Em defesa das revoltas
de Ferguson, nos EUA
Robert Stephens II (*)
No fim de semana de 9 de agosto a polícia em Ferguson, Missouri(EUA), assassinou o adolescente negro Michael Brown. Enquanto os detalhes ainda chegaM a conta-gotas, está claro é que, durante um confronto com um carro patrulha perto da casa da sua avó, um polIciaL(branco) disparou e matou o adolescente desarmado no meio da rua. As testemunhas dizem que Brown corria, afastando-se do polícia, e tinha as mãos levantadas, precisamente antes do policial disparar contra ele.
Ferguson é uma cidade com uma grande concentração de população negra sob o controlo de instituições predominantemente brancas. O assassinato imediatamente tocou uma corda sensível. Manifestações e protestos irromperam e as pessoas tomaram as ruas, o que poderá eventualmente culminar numa revolta. As multidões oscilavam desde pessoas que faziam vigília transportando velas no lugar da morte de Brown até outras que queimavam estabelecimentos comerciais e lançavam cocktails molotov durante os confrontos com a polícia. Como chegamos até aqui?
Longe de ser uma multidão violenta e sem cérebro, as pessoas de Ferguson atravessaram um processo de elevação do seu nível de consciência política que as levou à insurreição. Um vídeo mostra vários agitadores políticos gritando entre a multidão, convertendo a raiva momentânea em unidade política. Um orador em particular, um jovem negro, oferece convincente análise política que denuncia a injustiça da brutalidade policial como um subproduto da desordem econômica da comunidade.
“Continuamos a dar o nosso dinheiro a esses meninos brancos que estão nos seus complexos residenciais, e não podemos obter justiça. Nem respeito. Eles estão dispostos a atacar-te se não pagas uma fatura…. É normal que estejamos fartos.”
As revoltas, como outras formas de ação política, podem construir solidariedade. Podem criar fortes sentimentos de identidade comum. A indignação que eclodiu em Ferguson atraiu rapidamente as pessoas pertencentes dos meios marginais de toda a região. Mais do que um fato que lhe tire legitimidade, a presença destas pessoas “de fora” reflete o poder magnético do momento político.
Desde o início, as manifestações contra a polícia que precederam as revoltas tiveram uma clara dinâmica “nós contra eles”. Num ponto da manifestação, uma mulher com uma câmara diz: “Onde estão os rufias? Onde estão as gangues de rua quando precisamos de todos?” e então as pessoas começam a apelar àas diversas gangues de rua para abandonarem a violência do “negro contra negro” e a se unirem na luta contra a opressão. A comunidade estava unida e preparada para empreender ação. A polícia era o problema, e tinha que ser parada.
Smith identifica o que muitos que se auto-proclamam como anti-racistas e esquerdistas não compreendem, que o racismo não é uma questão moral ou de carácter. Ele reconhece que o ordenamento econômico facilita e beneficia da opressão racial, e é por isso que procura vias para interferir nesse processo e o alterar. Esta análise não é somente mais real do que a que normalmente é dada pela esquerda, mas além disso intervir com base nela é a única forma para erradicar a hierarquia racial que está tão arraigada.
A multidão que se congregava não era nem irracional nem apolítica. Tentavam utilizar a sua oportunidade para abordar as suas necessidades políticas que iam mais além. Sabiam que a violência interracial na comunidade era não só uma das suas preocupações, e que na maioria dos casos quem perpetrava ações violentas eram os próprios meninos, primos, amigos e vizinhos da comunidade. Ainda que muitos argumentem que a população negra não se preocupa com a violência nas suas comunidades, os apelos que se fizeram para que os gangues de rua se unissem demonstra que os levantamentos antipoliciais abrem oportunidades únicas para unir as pessoas em formas que pugnam por resolver questões de fundo como a violência dos gangues.
Depois da insurreição, os participantes continuaram a debater sobre o levantamento em termos políticos. Deandre Smith, que estava presente no fogo da loja da QuikTrip, disse às notícias locais: “acho que estão demasiado preocupados sobre o que acontece nas suas lojas, comércios e tudo isso. Mas não estão preocupados com o assassinato.” Um segundo homem acrescenta: “Eu simplesmente acho que o que aconteceu foi necessário para demonstrar à polícia que eles não controlam tudo”. Smith conclui: “Não acho que tenha sido suficiente.”
Numa segunda entrevista, desta vez com Kim Bell do St. Louis Post-Dispatch, Smith ampliou a sua opinião sobre as revoltas como uma estratégia política viável.
“Isto é exatamente o que se supõe que tem que se passar quando uma injustiça acontece na tua comunidade… Eu estava aqui fora com a comunidade, é tudo o que posso dizer… Para dizer a verdade, não acho que isto tenha acabado. Acho que o que receberam foi uma lição do que significa contra-atacar, no próprio St. Louis, o último estado a abolir a escravatura. Por acaso acham que ainda ostentam o poder sobre certas coisas? Eu acho que assim pensam.
Eles obtêm dinheiro da seguinte maneira: negócios e impostos, com a polícia parando as pessoas e multando-as, levando-as a julgamento, prendendo-as, é assim que eles fazem dinheiro em St. Louis. Tudo gira em torno do dinheiro em St. Louis. De modo que, quando alguém trava esse fluxo de rendimentos, eles têm tudo organizado…’nós vamos comer, vocês vão passar fome’, gentrificação. Vai tu própria a um bairro e vê se és capaz de suportar a fome…. Isto não vai passar aqui, não em St. Louis.”
O que costuma acontecer quando ocorrem acontecimentos como a rebelião de Ferguson, é que pessoas bem intencionadas se apressam a condenar os participantes. No mínimo, acusam as revoltas como não produtivas e oportunistas, umas quantas maçãs podem podem apodrecer o resto da cesta. Esta atitude é precisamente a que Deandre Smith criticava na sua primeira entrevista. Muitos dos detratores, alguns dos quais também são negros, tentam vigiar estas comunidades com “políticas respeitáveis”, um apelo a que as pessoas oprimidas se mostrem a si próprias em formas que sejam 'aceitáveis' para a classe dominante, num esforço para conseguir créditos políticos.
Tal como o cientista Frederick Harris escreveu num artigo este ano:
O que começou como uma filosofia promulgada pelas elites negras para “elevar a raça”, mediante a qual se deviam corrigir os traços “maus” da população negra pobre, evoluiu agora para uma que se converteu num dos traços distintivos da política na era Obama, uma filosofia de governo que se centra no controle do comportamento da população negra abandonada, no quadro de uma sociedade que é ‘vendida’ como repleta de oportunidades.
Mas a política da respeitabilidade ficou retratada como uma estratégia emancipadora que abandona os debates sobre as forças estruturais que entravam a mobilidade social da população negra e da classe operária.
Enquanto as revoltas com frequência galvanizam os acontecimentos dentro de uma comunidade, com o potencial de desencadear uma energia política concentrada em dinâmicas e direções imprevisíveis, as obsoletas políticas da respeitabilidade conduzem apenas a mais marginalização e desestruturação. Bem, é possível não estar de acordo com a utilidade da insurreição. Mas a forma com que as comunidades reagem à opressão tem de ser debatida em termos políticos e não simplesmente desprezada.
Vivemos num contexto de supremacia branca e de capitalismo neoliberal onde as políticas racialmente neutras estão a ser utilizadas para manter a exploração de classe e a hierarquia racial, e qualquer tentativa de abordar o racismo é recusada ou ignorada. Estas políticas só intensificam a desestruturação econômica e a pobreza e são aqueles que vivem nas margens da sociedade que as experimentam.
O que tanto os entrevistados nas notícias locais, como as pessoas que se amontoavam no lugar onde morreu Brown pareciam entender, é que o que é preciso é desmontar a interação que existe entre a opressão racial e o capitalismo. Sentiam que uma manifestação ou qualquer outra forma aceitável de indignação não atendia às suas necessidades políticas, e não se equivocavam.
(*) Artigo de Robert Stephens II publicado em jacobinmag.com, traduzido para espanhol pro Viento Sur e para português por Carlos Santos para esquerda.net
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