quinta-feira, 18 de dezembro de 2014


Pequeno manual de
guerrilha semiótica 
antimídia

Wilson Roberto Vieira Ferreira      Cinema Secreto: Cinegnose
É inacreditável que depois de quase um século de legado em instrumentos, estratégias e pesquisas na Ciência da Comunicação, a única reposta possível do PT à agenda imposta pela grande mídia seja a articulação de um “gabinete de crise”. Administrar os estragos provocados pelas explosões das bombas semióticas apenas legitima e dá pertinência à pauta diuturnamente elaborada pelas redações dos grandes veículos. O PT repete o mesmo erro estratégico das esquerdas em todos os tempos: pensar a comunicação ainda de forma tradicional (iluminista) como uma questão de Fonte de transmissão dentro da cadeia de comunicação. As bombas semióticas demonstraram que a grande mídia já está à frente com o chamado “softpower” – não mais tentar convencer ou persuadir, mas agora criar pânico e moldar percepções.  Guerrilhas semióticas são a única estratégia possível frente ao cerco das grande mídias: criar uma contra-agenda atuando na recepção e nos códigos. Nessa postagem, um esboço inicial de uma guerrilha no interior dos processos de comunicação. 

A notícia de que o ex-presidente Lula articula a criação de um “gabinete de crise” para enfrentar o impacto das denúncias da Operação Lava Jato é tudo aquilo que a grande mídia esperava ouvir: um “gabinete de crise” apenas vai retroalimentar a agenda criada diariamente pelos colunistas e editoriais, legitimando a pauta pré-estabelecida, como se o PT fosse um bom adversário que aceita as regras do jogo.

Foi também noticiado que o gabinete será formado por um “grupo de notáveis” (sempre os “notáveis”... Marina Silva também pretendia montar um ministério com “notáveis”...).

É inacreditável que depois de quase um século de pesquisas nas ciências da comunicação, (desde a década de 1920 com o ponta pé inicial dado pela Escola de Frankfurt, Escola de Chicago e Teoria Hipodérmica) que resultaram em tantos instrumentos e estratégias disponíveis para ataques, defesas e contra-ataques, a única resposta que um governo que vai para 16 anos no poder seja a de legitimar uma manjada estratégia de criação de sucessivas agendas de crises – mensalão, a inflação dos tomates assassinos, o gigante que acordou, e agora o Lava Jato.

Rui Falcão, presidente do PT: o partido é o
oponente ideal para a grande mídia?
Talvez por que a grande mídia saiba que tem no PT um ótimo oponente que se limita a denunciar a onipresença dos monopólios midiáticos, vitimizar-se pelas “manipulações” das notícias  e aqui e ali dar respostas tímidas através de notas na esperança de que “blogueiros sujos” façam a diferença.

O PT é um ótimo oponente de qual jogo? O jogo do “pinball político” (discutido em postagem anterior – clique aqui) que certamente o gabinete de crise apenas retroalimentará, ao dar legitimidade e pertinência a hierarquia das pautas que a grande mídia impõe.

Bombas semióticas e agenda midiática

Desde as grandes manifestações do ano passado, esse blog tem feito uma série de postagens sobre o fenômeno das bombas semióticas que a grande mídia vem detonando na opinião pública. A reação da estratégia política e de comunicação do governo em todos os episódios foi reativa: apenas controle de danos, prática que o tal “gabinete de crise” parece querer tornar mais sistemática e “estratégica”.

Nessas sucessivas análises feitas pelo blog Cinegnose, percebemos que as bombas semióticas não são “conteudistas”: não visam a persuasão, doutrinação ou convencimento por meio das palavras ou uso da retórica ideológica. Elas almejam o pânico e a moldagem da percepção com a finalidade de criar o imaginário da espiral do silêncio – a percepção sem nenhuma base lógica, estatística ou informativa de que existe uma voz da maioria, intimidando qualquer pensamento divergente. E o que pensa a “maioria”? Que o País é uma merda, e por isso está à beira do abismo!

Uma percepção imaginária imposta por uma agenda, não obstante o resultado das urnas terem demonstrado o contrário: de que não há “maioria” e, muito menos, país dividido, como já foi demonstrado em muitas análises do mapa dos resultados das últimas eleições.

Essas bombas semióticas somente conseguem atingir seus propósitos com a consolidação de uma agenda imposta pela grande mídia, os grandes temas e escândalos do momento. A agenda é o meio condutor das 'ondas de choque' – sobre esse conceito clique aqui.

Sendo bombas semióticas, são de natureza estritamente simbólica, imaginária ou, se quiser, psicológicas. Moinhos de vento, análogos àqueles contra os quais Dom Quixote enfrentava arrastando consigo o infeliz Sancho Pança que nada entendia.

Como então pular fora desse jogo mental, dessa cilada cognitiva perversa? Contra bombas, somente guerrilhas. Guerrilhas semióticas: a criação de uma contra-agenda, não a partir do polo emissor da cadeia da comunicação (as mídias), mas atuando no ponto de chegada – a recepção dos códigos. Portanto, dentro dos limites naturais de espaço de uma postagem, vamos traçar um esboço inicial dessa estratégia de guerrilha semiótica.

Umberto Eco e a “guerrilha semiológica”

Em 1967, o pesquisador Umberto Eco publicou um pequeno texto que se tornou um clássico na área de Comunicação: “Guerrilha Semiológica”. Pouco compreendido na extensão das possíveis conclusões das suas teses, acabou incrivelmente no esquecimento. Acreditem! Embora seja um texto de 47 anos atrás, continua com insights bem impactantes.  Vejamos o que Eco tem a nos dizer:
“Um partido político que saiba atingir minuciosamente todos os grupos que assistem à televisão, levando-os a discutir a mensagem que recebem pode mudar o significado que a Fonte atribuíra a essa mensagem. Uma organização educativa que conseguisse fazer um determinado público discutir a mensagem que está recebendo pode inverter o significado dessa mensagem. Ou mostrar que a mensagem pode ser interpretada de diversos modos” (ECO, Umberto “Guerrilha Semiológica” In: Viagens na Irrealidade Cotidiana, RJ: Nova Fronteira, 1984, p. 174).
Umberto Eco nos diz que “os estudiosos e educadores do amanhã” deveriam abandonar os estúdios de televisão e redações de jornais para combater “uma guerrilha porta a porta”.

Umberto Eco: a questão da comunicação é
a recepção e o código
Eco parte do senso comum de que para controlar o poder não basta o exército e a polícia. É necessário o controle e a propriedade dos meios de comunicação. Naturalmente, políticos, comunicadores e cientistas de comunicação de Esquerda passaram a acreditar que a única forma de combate possível é contra a mídia ou a Fonte da comunicação, seja através de uma legislação progressista das mídias ou pela luta de contra-hegemonia no interior das redações e estúdios das grandes mídias.

O autor não ignora que essa estratégia possa dar resultados a quem aspira o sucesso político e econômico ou esteja numa posição dominante, porém será pouco útil para aquele que estiver à margem desse poder. Sua luta em conquistar a Fonte da Comunicação apenas reforçará o poder e legitimidade dessa mesma fonte: a grande mídia.

Da guerrilha semiológica à semiótica

Por isso, Eco propõe a “guerrilha semiológica”, ainda dentro de um quadro bem conteudista ou iluminista: o agentes dessa estratégia  sentariam na primeira fila junto à cadeira do líder de um grupo que veja um filme, leia um jornal ou veja TV e fazer uma “recepção crítica”. Mostrar que é possível “diferentes interpretações”, desconstruindo as mensagens.

Porém, hoje nos defrontamos com um cenário mais complexo, com bombas semióticas e engenharias de opinião pública baseadas em construções de agendas que impõem hierarquias de temas tidos como pertinentes para a sociedade.

Embora acompanhemos o insight de Umberto Eco (uma ação guerrilheira que mire o campo da Recepção e do Código), uma ação de guerrilha simbólica deve ser mais ampla do que uma ação semiológica – concentrada apenas na recepção crítica de conteúdos. Essa ação deve ser semiótica, no sentido mais amplo de criar uma contra-agenda, agindo na base da Recepção.

Por isso, uma guerrilha semiótica deveria ser organizada em ações de curto, médio e longo prazo.

1. Curto prazo: intervindo na Recepção


Uma contra-agenda não se faz respondendo ao inimigo em seu próprio campo e nos seus próprios termos. Nunca a resposta dada com o mesmo destaque na grande mídia (reposta em rede nacional ou na primeira página do veículo) terá o mesmo resultado da bomba semiótica anteriormente detonada. A recepção dispersiva há décadas constatada em receptores de mídias de massas (Lazarsfeld nos anos 1950 falava em nove em cada dez receptores) torna os espectadores predispostos muito mais aos efeitos de pânico dos petardos semióticos do que a reações posteriores por meio de respostas conteudísticas que apelem a argumentação na tentativa de provar a verdade dos fatos.

Por isso são necessárias intervenções em locais públicos (instalações,flash mobs etc.) seguindo a mesma lógica do pânico: displays, telões, caixas de som, painéis em praças, calçadões, galerias comerciais, etc. Tais ações poderiam provocar debates instantâneos, rápidos. O debate e a informação seriam efeitos residuais, já que o mais importante e o impacto público da contra-agenda.

Tudo pensado em uma logística leve, rápida: montar e desmontar, nômade.

 E por que não, táticas inspiradas no chamado “marketing invisível”: guerrilheiros semióticos anônimos se misturam a rodas de conversas em botecos, balcões, pontos de ônibus, metrôs, trens para “sentir” ambientes e conversas para intervir com tiradas, informações, dados ou até mesmos slogans, trocadilhos etc.

Se os pesquisadores da hipótese da Agenda Setting comprovaram o poder das mídias em pautar os temas das conversas interpessoais, é nesse campo que a guerrilha semiótica deve agir na construção da contra-agenda.

2. Médio prazo: apropriação da agenda da grande mídia


Ampliar uma das melhores estratégias que a campanha de Dilma Rousseff colocou em ação nas últimas eleições: se apropriou do moralismo da pauta da corrupção – todas as denúncias de corrupção somente teriam sido possíveis por que em seu governo não existiria um “engavetador geral da República”. A grande mídia frequentemente noticiaria escândalos porque o governo teria criado condições (Polícia Federal republicana, por exemplo) para que tudo fosse noticiado.

As intervenções em curto prazo (vide acima) devem transformar essa ação de médio prazo em uma contra-agenda. Tornada sistemática, essa ação levaria ao pânico os colunistas e editores da grande mídia que viriam suas teses serem confundidas com as do próprio Governo.

3. Longo Prazo: desconstrução do Código

Desde o domínio das mídias audiovisuais até as atuais tecnologias de convergência como a Internet, o problema do código passou a ser fundamental na comunicação A maioria de nós é analfabeto, seja visual ou digital – somos usuário e espectadores, vamos ao cinema, assistimos à TV, manipulamos software e navegamos na Internet, mas apenas manipulamos efeitos de conhecimento. Em outras palavras, usufruímos de produtos culturais e ferramentas digitais, mas não conhecemos suas sintaxes, gramáticas e morfologias.

Na linguagem audiovisual, edição, decupagem, planos, montagem, elipses etc.; e na digital a sintaxe HTML, CSS, DHTML etc., somos analfabetos. Aprendemos apenas a consumir e usar seus produtos, mas nada sabemos sobre como eles são construídos. Portanto, somos presas fáceis de manipulações, invasão de privacidade, etc.

Se observarmos um leigo manipular uma filmadora em uma festinha infantil, percebemos o seu analfabetismo visual: liga a câmera e passa a filmar tudo em plano sequência, sem noção de planos, sintaxe ou roteirização.

Esse analfabetismo visual esteve por trás, por exemplo, da famosa edição tendenciosa do Jornal Nacional da TV Globo em 1989 do último debate entre Collor e Lula – para o leigo, a existência da edição e seleção dos planos passa despercebida, passando a acreditar que a imagem é muito mais verdadeira do que um texto noticioso em um jornal.

Por isso, seria urgente inserir na estrutura curricular, desde o ensino fundamental, as noções de sintaxe, gramática e morfologia audiovisual. A partir da sintaxe das histórias em quadrinhos, avançaria-se para a linguagem do story boardaté chegar ao roteiro e toda morfologia audiovisual de cinema e TV.

As imagens perderiam a inocência com essa alfabetização visual generalizada. As pessoas perceberiam que as imagens não são constituídas de um único sentido. Como sugeria Umberto Eco no texto Guerrilha Semiológica, veríamos que as mensagens podem ser desconstruídas e reinterpretadas em uma nova sintaxe, como se a mídia fosse um gigantesco “efeito Kuleshov” – experiência feita pelo teórico e cineasta russo Lev Kuleshov mostrando que a interpretação que o espectador faz de uma cena pode ser alterada através da montagem e justaposição arbitrária dos planos.

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