A crise de memória
e a diferença que
o PT pode fazer
Os atuais algozes de Dilma eram, há 25 anos, destaques no circo de Collor: Calheiros, líder do governo 'collorido' na Câmara e Cunha, seu chefe de campanha no Rio...
Carlos Frederico Pereira da Silva Gama
“(Luís Bonaparte) gostaria de roubar a França inteira a fim poder entregá-la de presente à França, ou melhor, a fim de poder comprar novamente a França com dinheiro francês”
(Karl Marx, 'O 18 de Brumário de Luís Bonaparte')
"Pode ser que a continuidade da tradição seja uma aparência. Mas então é a permanência desta aparência de permanência que cria nela a continuidade"(Walter Benjamin - 'Passagens')
“Somente um pensamento que faz violência contra si mesmo é resistente o bastante para quebrar os mitos” (
Theodor Adorno & Max Horkheimer - 'A Dialética do Esclarecimento')
Três meses após a reeleição, a Presidência está acossada, sob bombardeio constante de denúncias de corrupção. Sua popularidade caiu vertiginosamente. O dólar disparou. A economia patina. A oposição sugere o impeachment – ou a renúncia presidencial. Os partidos no poder condenam as acusações: golpismo. O impeachment não vai adiante. O segundo mandato se arrasta, até seu melancólico desenlace.
A ficha cai e a memória nos traz de volta a 1999. O presidente, Fernando Henrique Cardoso. As denúncias, referentes à privatização das teles. A oposição, liderada pelo PT de Luiz Inácio Lula da Silva. Os partidos no poder, o PSDB de FHC, o PFL e o PMDB. Na ocasião, o Presidente da Câmara é Michel Temer. O Ministro da Justiça, Renan Calheiros. E Eduardo Cunha, integrante da base aliada.
A repetição de personagens não é mera coincidência. E s
emelhanças entre 2015 e 1999 fazem cair por terra dois mitos.
1) O Brasil não vive a pior crise política de sua história, ao contrário do que alardeia parte da mídia. Longe disso: vive incômoda repetição.
2) A crise atual não é uma crise exclusiva do PT. O partido está no centro das atenções, mas os elementos da crise antecederam sua chegada ao poder. A trajetória da repetição mantém o PMDB credor político dos governos eleitos, com força e desenvoltura para desequilibrar suas gestões.
Que diferença pode fazer o PT na crise atual, em meio à governamentalidade refém da repetição?
A disseminação de uma ideologia tecnocrática foi fundamental para a continuidade na política brasileira. Esta ideologia adota uma imagem do Brasil como empreendimento ineficiente perpetuamente a perigo. O Brasil em cíclico insucesso se sustenta precariamente à beira da falência, em contraste com um progresso sempre adiado entre crises.
Crises ocupam lugar central nessa ideologia, momentos em que o progresso adiado é “dado” aos brasileiros por um grupo de experts salvadores. A naturalização do progresso (o berço esplêndido, do país do futuro, onde se plantando tudo dá) ocupou papel central na legitimação de elites políticas brasileiras, da prototecnocracia da República Velha ao positivismo-em-armas das muitas ditaduras.
A última encarnação desse salvacionismo tecnocrático foi o Plano Real, ungido pela ekipekonômica de FHC em meio à inflação de quatro dígitos, à ressaca do impeachment de Fernando Collor e ao escândalo dos anões do Orçamento num Congresso composto, no dizer de Lula, por 300 picaretas (frase que permanece atualíssima). Um contexto bem mais dramático que o atual.
A lógica da governamentalidade promete a superação das crises, “solucionados” quebra-cabeças herdados de gestões anteriores mas mantendo o Brasil num futuro indeferido, obra ineficiente que demanda novas levas de intervenção iluminada. Ao lado de gestores salvadores, viceja o PMDB – o fisiologismo que se liquefaz nas alianças eleitorais e que se condensa, pós-eleições, em cobranças. Ambos, competentes em blindar a governabilidade de demandas e contestações dos cidadãos.
A construção da governamentalidade é simbolicamente retrospectiva: imagens do Brasil ineficiente se sucedem qual ondas, que sedimentam camadas de um relacionamento vertical entre Estado e Sociedade, renovado a cada crise e nova chegada de experts para levar doses homeopáticas de progresso à população “atolada” no mar de lama do atraso. O Estado seria o eixo de revitalização do Brasil. Suas decisões desaguariam nas manifestações da sociedade civil.
A ideologia tecnocrática afetou durante décadas a governança da Petrobrás e outras empresas; se repete, viciosamente, lastreada na reprodução de crises como “salvação”. Outro efeito tecnocrático é a estratificação social, nítida na propaganda eleitoral de 1998. FHC (que legou a direção-geral da Agência Nacional de Petróleo a seu genro) caracterizava o Real como melhoria na vida de todos os brasileiros: para uns melhorou mais, para outros melhorou menos, mas que melhorou, melhorou.
O progresso em doses homeopáticas e assimétricas não muda a pirâmide social. Seu apelo vem da utopia liberal da harmonia de classes, possibilitada por elites iluminadas que “criam” para a população estabilidade e prosperidade despolitizadas, apoiadas por um PMDB capaz de permanecer no poder sendo, simultaneamente, âncora da governamentalidade e algoz dos governos.
A eleição de Lula em 2002 foi uma inflexão na cascata tecnocrática de crises e salvacionismo. O PT chegou ao poder mantendo com a sociedade civil uma relação horizontal, a qual intensificava a relação representativa e criava expectativas dantes inauditas. Pela primeira vez, programas sociais do Estado brasileiro se tornavam mecanismo de empoderamento político de milhões de pessoas dantes invisíveis. O combate à fome e transferência de renda não apenas melhoraram a vida desses milhões e movimentaram a economia: levaram consigo o direito de ter direitos de Hannah Arendt.
A conjunção da horizontalidade da relação com a sociedade (que marcou a criação do partido há 35 anos) com o empoderamento inédito do andar de baixo (durante o governo Lula) rompeu laços de continuidade tecnocrática e a reprodução velada da pirâmide social. Polarização política se seguiu. O PT fez uso do PMDB para atravessar tempestades políticas do primeiro governo Lula. Depois das urnas, a ressaca. O PMDB cobraria seu apoio, obtendo a vice-presidência no governo Rousseff.
A chegada do PT à Presidência representou uma inflexão no ciclo da Nova República. Quebrou seu princípio de legitimação e radicalizou uma democracia até então sumamente formal. Uma consequência contraditória do processo foi o aumento do poder de barganha do PMDB. O peso do partido dentro da aliança formada pelo PT para viabilizar a governamentalidade diz mais sobre a crise atual do que os erros do PT ou as rupturas que o partido viveu até chegar à Presidência.
A tragédia cresce de vulto à luz das contradições da ascensão política do PT. O partido se tornou, a contragosto, guardião de três inovações políticas nos últimos 30 anos.
O PT foi o primeiro a demandar eleições diretas para a Presidência da República, nos estertores da ditadura civil-militar. O movimento ganhou ímpeto sob a alcunha das Diretas-Já e foi apropriado pelo PMDB (fundido ao PP de Tancredo Neves). Eventualmente, a Emenda Dante de Oliveira foi rejeitada pelo congresso da ditadura.
Ao invés das Diretas-Já, tivemos uma eleição indireta no colégio eleitoral da ditadura, opondo o candidato governista Paulo Maluf (PDS) ao candidato da oposição consentida, Tancredo (PMDB), apoiado por uma dissidência do PDS, a Frente Liberal, liderada por José Sarney. O apoio de Sarney (que se filiou ao PMDB) foi decisivo para a vitória de Tancredo.
A ditadura findaria longe das urnas e pelas mãos de apoiadores seus de longa data. A Nova República vitoriosa reunia um conglomerado mais próximo da transição “lenta, gradual e segura” do general Geisel que da mobilização popular que impulsionou as Diretas. Morto Tancredo antes da posse, o governo Sarney deu contornos hegemônicos ao PMDB.
Essa hegemonia se manifestou num segundo desalento para o PT, a promulgação da Constituição de 1988. A luta do partido pelo fim do entulho autoritário foi atropelada pelo Plano Cruzado de Sarney. A euforia momentânea do Cruzado inaugurou as cruzadas progressistas das ekipekonômicas contra inimigos da economia brasileira (vide fiscais do Sarney). O Cruzado produziu vitória acachapante do PMDB nas eleições estaduais e confortável maioria na Assembleia Constituinte (o “Centrão” de Roberto Cardoso Alves). Embora traga inegáveis avanços democráticos frente aos instrumentos jurídicos de exceção, a Constituição-cidadã consagrou a governamentalidade da Nova República/PMDB. Ademais, garantiu para Sarney 5 anos de governo.
As primeiras eleições presidenciais pós-1988 sintomaticamente rejeitaram Sarney e reafirmaram o PMDB. Um aventureiro com discurso anti-Sarney foi eleito Presidente. Seu 'vice', um companheiro de partido de Sarney. Após a derrubada da farsa collorida, o PMDB voltaria a ocupar a Presidência. A Nova República retornaria na “República do Pão-de-Queijo” de Itamar Franco.
A terceira inflexão foi a ressignificação da agenda política do PT após o Real de Itamar catapultar seu ministro da economia, FHC, ao Planalto, com o PMDB a tiracolo (Calheiros foi ministro da Justiça de FHC). O Real permitiu 10 anos de reintegração entre PMDB e sua antiga dissidência, o PSDB.
Inicialmente crítico do Real como manobra eleitoral que “congelaria a miséria”, o PT foi pragmático e passou a aliar a estabilidade ao crescimento econômico. Os fundamentos do Real foram mantidos intactos desde 2003. Desde então, o Brasil cresceu mais do que na década de 1990.
Em meio ao revanchismo pós-eleitoral de manifestações de impeachment e com o PMDB a tiracolo, Dilma está em situação complexa. A data da próxima manifestação pró-impeachment não é inocente. Há 25 anos, Collor foi empossado num 15 de Março. Os algozes de Dilma eram destaques no circo collorido: Calheiros, líder de Collor na Câmara e Cunha, seu chefe de campanha no Rio.
O momento atual é trágico e decisivo. Não porque o Brasil viva uma onda conservadora. 2015 contém elementos impensáveis anos atrás (a adoção de crianças por casais homoafetivos e a PEC das domésticas, conquistas consolidadas no governo Dilma). A reação intensa e a polarização política indicam desconforto com transformações em curso, mais do que um refluxo conservador.
A tragédia do PT encontra o partido bloqueado por aliados e acossado por grupos oposicionistas acenando com “estabilidade" e “ordem”. A bandeira do combate à corrupção é hasteada por aqueles que, há pouco, enfrentavam acusações similares – contando com a cumplicidade do PMDB.
O discurso tecnocrático salvacionista abraçado por Aécio Neves não convém a Dilma e ao PT. O partido tem lidar com as contradições de sua caminhada vitoriosa. Não é possível transformar um sistema que não começou com o PT, mas que hoje o inclui, sem profunda e visceral autorreflexão.
Em 2013, após as maiores manifestações pós-Diretas, a Presidenta prometeu uma série de pactos. Um deles, a reforma política. Diante das negativas do PMDB, os pactos não duraram uma semana. O PT preferiu reformar a base aliada para as eleições de 2014. Destaque para o PMDB: recebeu mais ministérios, manteve a vice-presidência. Triste ironia: o PMDB em 2015 brande um espantalho de “reforma política” contra o governo Dilma. O PT perdeu a dianteira do processo (sobre isso o ex-ministro Tarso Genro nos alertara) sem que a população tenha sido ouvida. Tornada instrumento de governamentalidade, a reforma política foi blindada contra a participação política cidadã.
Consequências trágicas extraem sua força da dificuldade de se repensar criticamente a trajetória política. Disputar o discurso da salvação com as oposições produz inércia, mantém as contradições.
A cada inflexão tomada e pleito perdido, o PT viveu traumáticas separações – estas não impediram os rumos de mudança. Tendo em vista o apoio em massa de ex-integrantes do PT a Dilma no segundo turno de 2014, o partido não devia temer novas rupturas e levar a cabo a reflexão em toda sua extensão e severidade. Um item de primeira importância é uma reavaliação das alianças do PT.
O partido está a descobrir, em São Paulo, que é possível fazer alianças sem se render a elas. Fernando Haddad está a fazer inovadora limonada com os amargos limões legados pelos antecessores neoaliados Maluf (PP) e Gilberto Kassab (PSD). No processo de reverter a herança urbanística do malufismo tendo como apoiador seu expoente máximo, o PT aprende valiosa lição: é possível governar para além do PMDB.
Ao fazer o balanço dos seus 13 primeiros anos de governo, o PT possui diferencial decisivo frente ao salvacionismo. Uma grande transformação tirou milhões de brasileiros das portas dos fundos da democracia formal e os tornou protagonistas de mudanças em suas próprias vidas. O engajamento político dos responsáveis diretos pela reeleição de Dilma é capital político inestimável frente à reunião do fisiologismo com o elitismo, pretendendo desacelerar as transformações em curso.
O PT aprofundou a qualidade da democracia no Brasil. Pela via democrática, pode se fortalecer na crise. Quem recebeu 54 milhões de votos, como Dilma, tem enorme responsabilidade sobre os ombros e também gigantesca legitimidade para enfrentar grupos de interesse, mídia e “mercado'”.
O combate sem tréguas à corrupção é uma força de que Dilma dispõe, respaldada pelas urnas. Que não se deixe intimidar por fantasmas. O reconhecimento da Presidenta de que há graves problemas pressupõe humildade. O passo seguinte é fazer valer sua fala: “A impunidade leva água para o moinho da corrupção”. É preciso responsabilizar os envolvidos em ilegalidades inequivocamente, nos termos da lei, frustrando anseios salvacionistas e caça às bruxas.
Vitorioso nas urnas, o programa de Dilma (incluindo a reforma política) tem que reconquistar as ruas. Não para guiar cidadãos responsáveis diretos pela reeleição, mas para revigorar a representação democrática travada pela governamentalidade. Após contraditórias mudanças e afastamentos, PT e ruas precisam se reencontrar. O governo Dilma pode marcar esse reencontro dos espaços políticos nos quais o PMDB foi contestado nos últimos 30 anos. Dilma conquistou as urnas. Ao invés de disputar salvacionismo e estabilidade com a oposição, hora de ouvir as ruas.
Das ruas para as antessalas do poder, é possível evitar o cenário desastroso. Rejeitar a interlocução com Cunha e manter o PMDB como âncora do governo é postura fadada ao fracasso. Intensifica elementos da crise e dá fôlego extra a movimentações pelo impeachment eivadas de salvacionismo.
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