não sabemos para onde vão nos conduzir.
El País: Além da insatisfação com a classe política, há também o problema da corrupção que afeta tanto o partido que atualmente governa a Espanha como a oposição, assim como também o PT, no brasil. A que atribui esse problema da corrupção que afeta a tantos responsáveis políticos?
Tarso Genro: Sempre haverá corrupção, em maior ou menor medida. Mas a que vemos agora em Estados e partidos é consequência de todas as políticas neoliberais que permitiram as desregulações, as privatizações e a captura do Estado por parte do capital financeiro. Sempre houve corrupção nos estados democráticos, mas não com a extraordinária dimensão dos últimos 30 anos. Atrás de cada negócio envolvido em uma privatização, aparece depois o processo de corrupção que estava em sua base.
El País: A corrupção se deve aos processos de privatização?
Tarso Genro: De modo determinante, sim. A explosão da corrupção se deve às privatizações, à privatização dos processos políticos e á ingerência brutal do capital no financiamento dos partidos para manter seus objetivos. De todo modo, é preciso reconhecer que jamais haverá um Estado puro, nem uma comunidade pura.
El País: O Estado de Bem-Estar que levou tantos anos para se construir...
Tarso Genro: Jamais será restaurado.
El País: Você acredita nisto?
Tarso Genro: O Estado de Bem-Estar foi produto de um contrato político entre capital e trabalho, que organizou um sistema de proteção. Mas esse sistema não foi acompanhado de políticas fiscais no mundo desenvolvido, de modo que a socialdemocracia teve que se endividar para manter as conquistas sociais. Devemos pensar em um novo contrato social que contemple um sistema de proteção que combata desigualdades sociais.
El País: Com a experiência que você tem com as fórmulas de participação direta dos cidadãos na política, o que recomendaria a um governante que quisesse abrir esse tipo de canais?
Tarso Genro: Para o governante este tipo de fórmula resulta exaustiva porque ele tem que participar diretamente dela para que sejam merecedoras de confiança. Mas é algo que precisa ser feito. É preciso combinar câmaras de concertação estratégica, participação presencial, participação digital e conselhos regionais específicos, que é onde estão as pessoas que conhecem bem a sua região. É fundamental prestar atenção nos Conselhos de Desenvolvimento Econômico e Social, que não decidem por maioria, mas sim por convergência, por concertação.
El País: Que perigo há de os processos de participação cidadã que vocês adotaram terminem resultando em um simples instrumento de marketing político?
Tarso Genro: Esse é um perigo permanente. Processos desta natureza só são duráveis e sustentáveis na medida em que a cidadania se apropria deles. São como qualquer outra conquista democrática: pode ser manipulada, pode ser bloqueada ou revalorizada. Aí entra em jogo o desafio da imaginação e da criatividade política. É preciso contar também com a criatividade política da própria cidadania.
El País: Para onde caminha o mundo em que vivemos? Você otimista ou pessimista em relação ao futuro?
Tarso Genro: Confesso que, aos 66 anos, sou mais pessimista que otimista. Mas acredito que é possível construir saídas dentro da democracia. Porque haverá uma saída para a situação atual; poderá ser uma saída autoritária, ou uma quebra do Estado democrático para uma situação indeterminada. Temos um terço de possibilidades de criar saídas para recompor a democracia com novas formas de participação direta. Se não construirmos caminhos nesta direção é possível que assistamos a explosões e transformações econômicas e sociais incontroláveis, que podem ser apropriadas por algumas formas de autoritarismo.
Tradução: Katarina Peixoto
Entrevista original em espanhol
O esvaziamento da democracia representativa
Tarso Genro é um homem de discurso apaixonado, Movimenta as mãos enquanto fala, quer convencer. Seus gestos são de alguém que tem claro que o que diz é fruto do puro bom senso. Assume que as democracias parlamentares também têm “sua lógica autoritária e excludente”. E aprofunda sua análise: “A democracia representativa foi se esvaziando até se esvaziar completamente e gerar um afastamento completo entre Estado e sociedade. E a esquerda não se preocupou em renovar profundamente a democracia”.
Foi prefeito de Porto Alegre entre 1993 e 1997, e entre 2001 e 2002. Sua aposta na democracia direta foi crescendo no ritmo das tecnologias digitais. Este respeitado integrante do PT brasileiro, com 53 mil seguidores no Twitter, faz funcionar a pleno vapor seu Gabinete Digital, uma ferramenta que permite aos habitantes do Rio Grande do Sul pronunciarem-se sobre prioridades políticas, controlarem o ritmo das obras, responderem a consultas específicas ou pedirem prestações de contas diretamente ao governador por meio de um portal.
El País: Você considera que a democracia participativa será capaz de frear a crescente insatisfação com a classe política?
Tarso Genro: A questão é mais profunda do que uma insatisfação com a política. O que ocorre, na minha opinião, é que há uma visão consolidada em uma grande parte da população sobre a inutilidade da política. Houve uma captura da política por parte do poder financeiro globalizado. Os governos se movem por uma lógica que obedece a esta captura. Os partidos têm uma margem decisória muito pequena porque a lógica financeira do orçamento foi capturada pelas necessidades do pagamento da dívida. Que papel desempenham os orçamentos participativos neste contexto: eles supõem uma relegitimação permanente do poder político. Hoje a representação política perde seu valor no dia em que os membros de um governo assumem seus cargos e não podem cumprir seus programas. Eu creio que a democracia representativa foi superada na modernidade. A distância entre representante e representado se tornou absoluta. É preciso combinar democracia representativa com democracia direta.
El País: E como se sai desta captura da política por parte dos mercados financeiros?
Tarso Genro: A situação de Portugal é distinta da do Brasil. Em Portugal, a demanda mais radical que se pode fazer, em minha modesta opinião, é articular um bloco político e social que diga: “Não pagaremos esta dívida, queremos reorientá-la, reestruturá-la; queremos separar a dívida verdadeira e justa da dívida injusta e manipulada pelos mercados”.
El País: E como se define que parte dessa dívida é justa?
Tarso Genro: Isso pode ser feito mediante estudos de peritos. Existe uma dívida que é real, contratual; e outra dívida que é uma manipulação dos mercados. Isso envolve uma decisão política. Sem a renegociação dessa dívida não há saída democrática. Em meu país a situação é diferente. Nós temos que desenvolver um modelo de crescimento econômico e social que nos permita libertar-nos progressivamente de uma dívida que absorve 40% da arrecadação. São formas de ruptura com a situação atual que tem que ser negociadas no marco da democracia; se não conseguirmos fazer isso, vamos ter uma série de explosões sociais que não sabemos para onde vão nos conduzir.
El País: Além da insatisfação com a classe política, há também o problema da corrupção que afeta tanto o partido que atualmente governa a Espanha como a oposição, assim como também o PT, no brasil. A que atribui esse problema da corrupção que afeta a tantos responsáveis políticos?
Tarso Genro: Sempre haverá corrupção, em maior ou menor medida. Mas a que vemos agora em Estados e partidos é consequência de todas as políticas neoliberais que permitiram as desregulações, as privatizações e a captura do Estado por parte do capital financeiro. Sempre houve corrupção nos estados democráticos, mas não com a extraordinária dimensão dos últimos 30 anos. Atrás de cada negócio envolvido em uma privatização, aparece depois o processo de corrupção que estava em sua base.
El País: A corrupção se deve aos processos de privatização?
Tarso Genro: De modo determinante, sim. A explosão da corrupção se deve às privatizações, à privatização dos processos políticos e á ingerência brutal do capital no financiamento dos partidos para manter seus objetivos. De todo modo, é preciso reconhecer que jamais haverá um Estado puro, nem uma comunidade pura.
El País: O Estado de Bem-Estar que levou tantos anos para se construir...
Tarso Genro: Jamais será restaurado.
El País: Você acredita nisto?
Tarso Genro: O Estado de Bem-Estar foi produto de um contrato político entre capital e trabalho, que organizou um sistema de proteção. Mas esse sistema não foi acompanhado de políticas fiscais no mundo desenvolvido, de modo que a socialdemocracia teve que se endividar para manter as conquistas sociais. Devemos pensar em um novo contrato social que contemple um sistema de proteção que combata desigualdades sociais.
El País: Com a experiência que você tem com as fórmulas de participação direta dos cidadãos na política, o que recomendaria a um governante que quisesse abrir esse tipo de canais?
Tarso Genro: Para o governante este tipo de fórmula resulta exaustiva porque ele tem que participar diretamente dela para que sejam merecedoras de confiança. Mas é algo que precisa ser feito. É preciso combinar câmaras de concertação estratégica, participação presencial, participação digital e conselhos regionais específicos, que é onde estão as pessoas que conhecem bem a sua região. É fundamental prestar atenção nos Conselhos de Desenvolvimento Econômico e Social, que não decidem por maioria, mas sim por convergência, por concertação.
El País: Que perigo há de os processos de participação cidadã que vocês adotaram terminem resultando em um simples instrumento de marketing político?
Tarso Genro: Esse é um perigo permanente. Processos desta natureza só são duráveis e sustentáveis na medida em que a cidadania se apropria deles. São como qualquer outra conquista democrática: pode ser manipulada, pode ser bloqueada ou revalorizada. Aí entra em jogo o desafio da imaginação e da criatividade política. É preciso contar também com a criatividade política da própria cidadania.
El País: Para onde caminha o mundo em que vivemos? Você otimista ou pessimista em relação ao futuro?
Tarso Genro: Confesso que, aos 66 anos, sou mais pessimista que otimista. Mas acredito que é possível construir saídas dentro da democracia. Porque haverá uma saída para a situação atual; poderá ser uma saída autoritária, ou uma quebra do Estado democrático para uma situação indeterminada. Temos um terço de possibilidades de criar saídas para recompor a democracia com novas formas de participação direta. Se não construirmos caminhos nesta direção é possível que assistamos a explosões e transformações econômicas e sociais incontroláveis, que podem ser apropriadas por algumas formas de autoritarismo.
Tradução: Katarina Peixoto
Entrevista original em espanhol
Nenhum comentário:
Postar um comentário