We dont't need no
tought control
(Não precisamos de nenhum controle do pensamento)
Perdoai. Mas eu preciso ser outros(Manoel de Barros).
Ainda estava atordoado. Devia voltar para casa ou pegar o primeiro ônibus e desaparecer no mundo ? Acreditar na Palavra ou no discernimento dos pais ? De manhã, o susto. Obedecendo à mais nova lei municipal, sua escola exigia que os alunos lessem todos os dias um versículo da Bíblia. O comando foi claro: turma, hoje leremos Deuteronômio, 21, 18 a 21. Os amigos ateus, candomblecistas e muçulmanos não tiveram refresco, eram ordens da autoridade municipal, sem exceções. Em uníssono, muitos engolindo em seco, balbuciaram: Quando tiver um homem um filho contumaz e rebelde, que não obedece à voz de seu pai e à voz de sua mãe, e ainda que o castiguem não lhes dá ouvidos, pegarão nele seu pai e sua mãe e o levarão aos anciãos de sua cidade e à porta do tribunal de seu lugar, e dirão aos anciãos de sua cidade: Este, nosso filho, é contumaz e rebelde, não obedece a nossa voz; é glutão e beberrão. E o apedrejarão todos os homens de sua cidade, e morrerá; e eliminarás o mal do meio de ti; e todo Israel ouvirá e temerá. Aquela revelação era terrível. Ele adorava comer, bebericava aqui e ali, e, espírito rebelde, desafiava conceitos e valores dos pais, discutindo quase todo santo dia. Para o Velho Testamento, era um criminoso, merecia a morte. Sentado no meio fio, colocou a cabeça entre as mãos, afundado na dúvida, na ignorância humana e na tutela religiosa.
Quem dera fosse ficção. A Câmara de Vereadores de Nova Odessa, interior de São Paulo, acaba de aprovar projeto obrigando alunos da 1ª à 5ª série a ler um versículo da Bíblia por dia. A obrigatoriedade, que precisa de sanção do prefeito, pode atingir 4 mil alunos. A argumentação do autor do projeto é típica da investida religiosa contra os espaços públicos. Diz o vereador que patrocinou a marotagem: “O projeto não se contrapõe à ideia do Estado laico e tem o objetivo de melhorar a capacidade de leitura dos alunos”. Por trás da intenção razoável, se esconde o proselitismo que vê na Bíblia a única fonte segura dos “bons costumes”. Se o objetivo real fosse mesmo incentivar a leitura, não faltariam bons autores e bons livros, destes que marcam a vida dos leitores. Que tal, por exemplo, circular a obra do João Ubaldo Ribeiro, grande cronista e literato apaixonado pelo Brasil e sua língua ?
Infelizmente, Nova Odessa está longe de ser um gueto isolado no meio do nada. Na maioria das escolas públicas brasileiras, para passar de ano, os alunos têm que rezar. Dados do Ministério da Educação mostram que, em 51% dos colégios, há o costume de se fazer orações ou cantar músicas religiosas. Embora a Lei de Diretrizes e Bases exija que o ensino de religião na rede pública seja facultativo, em quase metade dos estabelecimentos (49%) a presença nas aulas desta disciplina é obrigatória. Para agravar o quadro, em 79% das escolas não há atividades alternativas para estudantes que não queiram assistir às aulas. O resultado dessa agressão é um politraumatismo mental. A arregimentação confessional nas escolas, feita à sombra do Estado, gera preconceitos, marginaliza estudantes, consagra uma ilegalidade. Uma adolescente de 13 anos, candomblecista, frequenta uma escola municipal em São João de Meriti. Tem três professoras evangélicas, que não se envergonham de, dentro do espaço educacional, desqualificá-la. É obrigada a frequentar as aulas de religião e fazer orações. Quando se recusa, é expulsa de sala e mandada para a direção. O que faz a diretora? Dá razão à professora! No município de Engenheiro Paulo de Frontin, o pai de um jovem denunciou que o filho, estudante do 9º ano de um Ciep, era obrigado a rezar o Pai-Nosso todos os dias na escola. Detalhe: tratava-se de uma família judia. O adolescente, constrangido, acabou se recusando a voltar às aulas. Alegação da inspetora: o Pai-Nosso é uma oração universal (sic). É essa a sociedade generosa, plural e tolerante que se diz existir no Brasil? Há uma guerra subterrânea contra a juventude, travada em nome de Deus (qual deles?), com a omissão criminosa do Estado. A catequese em curso é um passo gigantesco rumo ao obscurantismo.
A encrenca vai além das escolas. Certo dia, indo para uma reunião na Assembleia Legislativa do Rio, esbarrei com um cartaz no elevador do prédio. Convocava para um culto evangélico nas dependências daquela Casa do Povo (desculpem por essa denominação meio esculhambada, obsoleta). Fuça daqui, assunta dali, acabei descobrindo que eventos religiosos são rotina na Alerj. Cultos evangélicos acontecem todas as quartas-feiras há pelo menos nove anos! Animados com a farra evangélica, os católicos já estão agendando eventos. Cultos e missas, que deveriam se circunscrever a templos e igrejas, estão vazando para o espaço legislativo, ferindo os princípios básicos do Estado laico. Mais do que inadequada e inconstitucional, a prática ajuda a despolitizar o povo, que acaba confundindo orientação espiritual/religiosa com ideologia. Os lobbies religiosos, nosso Cinturão da Bíblia parlamentar, estão cada vez mais insolentes. Sabem de seu poder eleitoral, fincado no atraso, e o usam para ampliar rebanhos e fortalecer uma agenda ultraconservadora.
No Brasil, templos de 5 estados (Rio, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina) têm grandes isenções fiscais. Resultado de pressões das bancadas evangélicas, acabam beneficiando, por isonomia, outras religiões. Pelo menos mais 11 estados estudam concessão de novos benefícios. O corporativismo teísta garante privilégios que não se justificam. Como qualquer atividade privada, a prática religiosa deveria ser financiada por seus seguidores. A renúncia fiscal a favor dos clubes clericais, todos eles, se dá em prejuízo da população. Cada real não arrecadado equivale a um real sonegado para áreas vitais. Como dizem os economistas: não há almoço grátis. Políticos, digamos, espertos, sabem jogar esse jogo. O ex-prefeito do Rio, César Maia, foi condenado em julho de 2013, em segunda instância, por ter financiado com dinheiro público a construção de uma igreja no Rio. Por isso, a Procuradoria Regional Eleitoral do Rio impugnou o registro da sua candidatura ao Senado. Cinicamente, e certo da impunidade, comentou: “O Ministério Público tem todo o direito de questionar candidaturas. No caso é uma capelinha de São Jorge e o argumento é que o Estado é laico”. Curiosamente, não se ouvem as trombetas da indignação vindas dos castelos eclesiásticos. O silêncio pode ser um grande discurso.
Dias atrás, morreu Rubem Alves. Como a gente diz na gíria do futebol, era um ensaboado. Difícil de marcar. Educador e teólogo, nunca foi ortodoxo. Defendia a educação como exercício da liberdade e da imaginação. Não se conformava com o uso leviano, medíocre e oportunista dos dogmas religiosos. Imagino a revolta com o que via nas escolas e nos púlpitos. Vá, Rubem, nós, que aqui estamos, por vós pelejamos.
Crédito da foto: latuff.
(*) Jacques Gruman, 55 anos, engenheiro químico, é militante internacionalista da esquerda judaica no Rio de Janeiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário