"Não há ator político para organizar a insatisfação no Brasil"
Segundo governo Dilma: A consolidação de uma derrota. Entrevista especial com Pablo Ortellado ao 'IHU Online'
coordenador do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação
Na interpretação do professor da Universidade de São Paulo — USP, a segunda gestão do governo Dilma “está sendo refém do sistema financeiro e não tem força para enfrentá-lo e mudá-lo, como havia ensaiado. Por isso ela perdeu a batalha e não conseguiu ir adiante na política de reduzir os juros, na política de aumentar o subsídio das tarifas públicas, que foi o modelo iniciado por ela”.
Para ele, a nomeação de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda é um sinal dessa derrota. Contudo, outras nomeações ministeriais polêmicas, como a de Kátia Abreu para o Ministério da Agricultura e de Gilberto Kassab para o Ministério das Cidades, têm outro significado. “A nomeação de Kátia Abreu não destoa do pensamento da presidente; ela é uma desenvolvimentista, acha que o agronegócio é uma peça importante, e Kátia Abreu é uma grande representante desse setor. A nomeação do Kassab tem mais a ver com questões políticas para conseguir alianças; ele é um grande articulador político, fundou um partido político que é importante para a governabilidade”, comenta.
Na avaliação dele, apesar das “surpresas” da nova gestão, o modelo neodesenvolvimentista iniciado no governo Lula e levado adiante pela presidente Dilma ainda é sustentável, embora tenha sofrido um “revés justamente na política econômica”. Para os próximos quatro anos, vislumbra, “vai haver um embate no qual o resultado será uma política mista, predominantemente liberal, mas com alguns elementos desenvolvimentistas. As agendas de proteção ao meio ambiente e de política indigenista vão por água abaixo, porque não têm nenhum espaço dentro do governo”, conclui.
Pablo Ortellado é graduado e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP. É professor do curso de Gestão de Políticas Públicas e orientador no Programa de Pós-graduação em Estudos Culturais da USP e coordenador do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação — Gpopai.
IHU On-Line – Como o senhor está vendo as mudanças anunciadas pela presidente Dilma nos dois primeiros meses do seu segundo mandato? Os anúncios estão surpreendendo?
Pablo Ortellado – Acho que todos estão surpresos porque houve uma reversão da política econômica do primeiro mandato. Isso é ainda mais surpreendente porque contraria toda a escola de pensamento na qual a própria presidente foi formada, na Unicamp. A escolha de um ministro da Fazenda formado pela Escola de Chicago, os cortes de direitos trabalhistas para equilibrar o orçamento e o aumento das tarifas públicas, tudo isso caminhando para um arrocho, inclusive, contraria todo o discurso feito na campanha de reeleição, que foi totalmente baseada em assustar o eleitorado, dizendo que o outro candidato adotaria esse tipo de política. Essas mudanças surpreenderam a todos, ainda mais pelo fato de a presidente as ter feito de maneira tão agressiva.
IHU On-Line – O que essas mudanças mostram em relação ao primeiro governo da presidente Dilma e aos dois governos do ex-presidente Lula? As políticas adotadas não foram sustentáveis, ou hoje o Brasil enfrenta outras dificuldades?
Pablo Ortellado – Acho que se trata de uma reversão de estratégia de política econômica, caminhando para um modelo mais parecido com o adotado no governo do ex-presidente Lula, em que se tinha uma política econômica mais ortodoxa combinada com políticas de distribuição de renda e aumento do consumo. A presidente Dilma, no primeiro mandato, tinha ensaiado outro caminho, o de enfrentar a política de juro dos bancos, mexer com a política do superávit primário, mas ela perdeu politicamente essa batalha. Foi uma disputa política muito dura e, ao que tudo indica, os primeiros meses do segundo mandato demonstram a consolidação dessa derrota. É uma consolidação que deve ter sido muito difícil, porque tenho certeza de que a presidente não acredita nesta política; ela está sendo contrariada.
IHU On-Line – O senhor sugere que ela está sendo refém de alguma situação?
Pablo Ortellado – Ela está sendo refém do sistema financeiro e não tem força para enfrentá-lo e mudá-lo, como havia ensaiado. Por isso ela perdeu a batalha e não conseguiu ir adiante na política de reduzir os juros, na política de aumentar o subsídio das tarifas públicas, que foi o modelo iniciado por ela, mas que fracassou porque ela não teve força de implementá-lo por conta da influência do sistema financeiro tanto na política quanto na economia.
IHU On-Line – Que outras dificuldades o governo tende a enfrentar com Eduardo Cunha na Câmara dos Deputados?
Pablo Ortellado – As dificuldades serão enormes, mas de outro tipo. Eduardo Cunha é oposição. Hoje a presidente já é refém de uma política econômica que não é a dela, na qual ela não acredita e para a qual ela não foi eleita, e ela passa agora a ser refém também de um Congresso que está controlado por um setor do PMDB que é independente. Embora o PMDB seja a base do governo, Eduardo Cunha e as forças que ele reúne e articula são independentes do governo. Isso significa que a aprovação de todo tipo de política vai encontrar empecilhos.
IHU On-Line – Deve haver uma mudança na postura do PMDB em relação ao governo?
Pablo Ortellado – O PMDB não tem unidade e é uma federação de muitas correntes e interesses. E esse grupo capitaneado por Eduardo Cunha é forte política e economicamente, porque Eduardo Cunha é grande intermediador de verbas de campanha, é ligado a setores empresariais muito fortes, como o setor de telecomunicações. Isso significa que nada ligado a telecomunicações vai avançar, ou seja, a regulamentação do Marco Civil pode encontrar problemas, a lei de proteção de dados pessoais e a reforma da lei de direitos autorais vão encontrar problemas, sem falar em toda a agenda ligada a questões morais, porque ele também é ligado ao setor evangélico. Então, questões relacionadas ao aborto, combate à homofobia e toda a agenda ligada aos direitos humanos vão sofrer um revés.
IHU On-Line – O senhor relaciona a atual conjuntura econômica com o fato de a presidente ser refém do sistema financeiro. Como avalia, em contrapartida, as nomeações feitas por ela: Kátia Abreu no Ministério da Agricultura e Gilberto Kassab no Ministério das Cidades? A presidente está sendo refém de outra situação nesses dois casos?
Pablo Ortellado – A nomeação de Kátia Abreu é bem consistente com o que a presidente pensa acerca de modelos de desenvolvimento. Essa nomeação não destoa do pensamento da presidente; ela é uma desenvolvimentista, acha que o agronegócio é uma peça importante e Kátia Abreu é uma grande representante desse setor. A nomeação do Kassab tem mais a ver com questões políticas para conseguir alianças; ele é um grande articulador político, fundou um partido político que é importante para a governabilidade, e ele entra nessa chave.
IHU On-Line – O modelo neodesenvolvimentista iniciado no governo Lula e levado adiante no governo Dilma ainda é sustentável?
Pablo Ortellado – Com certeza. Esse modelo sofreu um revés justamente na política econômica, porque Dilma está implementando políticas com o Joaquim Levy que são contrárias ao que ela acredita que seja de fato um modelo de desenvolvimento econômico. O que vamos ver, provavelmente, é uma mescla entre a política desenvolvimentista com uma agenda, num marco mais geral, profundamente liberalizante. É isso que Joaquim Levy vai fazer: aumentar o superávit primário, aumentar a política de juros, aumentar o preço das tarifas públicas, cortar mais gastos sociais. Essa política está sendo implementada, mas ela é contrária a uma política desenvolvimentista de proteção da indústria nacional, de estímulo a setores industriais, ao agronegócio. Vai haver um embate no qual o resultado será uma política mista, predominantemente liberal, mas com alguns elementos desenvolvimentistas. As agendas de proteção ao meio ambiente e de política indigenista vão por água abaixo, porque não têm nenhum espaço dentro do governo.
IHU On-Line – Em que medida os ajustes feitos neste ano estão relacionados com políticas desenvolvidas nos governos anteriores?
Pablo Ortellado – Depende de como se lê essa questão. Pode-se dizer que esse modelo de política mais intervencionista adotado pela presidente no primeiro mandato fracassou e é preciso voltar para uma política liberal forte para corrigir o rumo desse desvio e, portanto, estamos num momento de ajustes com recessão e baixo crescimento. Outra chave de leitura, contrária à anterior — que deve ser a da presidente —, é de que o modelo intervencionista não foi adotado integralmente, porque ele foi derrotado no meio do caminho e o resultado é este que estamos vendo. A volta a políticas liberais ortodoxas não é uma necessidade de equilibrar as contas, mas é uma derrota política, fruto da incapacidade de implementar um modelo econômico alternativo.
IHU On-Line – A última medida anunciada pelo governo Dilma é uma negociação com sindicatos e centrais sindicais para acabar com o fator previdenciário. Como vê essa proposta?
Pablo Ortellado – O fator previdenciário é uma medida que se mostrou totalmente inócua para o objetivo de retardar as aposentadorias. Só está trazendo prejuízos para os trabalhadores, sem ter nenhum efeito prático no retardamento da solicitação das aposentadorias. Não vejo por que a reversão dessa política teria impacto hoje.
IHU On-Line – Como deve se dar a relação da presidente Dilma com os movimentos sociais em seu segundo mandato? Vislumbra algo diferente em comparação com a primeira gestão, já que agora inclusive movimentos sociais estão criticando mais pontualmente o governo dela?
Pablo Ortellado – No primeiro mandato, a relação da presidente com os movimentos foi de escuta, mas com pouca incorporação de demandas. O ministro Miguel Rossetto vai manter sua política de escuta, que está muito ligada à sua trajetória. Mas num cenário em que a presidente tinha maior controle da política econômica, ela não conseguiu incorporar nada. Nesse cenário ela perdeu o controle e a incorporação de demandas será ainda menor. Assim, a presidente vai escutar, mas não vai ouvir.
IHU On-Line – O senhor disse que ao fim das manifestações de 2013, a sociedade estava mais mobilizada. Vislumbra a ocorrência de mais manifestações diante da atual conjuntura? Quais pautas são potenciais para gerar novas manifestações?
Pablo Ortellado – Este ano vamos ver mobilizações grandes de algumas pautas. Em São Paulo e no Rio de Janeiro a questão da água vai gerar manifestações, porque a situação da água é extremamente crítica, e é impossível não haver. Ainda não sabemos de que tipo serão essas manifestações, mas a falta de água empurra as pessoas para situações extremas e gera desespero. Esse é um tema que vai dominar a agenda dos movimentos sociais neste ano. Por outro lado, o escândalo da Petrobras vai gerar muitas manifestações tentando desmobilizar o governo, pedindo o impeachment da presidente. Vai ser um ano com muita mobilização.
IHU On-Line – Há mais razões para manifestações hoje do que se teve em 2013? O que vislumbra?
Pablo Ortellado – Não basta ter motivo, precisa ter organização e um ator político capaz de ajudar a sociedade a expressar essa insatisfação. O Movimento Passe Livre — MPL ocupou esse papel em 2013 e no começo deste ano, nas manifestações que ocorreram em São Paulo por conta do aumento da tarifa do transporte público. Não consigo ver um ator político com essa capacidade de mobilização para outras agendas, como o aumento da tarifa de energia. Do mesmo modo, a discussão sobre a crise hídrica também não tem um ator político capaz de gerar mobilização, o que é um problema, porque a crise é grande e a água é um recurso fundamental para o dia a dia. É preocupante ter uma demanda forte e uma insatisfação, e não ter um ator político capaz de organizar essa insatisfação. Por isso corre-se o risco, quando a crise se agravar ainda mais, de haver revoltas sem orientação política, como aconteceu em Itu. Essa revolta pode resultar em saques, quebra-quebra desorganizado. Por isso é importante que se tenha um ator que consiga orientar essa insatisfação para um objetivo político, para uma reivindicação factível.
IHU On-Line – A falta desse ator político implica que não surja no Brasil algo como o Podemos e o Syriza?
Pablo Ortellado – Nós estamos muito longe disso. O Podemos e o Syriza são movimentos muito distintos. O Syriza é um grupo de coalizão de partidos tradicionais de esquerda. Ele seria, guardadas todas as diferenças, algo como o PSOL e o PSTU. O Podemos, por outro lado, é uma expressão das mobilizações de rua, algo parecido com o MPL ou novos movimentos que surgem. Contudo, estamos muito distantes da criação de algo parecido no Brasil porque os movimentos que surgem não estão interessados em criar partidos. Por outro lado, PSOL e PSTU estão longe de ganhar essa preeminência que se teve na Grécia, com o Syriza.
IHU On-Line – Como vê as articulações para a campanha presidencial de 2018, que sugerem o retorno do ex-presidente Lula à Presidência, como uma alternativa política?
Pablo Ortellado – Isso ocorre porque Dilma começou seu mandato de maneira desastrosa. Não só porque o Brasil está numa crise econômica muito clara, como do ponto de vista social ela está aquém de todas as expectativas. O processo eleitoral foi muito polarizado entre a esquerda e a direita, com a esquerda mobilizada, prometendo se não avanços sociais, no mínimo a consolidação dos ganhos e avanços sociais do passado. Contudo, os primeiros atos do governo dela foram cortes de direitos trabalhistas, seguido de aumento das tarifas públicas, da nomeação de Levy. A popularidade dela está muito baixa e não há perspectiva de reversão desse cenário. De novo Lula acaba reaparecendo dentro do campo da esquerda para reorientar essa política ou retomar os ganhos sociais do passado. Esse é o significado e a especulação em torno da volta do ex-presidente.
IHU On-Line – O que se pode esperar para os próximos quatro anos de mandato?
Pablo Ortellado – Tudo é possível, mas o quadro mais provável é de ficar nessa situação de uma política econômica liberal, recessiva, com arrocho e com uma perspectiva ruim em relação às políticas sociais conquistadas. A presidente não tem força no Congresso, perdeu a queda de braço com o sistema financeiro, e não vejo de onde ela tiraria elementos para uma mudança de governo. Vai ser um governo difícil para ela e para nós, que estamos sob a administração dela.
(Por Patricia Fachin)
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