A
importância de Dom Hélder Câmara e a Igreja de Francisco
Para além dos muros da Igreja Católica, o
trabalho de Dom Hélder Câmara alcança grandes proporções, atuando em especial
pela promoção e respeito ao ser humano...
A comunhão entre a vida de Dom Hélder Câmara e suas pregações é
seu maior trunfo contra os que o acusam de ter sido demagogo. A afirmação é da
professora Lucy Pina Neta, historiadora do Instituto Dom Helder Câmara (IDHeC), sediado em Recife, Estado
de Pernambuco. Em entrevista à Adital, ela discute o contexto sociopolítico e
cultural que permeou a atuação de Dom Hélder e que fez dele uma referência
ainda bastante atual para as novas gerações.
Segundo ela, para além dos
muros da Igreja Católica, o trabalho de Dom Hélder alcança grandes proporções,
atuando em especial pela promoção e respeito ao ser humano. Tal postura fez com
que o sacerdote deixasse uma marca indelével no serviço ao próximo, em defesa
dos direitos básicos e dos mais necessitados, no qual se considera que existe a
presença de Jesus Cristo.
A historiadora destaca que
seu trabalho nos bastidores ajudou a tecer a trama que deu uma nova roupagem à
Igreja Católica, articulando diferentes realidades sociais, políticas e
culturais. Por isso, a figura de pastor que se soma às ovelhas em fraquezas e virtudes
é a que mais inspira as atuações sociais e pastorais. Dom Helder, para Lucy
Pina Neta, contribuiu para que, hoje, o Papa Francisco possa reviver um modelo
de Igreja mais humano e verdadeiramente cristão.
ADITAL – O que a figura de
Dom Hélder Câmara representa, hoje, dentro e fora da Igreja? Quais são seus
aspectos mais marcantes?
Lucy Pina - Dom Hélder é atual.
Embora, para compreendê-lo, é sempre necessário lê-lo em seu contexto
sociopolítico-cultural e, sobretudo, eclesial. Isso nos leva a reconhecer o
quão visionário (ou profético) ele foi, desde suas primeiras atuações sociais
até os últimos anos. A coerência entre sua vida e suas pregações é seu maior
trunfo, contra os que o acusam de ter sido demagogo. Dentro da Igreja, uma
lembrança recorrente associada a seu nome é a colegialidade, um modelo de
gestão democrática que tem recebido certa notoriedade com o pontificado do Papa
Francisco.
A colegialidade que ele
traz de sua formação no Seminário da Prainha [em Fortaleza, Estado do Ceará] e
que ele consolida durante suas experiências sociais e pastorais em todas as
fases de sua vida, que ganha forma institucional com a ideia da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), se pensarmos a Igreja brasileira
e os trabalhos realizados durante as sessões do Concílio Vaticano II [realizado
em 1962] com os padres conciliares da América do Sul, Ásia, África e parte da
Europa, quando tomamos a dimensão da Igreja Católica mundial. Isso não esgota,
absolutamente, sua representação, mas são exemplos claros da colegialidade a
que me referi no começo, como aquela que classifico como a marca ou, melhor
dito, como a memória mais recorrente associada à imagem de Dom Hélder.
Para além dos muros da
Igreja, o trabalho do Dom Hélder alcança grandes proporções, seu empenho pela
promoção e respeito ao ser humano — aqui se entenda a criatura criada à imagem
e semelhança de seu Criador, não importando credo, cor, raça, nacionalidade ou
qualquer outra forma de classificação. Chama a atenção um aspecto próprio da
formação recebida no Seminário da Prainha, à época dirigido por padres
lazaristas, seu trabalho social.
Esses trabalhos produziram
no jovem Hélder uma marca indelével, como ele mesmo dizia, “padre não existe no
vácuo. Só existe padre para a glória de Deus, servindo ao próximo”. Este
serviço consistiu em resguardar a dignidade humana, no respeito a seus direitos
básicos, na luta em defesa dos mais necessitados, no amor ao Cristo que vive no
pobre, na necessidade sempre presente de lembrar, a todo instante, a presença
viva de Jesus.
Nesse sentido,
justificam-se as memórias feitas aos seus trabalhos junto aos operários e
professores católicos, no Ceará, à frente da Cruzada de São Sebastião e do
Banco da Providência, no [Estado do] Rio de Janeiro, e todos os seus esforços
empenhados em acudirem as vítimas das cheias do rio Capibaribe, trabalhadores
rurais e presos políticos, em Olinda e Recife [Pernambuco].
ADITAL – Você poderia
falar sobre a importância da atuação de Dom Hélder durante o Concilio Vaticano
II?
Lucy Pina - Não acredito ser
possível escrever a história do Concílio sem, ao menos, mencionar o nome de Dom
Hélder. Embora ele nunca tenha falado durante as sessões conciliares, seu
trabalho nos bastidores ajudou a tecer a trama que deu uma nova roupagem à
Igreja Católica. Seu empenho pode ser dividido em três fases distintas e
complementares: os trabalhos pré-conciliares, como consultor da Comissão dos
Bispos e do Governo das Dioceses, e na organização do episcopado brasileiro
para a viagem à Roma, providenciando documentos pessoais e passagens para que a
Igreja do Brasil comparecesse com o maior número possível de padres
conciliares.
Depois, já durante o
Concílio, seu trabalho é classificado como o de um articulador de bastidores.
Entre as sessões conciliares, Dom Hélder promoveu reuniões menores na
residência do Episcopado brasileiro em Roma, a Domus Mariae. Seu objetivo era
trazer até os padres e bispos, não só os brasileiros, mas todos os que
assistiam a essas reuniões, os melhores elementos para discutir a nova proposta
de Igreja anunciada por João XXIII e seguida por Paulo VI, corroborando a tese
de que, além de um formador de espíritos, Dom Hélder também foi um formador de
intelectos.
É claro que seu trabalho
está para além dessas reuniões. Ele teceu, não sozinho, uma teia de relações,
que possibilitou aos episcopados dos cinco continentes pôr sobre a mesa seus
problemas e, juntos, construírem suas soluções. Este é um assunto que,
naturalmente, não se esgota nessas palavras (…). Mas, em linhas gerais, eu
considero essas duas marcas, a colegialidade e capacidade de articular com
diferentes realidades sociais, políticas e culturais.
ADITAL – Qual a influência
do Pacto das Catacumbas em sua vida religiosa e pastoral?
Lucy Pina - O Pacto [documento
redigido e assinado por 40 padres participantes do Concílio Vaticano II, no dia
16 de novembro de 1965, pouco antes da conclusão do Concílio, que continha 13 itens,
com os signatários comprometendo-se a levarem uma vida de pobreza, rejeitar
todos os símbolos ou privilégios do poder e a colocar os pobres no centro do
seu ministério pastoral, entre outros pontos] se traduziu na experiência de
vida de Dom Hélder. Em suma, o documento fala sobre a necessidade de uma Igreja
pobre e servidora, que começa a partir de seus bispos, que devem abrir mão do
título de “Príncipes da Igreja”, e, por conseguinte, de tudo o que ele
representa: palácios, carros oficiais, contas em bancos, para citar os exemplos
mais recorrentes.
Por isso, a primeira
imagem que vem a cabeça quando pensamos em Dom Hélder é a de um bispo franzino,
de batina bege, com uma cruz simples pendurada no pescoço. Isso o traz para
perto de seu rebanho; nele, a figura de admistrador eclesiastico é ofuscada
pela, sempre mais aparente, figura de pastor, que se soma às suas ovelhas em
fraquezas e em virtudes.
Outra marca dessa vivência
é a forma como nós o chamamos: “Dom”. Assim, simples, uma vez perguntado porque
as pessoas o chamavam assim, ele respondeu que alguém nos soprou que “dom” era
uma fineza, um presente de Deus, e que ele era nosso presente. Quiçá ele
tivesse razão; em obscuros anos de repressão, ele tenha sido realmente essa
luz, esse dom para a Igreja do Brasil.
Se pensarmos do ponto de
vista pastoral-social, caímos num campo bastante amplo. Dom Hélder, ao propor a
reforma agrária a governos e até a segmentos da Igreja, não a faz apenas como
uso de um tema que começava a se tornar popular, mas como alguém que já havia
experimentado os alcances práticos, fazendo ele mesmo, seja com terras da
Arquidiocese de Olinda e Recife, seja destinando dinheiro de prêmios que ganhou
pelo mundo, para a compra de áreas agrícolas, relativamente próximas as
cidades, e as redistribuindo entre os trabalhadores do campo. O Pacto [das
Catacumbas] se tornou uma espécie de segunda regra de vida!
ADITAL – Como Dom Hélder
se relaciona com a Teologia da Libertação?
Lucy Pina - Eu, sinceramente,
não consigo ver Dom Hélder como um teólogo da libertação. Mas reconheço que há,
sim, traços do modelo de Igreja que ele viveu, desejou e sobre o qual escreveu
que permeiam a teologia da libertação. Mas não saberia lhe dizer mais sobre o
tema.
ADITAL – Por que a
espiritualidade helderiana vive e é significativa e atual ainda hoje?
Lucy Pina - Há sobre Dom Hélder
dois tipos de memórias: uma afetiva, geralmente associada ao grupo de pessoas
que viveram com ele ou próximas a ele. O que reforça um saudosismo do bom
pastor, de sua forma humanizada de experiência de igreja. Esse tipo de memória
é importante; ela faz com que as gerações que não conviveram fisicamente com
ele se interessem, que o busquem.
Grosso modo, é como se
fizessem uma grande propaganda boca a boca da melhor experiência que já tiveram
e, logo, a curiosidade brota e daí o interesse sempre recorrente pela figura de
Dom Hélder. A outra memória vem, exatamente, desse grupo que se aproxima pelo
“ouvir falar” e encontra a coerência entre as memórias, a documentação e a vida
de Dom Hélder.
Seu maior trunfo para
continuar atual é que ele foi real, foi verdadeiro, seus pecados são
confessados ou, melhor dito, assumidos; suas fraquezas são humanas, seu amor
pela Igreja se traduz num amor que vê a Cristo no irmão. Por isso sua
espiritualidade não “cai de moda”.
ADITAL – A chegada de
Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, para ocupar a chamada “cadeira de São
Pedro” é um impulso para o resgate e fortalecimento das ideias defendidas por
Dom Helder?
Lucy Pina – Particularmente, eu tenho
muitas esperanças! Acho que Francisco, à sua maneira e a seu tempo, tem
mostrado que é possível reviver, em parte, o modelo de Igreja que Dom Hélder
viveu na segunda metade do século passado. Fico feliz por minha geração, que
lotou a Praia de Copacabana [no Rio] para ouvir as palavras do Santo Padre, que
se inspira em Francisco para uma Igreja mais pobre, mais servidora, mais humana
e mais próxima. Espero que ele viva por muitos anos para alcançar fazer as
transformações possíveis dentro da Igreja.
ADITAL – O livro “Novas
Utopias”, ditado pelo espírito de Dom Hélder e psicografado pelo médium Carlos
Pereira, da Sociedade Espírita Ermance Dufaux, de Belo Horizonte (Estado de
Minas Gerais) é reconhecido como uma obra do religioso?
Lucy Pina - Pelos adeptos da
doutrina espírita e pela Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT.
ADITAL – Alguns
historiadores e jornalistas descrevem Dom Hélder não apenas como uma figura
popular, mas sim exibicionista, que gostava de estar em frente às lentes dos
fotógrafos, além de ser portador de uma vaidade brutal. De onde vem isso?
Lucy Pina – Talvez eu não esteja apta
a responder esta última pergunta, pois não vejo Dom Hélder dessa forma. O que
posso lhe dizer é que a censura nos meios de comunicação causou a ele muita
pena, que as notícias falaciosas o lastimaram; e que não poder respondê-las o
fez sofrer. Apesar dessa fase, sua relação com os meios de comunicação foi
respeitosa; ele sempre soube o alcance de um microfone e uma câmera. Por isso,
ao fazer uso deles, tinha muito cuidado. Mas a vaidade é própria de nossa
condição humana e algumas coisas que contam sobre ele, se não são verdade, ele
as toma como anedotas para ensinar alguma coisa.
(Natasha
Pitts, Adital. Colaborou Marcela Belchior)
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