PEC DA BENGALA APEQUENOU
O CONGRESSO
A noite em que a Câmara de Deputados fez a mudança constitucional batizada como PEC da Bengala constitui uma típica jornada de tolos, episódio célebre da corte de Luis XIII no qual a rainha-mãe Maria de Medicis tentou dar um golpe palaciano mas terminou humilhada por uma manobra do Cardeal Richielieu, sendo forçada a mudar-se para o exílio.
Na noite de terça-feira(5) passada os deputados de oposição fizeram uma festinha, porque a votação permitiu negar, a Dilma Rousseff, um direito que foi exercido pelos 16 presidentes que ocuparam o posto a partir de 1946, quando foi estabelecida a regra da aposentadoria obrigatória dos ministros do STF aos 70 anos de idade. Pelas regras em vigor até a véspera, Dilma teria direito a indicar cinco nomes para o Supremo — sempre sujeitos a aval ou recusa do Senado — até o fim do mandato.
Muito, ou pouco, é o que diz a lei e a mudança possui um óbvio caráter de casuísmo — até porque desde a década de 1990 o assunto é debatido no Congresso, cabendo perguntar por que só entrou em pauta anteontem, com rolo compressor já armado para garantir uma votação expressiva de 333 votos contra 144, não é mesmo?
Apesar da celebração, que reflete a posição minoritária do governo na Câmara, a decisão é acima de tudo uma medida contra o próprio Congresso e contribui para diminuir um pouco mais a estatura política do Legislativo. O principal efeito será diminuir o poder da Presidência da República e dos parlamentares — representantes eleitos do povo — na definição de rumos da Justiça brasileira, o que se faz, essencialmente, pela escolha dos ministros do Supremo.
É preciso entender, para começar, que o grande impulso para aprovar a PEC da Bengala reside numa tentativa de autodefesa por parte dos parlamentares. Há muito tempo formou-se no STF uma a maioria favorável a ampliação do limite de idade. Em passado recente, muitos ministros costumavam percorrer gabinetes do Congresso para expor argumentos favoráveis à medida. Em 2015, a votação reflete um drama interno: o medo de perder a própria cabeça na guilhotina da Lava Jato.
A decisão ocorreu num momento em que 52 políticos — dos 21 deputados acusados, 17 são do PP , 2 do PMDB, 2 do PT — foram incluídos no inquérito e lutam desesperadamente para cair fora. Quem decide é o Supremo. Pode recusar uma denúncia e encerrar o caso no início. Ou pode aceitar a denúncia e absolver ou condenar o acusado, no final.
A decisão, que na última hora entrou na pauta de votação, ocorreu num momento em que as tensões entre o deputado Eduardo Cunha, e o PGR Rodrigo Janot atingiram seu ponto máximo, a ponto de incluir, no início da semana, uma operação de busca e apreensão nos arquivos eletrônicos do presidente da Câmara.
Numa declaração inusitada pelo vigor, um dia antes da votação Janot emitiu nota em que advertia: “Malgrado até o momento não tenha como precisar se os valores mencionados nos termos em questão foram en tregues diretamente ao deputado federal Eduardo Cunha, fato é que o colaborador Alberto Youssef reiterou, e com razoável detalhamento, que Eduardo Cunha era beneficiário dos recursos e que participou de procedimentos como forma de pressionar o restabelecimento do repasse dos valores que havia sido suspenso, em determinado momento, por Júlio Camargo”, escreveu, definindo o contexto real da decisão de terça-feira.
Após a decisão, cabe esquecer por um minuto o falso fantasma de uma corte bolivariana anunciado pelo ministro Gilmar Mendes — como já debati neste espaço — para entender o principal e o duradouro.
Pelas regras já em vigor, a escolha de cada ministro envolve uma decisão de dois poderes, o Executivo e o Legislativo, os únicos que tem como base o voto popular. Pela regra, a presidência faz a indicação e, caso fique descontente com a proposta, a oposição só necessita reunir maioria simples num plenário de 81 senadores para derrotar a escolha. Essa regra favorece o poder presidencial, obviamente. Mas estimula negociações prévias entre os dois Poderes, tão discretas como reais, impedindo qualquer decisão de unilateral. Imaginar, nas atuais condições de temperatura e pressão, que Dilma teria musculatura parlamentar para impor de cima para baixo cinco ministros até 2018, sem ouvir, negociar, ponderar, implica em fazer cálculos políticos delirantes, sem base real.
O problema é mais fundo, porém. A PEC da Bengala reduz o poder de intervenção dos parlamentares na composição da mais importante corte de Justiça do país e nesse sentido a aprovação equivale a uma forma de renúncia. Cada escolha de cada ministro é uma oportunidade para representantes eleitos definirem, ao longo dos anos, um caráter mais progressista ou conservador para a mais alta corte do país, definição de alta relevância para o futuro da nação e os direitos de cada um de seus cidadãos. Aplica-se aqui uma regra válida a todos os postos de natureza política, como são as vagas do Supremo.
Mandatos curtos estimulam a renovação de seus ocupantes, atualizando as instituições de acordo com o oxigênio sempre evolutivo de cada época. De forma direta ou indireta, dão espaço para a vontade do cidadão comum. E vice-versa. Em muitos países europeus, os ministros tem mandato, que podem durar onze anos, ou mesmo –os cinco anos obtidos na terça-feira representam a metade disso.
Não por acaso, os Estados Unidos, onde os mandatos para a Suprema Corte são vitalícios, é ali que reside, hoje, uma grande peça de resistência republicana contra avanços cobrados pelo voto democrata nas vitórias de Bill Clinton e Barack Obama. Importantes conquistas, cuja base são as lutas pelos direitos civis da década de 1960, podem ser revogadas, amenizadas e distorcidas, em 2015, porque a Suprema Corte reflete uma relação de forças de outro tempo.
No Brasil, país onde tantas pessoas discutem — erradamente, a meu ver — o fim da reeleição para cargos eletivos, até porque neste caso se debate uma decisão onde o eleitor sempre terá a palavra final, a Câmara resolveu ampliar, automaticamente, o prazo-limite para aposentadoria de ministros de tribunais superiores. Com isso, o Congresso deu um novo passo para a construção do Judiciário como um poder soberano, que não presta contas a ninguém, com direito a ultima palavra em decisões graves da República — na politica, no comportamento, em política econômica e decisões específicas de interesse primário das grandes empresas e corporações, como sabem lobistas e escritórios de advogados com uma variadíssima carteira de clientes no eixo Rio-São Paulo-Brasília.
A votação representa um novo passo em direção à judicialização das decisões políticas, tendência que contraria uma das necessidades elementares das sociedades contemporâneas, que reside no esforço — expresso até nos protestos de rua — para ampliar a democracia e encontrar novos caminhos para a maioria da população canalizar direitos e exercer vontades.
Numa seleção de lugares-comuns para iludir os incautos, os aliados da PEC falaram sobre a necessidade de controlar gastos públicos, o que é uma estupidez. As despesas da mais alta corte de Justiça não podem ser medidas numa contabilidade de armazém de bairro, mas de acordo com as necessidades e prioridades de determinada sociedade, em determinada época. Houve quem falasse “em defesa dos velhos”, numa demagogia típica, pois não se trata agora de criar direitos corporativos de pessoas de mais de 70 anos – mas em entender de que forma os brasileiros podem contar com uma Justiça que atenda seus interesses.
Este é o ponto.
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